Como ficar num lugar de passagem?
Com o passar do tempo, a Avenida Paulista perdeu suas praças públicas tão bem cuidadas e os jardins dos casarões também se foram. A via que sustentava o status de “mais agradável da cidade” tornou-se lugar de pressa, onde parar na rua não chega a ser proibido mas é um ato claramente desestimulado. Isso não é por acaso, nem sem querer. Falta espaço para estar na Paulista; quem pára, entra: no café, no bar, no shopping. A rua, o espaço público, hoje são lugares de passagem.
Felizmente, não somos passivos a essas transformações e significamos os espaços que frequentamos, mesmo sob condições adversas. Poderíamos tratar aqui dos protestos, das grandes celebrações que tomam a avenida como palco, mas preferimos tratar das reapropriações do espaço mais sutis, pelas teimosas práticas cotidianas. Cada pessoa que usa a lixeira como mesa ou se acomoda em um degrau, mureta ou canteiro manda um recado para a cidade: “Essa cidade também é minha.”
Te convidamos a passear pela via, parar e olhar (1).
A(sen)sibilidade
O quão insensível pode ser um espaço “acessível”? A substituição do mosaico português deteriorado por um piso plano com guias braile parece o bastante quando se pensa em “cego” e “cadeirante”. Alguém pensou em “gente”? Gente não passa simplesmente pisando na calçada, gente percebe a cidade, relaciona-se com o espaço. Gente não está de passagem, gente fica! Gente sente, e sente fome... Nesse espaço hostil, até matar a fome pode ser difícil. As estratégias de sobrevivência na guerrilha urbana passam até por refeições feitas na boca do lixo, literalmente.
Mureta amiga?
A consagrada notícia de não é possível sentar na Avenida Paulista não é verdade, pelo menos do ponto de vista do preguiçoso. Apesar da escassez do mobiliário urbano instalado explícita e exclusivamente para sentar-se, deparamo-nos com uma profusão de muretas, degraus, gradis e remansos com enorme potencial para o recostar casual, ainda que seja apenas para colocar uma sacola ou apoiar o pé.
O problema está na ignorância desse potencial, ou na deliberada e escandalosa repressão do uso desses pequenos espaços através da instalação de grades pontiagudas e muretas estreitas, que tornam definitivamente inacessíveis espaços que antes foram até amistosos. Não se trata de um jogo de compensações urbanas, cuja contrapartida da instalação de uma grade cortante seria a instalação de mobiliário público funcional e "adequado" a usos específicos. O banco antimendigo engessa tanto a apropriação humana que, sem duvida, também inibe o contato pessoal entre os usuários.
Galeria
Caminhando é possível olhar a cidade com proximidade e velocidade necessárias para ver seus detalhes. Nos deparamos com espaços públicos de diversas composições e qualidades. Os pilotis que sustentam o pavimento superior do prédio a poucas quadras da avenida conformam uma confortável marquise na esquina movimentada, cuja superfície canibalizada por imagens e inscrições de todo tipo se transforma em verdadeira galeria de arte, local de convívio, descanso e principalmente expressão da população.
Sala de estar
Lusco-fusco, esquina, transição.
Com suas pujanças tão distintas, trombam-se Augusta e Paulista no auge das seis da tarde. Esbarram-se as apressadas camisas azul claro com as flanelas xadrez. É mais um dia de semana e nem precisa ser sexta-feira para que a valente boemia paulistana atenda ao brado da descida da Augusta. Há gravata que afrouxe a acabe descendo a rua ao invés de pegar o metrô, e há xadrez que suba de volta para a avenida, em busca do melhor horário do cinema. No meio dessa pororoca que mistura estilos quase desgovernados, pode-se contar com o remanso da esquina: para ver, ser visto, encontrar um amigo ou só fumar um cigarro.
Serventia
Ao se levantar sobre quatro pilares o Masp gentilmente cedeu seu térreo para a população, que dali não saiu mais. A identificação do local como espaço público sempre garantiu certa liberdade de apropriações e usos, e também inviabilizou qualquer tentativa de controle e fechamento do espaço. Mas uma série de medidas recentes aponta o caminho contrário, ameaçando o caráter público concebido originalmente para o local.
Foi assim que, sem cerimônia alguma, se instalaram blocos de concreto demarcando os limites entre a esplanada e a rua. A separação aparentemente sutil provavelmente se justifica em um bloqueio do acesso de veículos, mas se fez sentir no fluxo dos pedestres, que hoje circulam predominantemente na faixa de calçada. O efeito de mureta de separação provocado pela visão serial dos blocos não poderia ser mais infeliz, e agrava a separação proporcionada pela diferença entre os pisos da calçada e do museu, distinção que era mais sutil no tempo do mosaico português...
Palco
Acima dos carros, dos pedestres e das bicicletas, um homem dança (2).
O palco improvisado, é grandioso: tem como cenário a avenida, com suas luzes em movimento, sons polifônicos e público constante. Olhando desse ângulo, a caixa de concreto feiosa é suporte de fazer inveja a muito artista. Mas há idiossincrasia maior do que se tratar de uma lixeira e um morador de rua?
Se falta sensibilidade no cidadão comum para olhar as ruas, ela certamente não será aprimorada olhando de longe, mas com os pés no chão, na vivência diária das calçadas. A esquina fotografada é local de passagem diário de milhares de pessoas, no entanto a percepção de sua vocação para ponto de atração privilegiado parece ter passado despercebido das pranchetas que desenharam as últimas intervenções urbanas empreendidas na Paulista. Haja vista o despojado projeto da CET, que simplesmente instalou grades para conter e direcionar o trânsito de pedestres, e que acabou configurando espaços de parada e estar em diversas esquinas da avenida. Em lugares como esses se sente falta de um projeto urbano sensível, capaz de modelar uma vocação em espaço de generosidade urbana.
A vivência diária revela muitas potencialidades e arranjos inesperados no uso dos espaços, revela também os muitos desacertos urbanos de nossas cidade.
O que falta são leituras sensíveis que orientem as intervenções, abram espaço para novos usos, permitam outras especulações. Se “emitir hipóteses é reconciliar a dúvida e aesperança” (3), mais do que nunca nossas cidades necessitam das duas.
notas
1
COSTA, Vivian Martins Bertelli. Editorial O Guia do não-estar na paulista. ProjetoM900, Faculdade Cásper Líbero, 2012. Disponível em: <http://m900.com.br/#lat=-23.557700484822956&lng=-46.65940778295919&zoom=17>.
2
DICHTCHEKENIAN, Patrícia. Milton, o filósofo dançarino. ProjetoM900. Editorial Vultos. São Paulo, Faculdade Cásper Líbero, 2012.
3
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió, Edufal/Unesp, 2010, p. 13.
sobre as autoras
Vivian Martins Bertelli Costa é aluna do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Foi co-autora do Projeto M900, que realizou uma pesquisa de campo e produção de conteúdo jornalístico hiperlocal sobre a Avenida Paulista, em atividade da referente universidade publicado na internet em 2012. Trabalha com consultoria de inovação em serviços públicos, desde 2011.
Juliana Aoun Monferdini é mestranda da Universidade Presbiteriana Mackenzie, arquiteta e urbanista pela IAU EESC-USP. É professora consultora convidada pelo curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero onde colabora com o Projeto M900 de mapeamento psicogeográfico da Avenida Paulista desde 2012.