Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architectourism ISSN 1982-9930

Fazenda Vargem Grande, Vale do Paraíba, paisagismo de Roberto Burle Marx. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
O artigo recorda uma viagem feita há vinte anos pela Itália e França, comentando hábitos, costumes e alguns projetos de arquitetura


how to quote

GUERRA, Abilio. Sob a sombra das cerejeiras. Quando o olhar e a experiência sensível podem ser fonte do conhecimento. Arquiteturismo, São Paulo, ano 07, n. 078.01, Vitruvius, ago. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.078/4831>.


Aconteceu há exatos vinte anos, quando viajei pela primeira vez para a Europa. Foi uma experiência inesquecível, literalmente. Mas antes de contá-la, caros leitores, contarei primeiro algumas breves impressões que lhes darão subsídios(espero) para uma compreensão mais profunda da minha experiência pessoal (1).

Primeiro, duas situações antropológicas vistas durante a viagem. Ao aguardar no Terminal 4 do aeroporto de Heathrow, Londres, onde os voos da British Air faziam escala obrigatória, matei o tempo olhando aborrecido pela escotilha do avião os estivadores carregando as bagagens em um pequeno utilitário. Todos, sem exceção, eram gordos com rosto avermelhado furado por olhos igualmente avermelhados. Desculpem-me a afirmação contraditória: havia uma exceção! Um rapaz magro, bem magro visto de costas, fazia parte do grupo. Ao jogar uma mala nas costas, virou o suficiente para eu perceber o inevitável: uma proeminente barriga denunciava que era aprendiz nos afazeres do aeroporto e do pub. Algumas horas após, o confronto inevitável. Aterrissado no aeroporto de Veneza – e como é bonito chegar a Veneza de avião – os corpos e gestos dos estivadores me contavam outras coisas: magros, bem magros, curtidos a vinho branco, gritavam com os braços e mãos, que giravam em gestos largos e enfáticos. Dentro da nave ainda hermeticamente fechada, imaginava as vozes estridentes dos trabalhadores e entendi qual povo tinha imigrado para minha terra e qual não tinha...

Em segundo lugar, duas observações tecnológicas em cidades diferentes. Nas ruelas, passagens, cais, pátios, largos e praças de Veneza os esbeltos jovens locais, caminhando ou sentados, conversavam em voz alta no celular. Enormes naquela época, os telefones móveis eram ainda caríssimos objetos do desejo no Brasil, onde o sistema havia sido recentemente implantado. Ao comentar o fato com o amigo que me abrigava na cidade, descobri que em sua absoluta maioria os aparelhos eram falsos, reles brinquedos que o magnífico design italiano havia transformado em réplicas perfeitas. O motivo do uso ostensivo e enganoso vocês já adivinharam, não é mesmo leitores pacienciosos? Em Paris – creio que não havia mencionado ainda que depois de duas semanas na Itália rumei para a França... – fiquei muito surpreso com a tecnologia bancária rudimentar quando comparada à já em uso no Brasil. O orgulho provinciano não demorou muito, pois me dei conta que a famigerada inflação do final dos anos 1980, que abriu as portas para os arrivistas da “República do Alagoas” se assentarem nas cadeiras do Palácio do Planalto em 1990, era o maior motivo para máquinas tão desenvolvidas (2).

E como epílogo deste preâmbulo, conto duas impressões arquitetônicas. Em Bolonha me deparei com uma igreja cujo adro contava com bolas de metal enormes para evitar o acesso de automóveis em cima das calçadas. Era uma evidente intervenção pós-moderna, que rivalizava com a fachada barroca. Ao entrar, a nave central exalava uma harmonia calma do renascimento. No fundo, atrás do altar medieval, uma cripta pré-cristã. A vertigem temporal que sofri só se equipara a que senti muitos anos depois ao conhecer o bairro da Moraria, em Lisboa (mas esta é uma história que conto outra hora). Semanas depois estava em outro espaço religioso, no Monastério Sainte-Marie de La Tourette, em Éveux, cidadezinha próxima de Lyon. Conforme percorria seus espaços interiores ia desmontando na cabeça, uma a uma, todas as avaliações equivocadas que eu havia previamente feito sobre o projeto. Ao contrário do desleixo e improviso que enxergava nas fotos, havia um impressionante controle das medidas, em especial das aberturas: as frestas corridas no alto do corredor que serve a bateria de celas permitem a um homem (francês) de tamanho médio vislumbrar os pátios internos, enquanto a janela maior no final do mesmo corredor contava com um anteparo de concreto externo que obstaculizava a vista do exterior. E, ao adentrar o refeitório de pé-direito duplo, uma impressionante vista para a campagna se descortinava pela esquadria imensa. Neste ambiente – onde o mundano e a carnalidade se impunham ao sacro e ao espiritual – era possível aos religiosos compartilhar com os olhos a vida exterior. Le Corbusier não havia projetado o edifício para ser fotografado, ele o havia projetado para ser vivenciado.

Agora você – curioso e provável leitor único que resistiu a estes episódios enfadonhos – já está preparado para ouvir, e entender, o que realmente queria contar. Estando eu no Vêneto, não foi possível escapar a Andrea Palladio. Na graduação eu adorava as aulas sobre o renascimento italiano, mas confesso que não engolia a obra do arquiteto, que me parecia limitada por uma geometria excessiva, onde estavam ausentes as impurezas típica da vida. As igrejas de Veneza – em especial a do Redentor da Giudecca – já foram suficientes para desmontar essa visão equivocada (não me canso de dizer aos meus alunos para visitarem as obras, pois o que mostro nas projeções são pálidos simulacros das obras de verdade...).

Mas o que me levou a canonizar Andrea Palladio no meu íntimo agnóstico foi a entrada tímida que fiz na Villa Capra, em Vicenza. No acesso à propriedade, mais conhecida como La Rottonda, uma alameda com muros nos dois lados afunilava a visão e revelava apenas a parte central do palácio – o frontão e as colunas jônicas evocando a antiguidade grega; as janelas quadradas nos cantos superiores, marca registrada de Palladio; a escadaria imponente de muitos degraus; o cilindro central que vaza o volume para surgir na parte superior do telhado. Quando finalmente se acessa o jardim os olhos são automaticamente capturados pela paisagem desobstruída à esquerda, uma magnífica vista do campo, com morros e morros sem fim, com uma ou outra construção em seus cumes. O projeto famoso dispensa maiores comentários, mas o que surpreende é o caráter completamente distintos das quatro fachadas iguais, como se Palladio quisesse nos dizer que a perfeição ideal da criação arquitetônica – assim como a perfeita criação divina, a natureza – só é realizada para ser vivida imperfeitamente pelos homens.

Ana Paula Koury e Abilio Guerra na Villa Capra, ou "La Rottonda”, Vicenza. Arquiteto Andrea Palladio
Foto Renato Anelli

A primeira fachada a ser vista é pouco interessante, pois não há um ponto de vista que permita vê-la desobstruída; ela funciona como um chamariz, como algo a ser desvelado. A segunda, a que se volta para a bela vista, é a mais imponente e a tomamos por hábito como a principal (mas o desenho do jardim, mais extenso nesta face, confirma que Palladio lhe conferiu o protagonismo). A terceira fachada, a que se opõe à da entrada, tem uma vista igualmente linda, mas já não tem o mesmo impacto sobre os expectadores, pois o sublime nos surpreendeu na anterior.  A quarta, bem, da quarta nada me lembro... Mas me lembro como se fosse ontem da sensação de estar vivendo algo especial parado sob a sombra fresca de uma árvore, uma das muitas da mesma espécie que ladeia parte da casa. E a fruta! Bem, a fruta fica para o comentário final.

Uma ou duas semanas depois estava diante da Ville Savoye, em Poissy, arredores de Paris. Para chegar lá tive que encarar ao menos duas horas de passeio forçado, alternando metrô, trem e ônibus, mas a obra-prima de Le Corbusier, uma das casas mais famosas de todos os tempos, valia o suor. Ainda mais depois de conhecer La Rottonda e ter lido o belo ensaio de Colin Rowe, The Mathematics of the Ideal Villa, onde ficam visíveis os vínculos sutis entre o modernismo revolucionário de Le Corbusier e a tradição geométrica do renascimento palladiano.

Se você, meu último leitor, chegou até aqui, não vou chateá-lo descrevendo esta obra que você provavelmente visitou e que seguramente conhece em detalhes no projeto. Basta dizer que as formas retas do seu volume principal sob pilotis ao serem contraditas pelos planos curvos dispostos no térreo e na cobertura sintetizam o funcionalismo do primeiro moderno e a liberdade plástica que o arquiteto sempre cultivou. Mas o que você talvez não tenha notado é que a casa está ladeada por muitas árvores. Quando visitei a casa, elas estavam com as copas cheias de folhas de cor verde claro e carregadas de frutos. Cerejas. Sob a cerejeira, deslumbrado com um dos maiores espécimes do movimento moderno internacional, me veio a certeza que Le Corbusier esteve nos mesmos lugares e na mesma sequência do que eu. Primeiro, mirou extasiado o palácio de Palladio e concebeu na imaginação sua própria obra; depois, contemplou satisfeito sua versão contemporânea para o mesmo desafio de construir o microcosmo do homem tendo o macrocosmo divino como inspiração. E pensou isso fazendo exatamente o que fiz nos dois lugares: comendo discretamente cerejas surrupiadas do pé (3).

Ville Savoye, Poissy. Arquiteto Le Corbusier
Foto Abilio Guerra

notas

1
O presente artigo me foi involuntariamente sugerido pelo arquiteto Adalberto da Silva Retto Jr. Ao me convidar para uma viagem de estudo a obras de Andrea Palladio e Le Corbusier, meu querido ex-aluno, hoje destacado professor do curso de arquitetura da Unesp de Bauru, acabou me evocando à memória uma das viagens mais marcantes da minha vida.

2
Para os mais jovens é necessário explicar que durante o governo Sarney a inflação brasileira ficou descontrolada, o que motivou diversos planos econômicos, todos fracassados. De fevereiro de 1989 a fevereiro de 1990, a inflação chegou a 2.751%, sendo que ultrapassou a 80% no mês de março de 1990, quando assumiu o presidente Fernando Collor de Mello. As classes sociais faziam o que podiam para se proteger. As camadas mais altas tinha a sua disposição aplicações financeiras e acionárias que garantiam juros superiores às taxas inflacionárias, a compra de dólar e o depósito em contas secretas em paraísos fiscais. As camadas baixas, sem acesso ao sistema bancário, tinha como único recurso antecipar todas as compras para proteger ao máximo o valor do salário, que era mínimo. As camadas médias tinham a disposição uma aplicação de resgate imediato, que era feito em prazos muito curtos, em geral de um dia, que era chamado pela alcunha de overnight. Para conseguir esticar o salário até o final do mês, a classe média era obrigada a apelar para o overnight praticamente todos os dias úteis, perdendo tempo incomensurável em filas nas agências bancárias. Como não existia Internet na época, a modernização do sistema bancário, em especial dos caixa eletrônicos, constitui-se um sucedâneo para o problema.

3
O título inapropriado deste artigo, “Sob a sombra das cerejeiras”, revela de antemão o segredo que se pretende revelar apenas no final. É como colocar no título de um romance policial o nome do assassino revelado somente na última página. Mas não consegui resistir à beleza enunciadora da frase.

sobre o autor

Abilio Guerra é arquiteto (PUC-Campinas), mestre e doutor em História (IFCH Unicamp) e professor da FAU Mackenzie. Com Silvana Romano, é editor da Romano Guerra Editora e do Portal Vitruvius.

comments

078.01 viagem pela memória
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

078

078.02 ensaio fotográfico

Uma das Venezas possíveis

Tuca Vieira

078.03 na estrada

Cerro, El Volcán

Luiza Bussius

078.04 ministério do arquiteturismo

Ministério do Arquiteturismo adverte...

Michel Gorski and Abilio Guerra

078.05 passeio fraternal

Um domingo no Sítio Alecrim

Eduardo Goldenberg

078.06 viagem cultural

Três Beijings em quatro dias

Gabriela Celani

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided