O coração da Bela Vista é um pequeno vale que acolhe as águas de chuva que descem da encosta da Avenida Paulista e do Morro dos Ingleses e que irão desembocar na Avenida 9 de Julho, lugar de direito do pequeno rio Saracura. Encravada às margens imaginárias do riacho que corre hoje escondido embaixo do asfalto, a Escola de Samba Vai-Vai. Canta um de seus sambas-enredo:
Quem é Bixiga diz: Sou raiz
Sou tradição, o coração
Luz dessa cidade
Nasceu pra eternidade
Às belas margens do Rio Saracura... (1)
Quem é da localidade chama o lugar de Grotão da Bela Vista. Quem não é dali, não chama de nome algum, pois poucos sabem de sua existência. São quatro ruas mais ou menos paralelas – Rocha, Cardeal Leme, Almirante Marques de Leão e Dr. Lourenço Granato – que serpenteiam muito próximas entre si no meio das encostas tão íngremes que poucas ruas transversais conseguem se acomodar na geografia tumultuada. A Rua Rocha faz parte do trânsito cotidiano que sobe e desce entre as avenidas Paulista e 9 de Julho, mas o restante desta curta malha viária é usada durante os dias da semana por veículos de autoescola e alguns poucos automóveis de passeio de moradores locais e motoristas perdidos ou desavisados.
Sazonalmente, estas ruas abrigam barracas de feira pública – uma vez por semana – e ensaios da escola de samba – alguns finais de semana antes do carnaval –, mas no restante do tempo pertencem aos moradores. Nos finais de tarde e nos finais de semana, crianças ainda arriscam jogar futebol no asfalto abrasivo que queima os pés-descalços. Nos sábados e domingos idosos sentados à mesa de concreto jogam cartas e dominó na pracinha de esquina, dividindo o espaço com crianças que brincam e mulheres que as olham e conversam entre si.
Com platibandas, arcos, frontões e varandas diminutas, as casas alinhadas nas calçadas conformam um casario que intercala fachadas desgastadas pelo tempo com outras pintadas em cores vibrantes e alegres. Dentro delas, famílias remediadas, trabalhadores desqualificados, pequenos comerciantes, aposentados, gente de pouca pressa, que anda devagar e olha nos olhos da gente. Homens ainda consertam o próprio carro estacionado diante de suas casas ou trocam conversa fiada nas esquinas. Tem dona de casa também, pois quem cuidaria das plantas que tornam trechos de calçada em jardins úmidos típicos de cidade do interior?
Aqui e acolá temos barracões de atividades econômicas várias, quase sempre precárias, familiares, fora do esquema de marketing que tomou comércio e serviços em toda a cidade. São muitos os imóveis que dividem moradia e pontos comerciais – oficinas, manicures, vendas... Bares que vendem pinga em doses e armazéns com caderneta de fiado são figurinhas fáceis nesta fração de bairro. Como são muitos os depósitos – material de construção, sucatas, ferro-velho, adereços de carnaval –, são muitas as carroças que trafegam pelas ruas pouco movimentadas, rebaixando ainda mais a anacrônica velocidade baixa que ali impera.
Andar por estas ruas com algum tempo para olhar, ver e enxergar o que ali existe, é uma experiência que mexe com a sensibilidade de forma estranha, incômoda, esquisita. Temos a ilusão que uma metrópole como São Paulo se organiza de forma concêntrica, com a riqueza de suas áreas centrais se rarefazendo conforme se desloca para suas extremidades. No senso comum, se quisermos encontrar um Fusca ou um Corcel precisamos nos deslocar para o extremo leste ou sul da cidade, onde eles certamente estarão ladeados por Brasílias, Variants, Kombis, Monzas... Mas eis que bem no meio da área central de São Paulo, bem próximo da Avenida Paulista e da luxuosa região dos Jardins, se encontra um mundo arcaico, perdido, quase esquecido.
De vez em quando se lembram do grotão. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha arriscou um projeto de revitalização da área e, no seu vácuo, profissionais diversos já palpitaram sobre um destino mais alvissareiro para esta região deprimida. Se alguém for realmente fazer algo nesta área, espero que seja um arquiteto do porte de nosso prêmio Pritzker. E torço para que não seja acompanhado da expulsão desta gente simples que merece estar ali.
Mas, no fundo, o que torço mesmo é para que a esqueçam por mais algum tempo – com sorte, algumas décadas –, que troquem a revitalização artificial da área pela vitalidade arcaica que lhe dá o caráter. O isolamento tem como aliado a própria inexistência oficial do Bixiga, bairro tradicionalíssimo desprezado pela divisão administrativa da cidade, afinal não passa de uma denominação popular para uma parte do distrito da Bela Vista, sendo o grotão sua parte mais baixa, geograficamente. Passear por ali é se deparar com a memória da cidade provinciana que São Paulo foi até anteontem.
nota
1
Quer conhecer São Paulo? Vem pro Bixiga pra ver..., de Nayo Denay, Zé Carlinhos, Zeca do Cavaco e Ronaldinho FDQ, Samba-Enredo da Vai-Vai, 2004.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto (PUC-Campinas), mestre e doutor em História (IFCH Unicamp) e professor da FAU Mackenzie. Com Silvana Romano, é editor da Romano Guerra Editora e do Portal Vitruvius.