“The most architectural thing about this building is the state of decay in which it is.”
Bernard Tschumi, “Advertisemente for Architecture”
1.
A Nova Sede do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) inaugurou, em 9 de março, o seu Anexo Original. ‘Sala de Espera’, de Carlito Carvalhosa, e ‘Obra’, do fotógrafo paulista Mauro Restiffe (1), são as duas exposições que inauguram este espaço, com propostas que dialogam de maneira franca e explícita com o próprio edifício do museu, em dimensões que tencionam com a espacialidade, o tectônico, o temporal e a memória. O trabalho de Restiffe ocupa o Mezanino deste espaço. São 12 fotografias expostas, onde o público percorre uma interpretação daquilo que não presenciou, o que imaginava operar no interior daquele edifício já esvaziado pelo Detran, mas, certamente, uma memória visual deste processo entre a ruína e a reconstrução, como apontou o Diretor do MAC USP, Tadeu Chiarelli, no texto curatorial da exposição.
2.
As fotografias de Restiffe são sombrias. O edifício é apresentado como se suas entranhas estivessem abertas: a retirada de móveis, divisórias de drywall, forros de gesso, cantoneiras metálicas, pinturas inacabadas, luminárias e outros tantos improvisos impostos pelos usos de uma repartição pública ainda expõem através de suas marcas uma presença que se quer incômoda, um ruído à racionalidade do concreto armado projetado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Esta narrativa dada ao edifício parece ainda reforçada pela maneira como Restiffe constrói e organiza uma visualidade.
Todas as 12 fotografias apresentadas trazem elementos determinantes à construção de uma perspectiva contraposta àquela que o visitante experimenta ao vivenciar este recém inaugurado museu, de um branco homogêneo e reluzente de suas paredes e estruturas recém pintadas, de uma transparência delicada de seus grandes panos de vidro ou do reflexo solar de seus brises metálicos. Ao contrário, a luz das fotografias de Restiffe é sempre baixa. A luminosidade penetra no interior do edifício, que, apagado e taciturno, recebe uma luz suave e delicada de um céu encoberto ou mesmo de uma luz solar filtrada através de um véu de construção. É a cidade que ilumina o edifício sempre às escuras, mesmo quando o lusco-fusco de um pôr do sol já pede a presença das centenas de luzes de faróis dos carros ou dos postes de iluminação pública. Também nas fotografias realizadas no interior do edifício, o foco de luz está sempre distante do ponto a partir do qual as fotografias foram realizadas. Muitas vezes, Restiffe esconde suas entradas, posicionando elementos construtivos, como os pilotis, de tal forma que não se possa ver nem compreender de onde ou como adentram ao espaço. Em outro caso (Obra 3), a luz penetra por uma junta de dilatação, um corte cirúrgico no concreto onde nada se pode ver de seu exterior. Trata-se de uma visualidade construída a partir da escuridão, em que também a presença do homem, do trabalhador responsável por este processo de reconstrução é praticamente ausente, a não ser em dois momentos; quando se retira para um almoxarifado (Obra 1) ou quando contempla o exterior, a cidade (Obra 10), sem deixar de ser coadjuvante. Assim, a vida do próprio edifício parece estar à espera, pois estática e contemplativa.
A baixa luz das fotografias assinala, ainda, a escolha de um filme fotográfico sensível, produzindo um grão de marcada tessitura. Assim, a materialidade fotográfica, construída através de um ruído, uma rugosidade, se mistura com a poeira, a sujeira e os detritos. Restiffe toma, portanto, para suas fotografias, a materialidade do próprio edifício em ruína, seus vestígios. Transforma e interpreta, através da linguagem fotográfica, o que é pó, sujeira e ruído. Faz desta matéria sem forma uma narrativa para um edifício abandonado, destruído, maltratado, em seu “estágio anti-heroico”, como assinalou Chiarelli. Ruína que aparece aqui como a antítese de uma perfeição plástico formal do projeto original. Antítese da própria reforma levada a cabo pelo museu, aquela que o visitante experimenta com o edifício recém reformado.
3.
O edifício da Nova Sede do MAC USP foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer junto ao complexo do Parque do Ibirapuera, para as comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Em 1954, quando inaugurado, foi ocupado pela Secretaria de Estado da Agricultura e, poucos anos mais tarde, pelo DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo), que ali permaneceu por meio século. Desde então, seu interior de planta livre, janela horizontal, pilotis, brises e terraço foram sendo ocupados pelas repartições dos serviços administrativos do Departamento de Trânsito. Concebido sem um programa definido, seu espaço foi sendo repartido. Novas instalações, forros, pinturas e acabamentos foram introduzidos, dando forma, sem forma, a uma dinâmica imposta por uma cidade pautada e constantemente redesenhada pelo automóvel. Dinâmica interior que bem lembra as necessidades cotidianas de uma galeria ou um museu de arte, que, entre uma exposição e outra, precisa refazer e pintar suas paredes, constituir novos espaços e executar novas instalações. A ocupação deste edifício pelo MAC USP parece, portanto, reafirmar uma natureza espacial do interior do DETRAN, uma natureza dinâmica, instável, improvável e adaptável às necessidades cotidianas das instituições. Uma dinâmica amparada pela própria alma dos edifícios de planta livre, como este projetado por Niemeyer.
Mas é certo frisar que, agora, o edifício aparece resignificado como espaço cultural e não mais como o espaço da burocracia do automóvel, tão contrário a uma ideia de cidade contemporânea, onde este meio de transporte, ícone do interesse privado, perde espaço para a cidade como lugar do público, como espaço público por excelência. Neste sentido, foi preciso devolver ao edifício uma dignidade plástica de leitura clara. Devolver não só uma espacialidade, mas uma visualidade típica dos volumes brancos da arquitetura moderna, oposta à complexidade da ruína, suja, composta de pó, vestígios e ruídos, tal como Mauro Restiffe apresenta neste contexto expositivo.
4.
As 12 fotografias que compõem a exposição de Mauro Restiffe são apresentadas pelo texto curatorial, elaborado por Tadeu Chiarelli, como uma seleção, concisa, de um conjunto maior daquilo o que realmente parece ter sido produzido pelo fotógrafo. ‘Mais de mil e quinhentas fotografias captadas durante quase três anos’ é a ‘Obra’ não revelada, que só se pode imaginar, mas nunca visualizar. Assim, a curadoria apresenta um trabalho que se quer mais interpretação do que ‘documento’, como Chiarelli deixa claro.
As fotografias são ampliadas em grandes dimensões (137 x 205 cm), o que muito se assemelha às típicas ampliações de fotógrafos contemporâneos tais como Andreas Gursky, Thomas Struth e Candida Hoffer (para ficar apenas com alguns daqueles que possuem uma produção que tenciona com a arquitetura), frequentemente lembrados pelos milhões que cada uma de suas fotografias movimenta no mercado da arte. Um mercado que tem nas dimensões de suas obras um importante mecanismo de significação, já que, assim, as fotografias parecem ocupar espaços simbólicos semelhantes aos de telas e instalações de obras contemporâneas. Em paralelo as suas dimensões, a interpretação de Mauro Restiffe parece demandar a justaposição destas fotografias com a temática da ruína, que, no passado, era recorrente no interior dos museus. As 12 fotografias expostas ocupam, portanto, não só os quase 100 metros lineares do Mezanino deste Anexo Original, mas, principalmente, um espaço simbólico que a fotografia vem ocupando nos museus e galerias de arte. Elas demandam, portanto, um estatuto de obra de arte e um espaço no interior do museu.
A maneira como as fotografias são apresentadas – com apenas 12 exemplares de ampliações de grandes dimensões – parece estar, portanto, mais associada a um circuito ligado à fotografia contemporânea do que propriamente à arte contemporânea, que tem na fotografia mais um dispositivo do que um suporte. Neste sentido, o que se poderia chamar do arquivo de fotografias produzido por Restiffe, é uma ausência. A exposição destas mais de mil e quinhentas fotografias, em seu formato arquivo, poderia ser uma maneira de reforçar que, muito mais do que comemorar a retomada de uma possível alma do edifício modernista, branco e puro, a inauguração da Nova Sede do MAC USP é um momento chave para o futuro – conceito intimamente ligado ao arquivo – da arte contemporânea no Brasil, de suas formas e objetos de representação. Questões já evidenciadas através de outras ações que vêm sendo conduzidas pelo MAC USP. Desde 2011, este museu mantém um programa de doações para renovar e ampliar sua coleção e, ainda, convida com regularidade, desde 2010, diversos artistas contemporâneos para apresentar e debater sobre a produção artística brasileira. Missão educacional e vontade de sensibilização ao patrimônio artístico que fazem deste museu uma verdadeira arena de debates e produção.
5.
Expostas no Anexo Original, as fotografias de Mauro Restiffe apresentam um estágio decadente da arquitetura de Niemeyer, o que remete ao ‘estágio anti-heroico’ como destacou Chiarelli. Neste sentido, a presença destas fotografias, no interior do edifício, cria uma espécie de dialética, de contraponto temporal, que, ao final, se completam.
Para se ingressar ao Anexo Original, o visitante precisa vivenciar, experimentar, minimamente, alguns dos espaços deste museu. Entra-se por um volume menor e transparente, destacado do bloco principal do edifício. Percorre-se uma galeria clara com pé direito duplo e com grandes janelas horizontais. Sobe-se por uma escada solta no espaço e que, fletida, conduz e orienta o olhar, para se acessar o mezanino do bloco principal. De um espaço mais fechado, passa-se uma passarela translúcida e, por fim, chega-se ao interior do Anexo Original, diretamente a seu mezanino. Trajeto que muito se aproxima de uma ‘promenade architecturale’.
Através deste percurso, desta estratégia conceitual, o visitante organiza uma experiência em relação ao edifício, ao seu espaço. Há, portanto, uma narrativa construída através da própria vivência espacial do visitante que percorre o museu. Vivência que, inevitavelmente, adere às fotografias, já que alcança seu ápice no encontro com o trabalho de Restiffe, o ponto final de uma narrativa espacial. Logo se compreende que aquelas imagens estão ali por um motivo claro. As fotografias de Restiffe parecem fazer parte de um mesmo sistema discursivo, ao qual se inclui a própria inauguração da Nova Sede do MAC USP. Por antítese, elas asseguram e justificam de modo implícito aquele bloco modernista branco, restaurado.
6.
Mauro Restiffe foi chamado para registrar este estado do edifício por ter realizado a série ‘Empossamento’. A primeira cerimônia de posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, quando a população ocupou o eixo monumental de Brasília, foi o tema deste registro. Tomadas pela multidão, as obras de Niemeyer transformaram-se em outras, rebaixando seu ‘tom heroico e solene’, segundo Tadeu Chiarelli. Este estado outro da arquitetura de Niemeyer, em Brasília, foi justamente o objeto de interesse do museu ao chamar Restiffe para registrar o edifício da Nova Sede do MAC USP, também em seu estado outro, quando em processo de reforma. Como promovedor destas fotografias, percebe-se uma intenção da parte do museu em se apropriar desta interpretação.
O tom rebaixado da obra parece ser, portanto, a matéria final de interesse do museu. Ao mesmo tempo em que sublinha este estágio ‘anti-heroico’, a ‘Obra’ de Restiffe reafirma e institucionaliza a Nova Sede do MAC USP como edifício restaurado, monumentalizado. Institucionaliza-se um estado heroico e solene, um estado ‘original’ do edifício. Esta memória visual construída entre os dois estágios do edifício – ruína e prisma restaurado – adere à narrativa e concretiza um projeto de museu, como tom elevado da obra, do edifício. O pó, a sujeira e os detritos, a decadência taciturna das fotografias de Restiffe, parecem penetrar nas paredes da Nova Sede do MAC USP, dialogando com as toras fincadas nas paredes do mesmo Anexo Original, na obra ‘Sala de Espera’ de Carlito Carvalhosa.
Trata-se, é certo, de uma lição narrativa, ao que tange à visualidada. É uma exposição imperdível para todos aqueles que têm nas artes, na arquitetura e também na história qualquer relação de amor ou trabalho.
notas
NA
Agradeço ao Samuel de Jesus e a Anne Capelo pelos comentários e sugestões.
1
Obra, Mauro Restiffe. São Paulo, MAC USP, 2013 <http://www.mac.usp.br/mac/EXPOSI%C7OES/2013/obra/home.htm>. A exposição Obra de Mauro Restiffe fica em cartaz até 1 de novembro de 2013.
sobre o autor
Eduardo Costa é arquiteto e mestre em história pelo IFCH-Unicamp, onde realiza seu doutorado sobre a formação do arquivo de fotografias do Iphan. Entre 2011 e 2012, realizou doutorado sanduíche na Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como arquiteto, ganhou prêmios em concursos nacionais e trabalhou na assessoria técnica USINA-CTAH. Foi um dos vencedores do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, no ano de 2010.