Queridos amigos,
Quis muito que estivessem junto nesta viagem a Chandigarh. Trouxe a tona minhas memórias dos tempos da FAU USP porque me dediquei a estudar Chandigarh na disciplina do Nestor Goulart Reis Filho.
Encarei cinco horas de carro pelas estradas indianas, o que por si é uma experiência única, para conhecer esta cidade. E vale a pena. O plano (primeiro pela dupla Mayer+ Nowicki, em 1949, e depois Le Corbusier+equipe, em 1951) foi muito ousado, tanto quanto à iniciativa e quanto pela condução de Jawaharlal Nehru, primeiro ministro que implementou o projeto.
Organizada pelo traçado viário ortogonal (cardo e decumano, conhecidos desde Roma) com uma clara hierarquia de circulação e nas proporções de uma nova capital, tem as superquadras na escala da vida cotidiana e familiar dos cidadãos. As unidades de vizinhança explicitam os princípios do movimento moderno e da nova condição política pós-colonial dos indianos. Os centros comerciais (inner market) são mais atraentes e dinâmicos que em Brasília por terem mais andares com escritórios e com mais ruas internas com estacionamento formando um conjunto muito movimentado por pedestres percorrem as galerias e as ruelas cheias de arvores.
Acompanhada por um agente de turismo local recomendado (sr. Vivek), consegui a autorização do governo – há burocracia de sobra – para visitar o setor governamental.
Fiquei, ao mesmo tempo, emocionada e chocada quando cheguei na frente do conjunto – Corte, Assembléia, Secretariado e a incrível “Mão aberta”. Emocionada diante da compreensão da integridade da arquitetura: são edifícios lindíssimos, com a impressionante carga simbólica de uma nova era de liberdade para o povo indiano, explícita pela implantação, pelas proporções, pelo tratamento das superfícies – cores, volumes, quebrasois – e pelas tapeçarias do Le Corbusier. Chocada porque nem toda esta expressão resiste à mediocridade insensível. Explico: é tudo controlado pelos sikhs (com “cara de mau” com seus turbantes achatados coloridos, barba e cabelo enrolados e punhais no cinto).
Ao longo do tempo e do uso o Secretariado foi internamente desfigurado, além dos puxados para salas de segurança com guardas desocupados e fedidos. Não pude percorrer os andares, mas fui me apresentar pela segunda vez numa sala com pilhas de processos, máquinas de escrever e cortinas de pano (atrás dos brises!). Fui acompanhada por um funcionário e seu fuzil até a cobertura do prédio para fotos "aéreas" do conjunto. Ali havia outros soldados acampados como que na supervisão do complexo. As restrições nos trajetos eram realmente constrangedoras – câmera recolhida até a liberação e o fuzil amedrontador.
Já na Assembléia, com aquelas formas parabólicas hiperbólicas ninguém se atreve a mexer. Os espaços internos acessíveis são do maior requinte arquitetônico com as frestas de luz no concreto, os capitéis tocando no teto preto, as rampas e as proporções dos grandes volumes vazios no interior daquele tronco irregular de cilindro cheio de relevos coloridos. Sob este teto repeti: Le Corbusier era um visionário sim.
Outra revista da segurança antes de eu chegar ao edifício da Corte de Justiça que fica na mesma praça em que esta a escultura da “Mão aberta”. Mesmo assim, só vi o edifício por fora e parece melhor mantido, (as interferências são os novos tubos vermelhos para o combate a incêndio). A composição geométrica dos painéis de concreto dos brises e os planos coloridos no fundo são uma lição de arquitetura.
A “Mão” pede uma reverência como obra de arte e se move sutilmente com o vento (é de aço e pesada). O triste é que quase ninguém chega a esta praça, só os magistrados e os autorizados; a população desconhece esta escultura, seu significado e esta imensa praça projetada para manifestações coletivas.
A cidade tem hoje 810 mil habitantes (foi projetada em duas fases para o total de 500 mil em 47 setores; hoje tem 56 setores e está conurbada com Pachkula (onde estou num hotel cheio de naftalina) e Mohali.
Chandigarh é uma referência decisiva para o mundo (os critérios da "tal" sustentabilidade foram aplicados aqui desde a tomada de decisão pelo projeto e depois com a construção), mas não se incorporou nas outras cidades que visitei na Índia. Seja pelo momento político, seja porque a historia deste país e seu(s) povo(s) são diferentes de tudo que já vi antes.
Comento brevemente que as cidades parecem caóticas e ilegíveis, confusas para nosso vocabulário de cidadão ocidental. São cheias de construções precárias; as calçadas não existem nem em Delhi (só guia e sarjeta nas bordas do asfalto), a infraestrutura é insuficiente e os prédios modernos são muito mal feitos, mesmo os suntuosos.
Paralelamente a este caos físico e com muita gente em todo canto, as pessoas são muito respeitosas entre si (não vi brigas, nem violência na rua), são comedidas nos gestos e nas vozes (sorriem sem serem escandalosos), são pacientes com as vacas, elefantes e macacos, com o transito de veículos barulhento e arriscado (para nós pelo menos) e são tolerantes com as contradições que se apresentam na difícil vida cotidiana.
Além de Chandigarh (que visitei em separado do roteiro coletivo) a viagem foi muito rica e densa de novos conhecimentos e vivências. A Índia tem seus encantos de sutil exibição e de forte poder de sensibilização.
sobre a autora
Renata Semin é arquiteta (FAU USP) e sócia do escritório Piratininga Arquitetos Associados.