O Brasil é grande e jovem. O estado de Minas Gerais, por exemplo, tem a superfície da França e a população da Holanda. Belo Horizonte tem atualmente mais de 3 milhões e meio de habitantes, e apenas pouco mais de 100 anos. Seu plano original previa uma moderna cidade para 200.000 habitantes desenhada de acordo com princípios positivistas e absoluta confiança no poder da engenharia e da técnica, inspirada em Washington DC e na Paris de Haussman. Um grid retangular de ruas superposto por outro grid maior de avenidas cortando na diagonal a 45 graus, configuravam “tabuleiro de xadrez” dividido em quarteirões de 120 metros de lado, limitando essa malha por uma avenida de circulação perimetral (contorno) que separava as zonas urbanas das suburbanas. Tudo certo, e pronto para crescer.
Espaço para respirar
Durante a segunda guerra mundial, Juscelino Kubitschek (JK) – então um jovem prefeito vidrado em arquitetura moderna, e que depois viria a ser presidente e inventor de Brasília – construiu a lagoa artificial da Pampulha na periferia da cidade planejada, 10 km ao norte de BH, que já começava a se expandir além dos seus limites. JK convidou seu amigo Oscar Niemeyer, então com apenas 33 anos e começando sua prática profissional, para desenhar uma série de edifícios para a recreação e lazer da burguesia emergente, incluindo um cassino, um clube de iate, uma casa de baile, uma igreja e um hotel (nunca construído). Ao mesmo tempo na Pampulha, o então maior estádio de futebol do mundo (apelidado de “Mineirão”) começava a ser planejado nas redondezas da lagoa.
A visão de futuro de JK era cristalina: “A remodelação do centro urbano foi estabelecida como o objetivo principal. Mas essa renovação não era tudo. A cidade precisava respirar, adquirir seus próprios pulmões, ser convertida, em suma, em um organismo vivo, tomando oxigênio de seu ambiente ao redor, e absorvendo de forma que seu sangue pudesse circular de uma forma racional. Pampulha, eu pensei, poderia ser convertida no centro de turismo que faltava em BH.”
E assim foi feito. Desde então BH tem crescido muito além dos seus limites originais definidos pelo “tabuleiro de xadrez” planejado, que agora representa menos de 5% da superfície total da cidade. Transformando-se de uma área predominantemente residencial “de luxo” em meados da década de 50 em um bairro de classe média com o atual uso misto de baixa densidade, a Pampulha tem mantido sua vocação de lazer e turismo.
Topografia artificial
Há quase dois anos atrás o Consórcio “Minas Arena” contratou nosso escritório, o BCMF Arquitetos, para ser responsável pelo projeto executivo do complexo do Novo Mineirão, tanto das áreas internas quanto externas, como parte da Parceria Público Privada para a renovação do Estádio, uma das sedes da Copa do Mundo da Fifa de 2014. Projetado na década de 40 e construído na década de 60, apenas a “casca” – ou seja, a estrutura da fachada e a cobertura existente (tombadas) e o anel superior – está permanecendo praticamente inalterada. A remodelação do “miolo” interno e da área externa ao redor do estádio está sendo total, para que o Mineirão possa se transformar em uma moderna arena de nível internacional integrada ao conjunto arquitetônico e paisagístico da Lagoa da Pampulha.
As obras de Oscar Niemeyer e a Lagoa da Pampulha nas imediações parecem ter influenciado desde o início a solução da implantação do estádio planejado na década de 1940. Os arquitetos do projeto original do Mineirão (Eduardo Mendes Guimarães Júnior e Gaspar Garreto), inaugurado em 1965, procuraram respeitar a conformação natural do terreno a integrar o estádio no entorno urbano através de uma engenhosa implantação desnivelada, seguindo as curvas de nível de uma topografia acidentada, típica de Belo Horizonte.
Dessa forma, além da revitalização interna do estádio propriamente dito (cuja fachada é tombada), é importante ressaltar essa delicada relação urbanística do Novo Mineirão com o Complexo Turístico da Lagoa da Pampulha e sua vizinhança imediata, levando em conta as demandas durante o evento e também seu impacto como um legado auto-sustentável para a cidade.
Neste contexto, para remodelar e transformar completamente o estádio, procuramos intervir de uma forma ao mesmo tempo respeitosa e radical, exacerbando os princípios de adaptação à topografia da solução original da década de 1960. As propostas buscam inserir quase 200 mil m² de área no entorno da arena de uma forma cuidadosa e sutil, sem perturbar a integração paisagística existente, reforçando a personalidade do Mineirão por meio de uma nova plataforma “topográfica” esculpida ao seu redor, que terá seu uso ativado pela conexão direta e de nível com o entorno e através de programas estrategicamente distribuídos.
A nova esplanada esculpida em desníveis ao redor do estádio pretende ser um formidável espaço semi-público, uma imensa praça integrada visualmente à orla da Lagoa da Pampulha, oferecendo também serviços modernos de lazer, comércio, cultura e entretenimento. Uma área de 80.000m2 reservada totalmente ao público pedestre, um verdadeiro parque suspenso livre da interferência dos fluxos operacionais e acessos de veículos, se adaptando à topografia do entorno e reforçando a monumentalidade e iconografia da arquitetura original do Mineirão.
Oportunidade para mudança
Mas com a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 (em cuja candidatura estivemos envolvidos) no horizonte, a questão mais premente parece ser como se aproveitar desses mega-eventos internacionais para transformar as cidades e o país depois que eles acontecerem. O evento pode ser um catalisador de intervenções de qualidade, melhora infra-estrutura, alcançar status internacional e acelerar a regeneração urbana. Essa é uma questão crucial para arquitetos e urbanistas, e de políticas de governo e planejamento em todos os níveis.
Uma das particularidades desse tipo de projeto é ter que atender a todas essas demandas transformadoras para a instalação de grandes eventos temporários internacionais de curta duração, e ao mesmo tempo permanecer como um legado capaz de ser viável em termos de manutenção e de gerenciamento. Para o evento (Copa 2014), teremos um dos mais modernos estádios do Brasil, atendendo a todos os pré-requisitos internacionais. Como legado, o Novo Mineirão tem um enorme potencial de se gerar atividades todos os dias da semana, além de renda e benefícios para a cidade: um programa diverso de uso flexível junto a um espaço semi-público com lojas e estacionamentos para atender aos jogos e aos espaços comerciais, com fácil acesso e integrado ao entorno imediato: um verdadeiro pólo de atividades, que, acreditamos, criará um novo paradigma de complexo esportivo multifuncional de nível internacional na Lagoa da Pampulha.
O visionário JK e o talento de Niemeyer colocaram Belo Horizonte e Pampulha no mapa mundi há 70 anos. Agora o mundo volta a olhar para nós novamente: as possibilidades são imensas, e também as responsabilidades. Mas nós não deveríamos nos obcecar em sermos mais “impressionantes”, “verdes” ou “eficientes” do que as sedes dos mega-eventos passados. Não se trata desse tipo de competição, o espírito esportivo se trata menos da competição com os outros do que da superação dos próprios limites e da busca pela excelência.
sobre os autores
Bruno Campos, Marcelo Fontes e Silvio Todeschi são sócios da BCMF Arquitetos e autores do projeto executivo de remodelação do estádio do Mineirão.