A Liberdade pulsa. Pessoas, carros, frutas. Calçadas, lojas. Ruas e mais ruas, que, em meio a um frenesi, se tornam um pouco calçada e um pouco loja. Ruas ritmadas por postes vermelhos de onde brotam redondas luminárias brancas: cerejeiras urbanas carregadas de botões; cerejeiras sempre prestes a abrir suas flores.
Interrompendo essa música, uma figura de silêncio: igrejinha acinzentada no fundo de um beco, uma pausa de semicolcheia. Edifícios crescem colados às suas singelas empenas. Caminhões e o constante vaivém de carga e descarga formam um véu que dança em frente à sua fachada. Adentrando a pequena Rua dos Aflitos, a igreja vai se revelando pouco a pouco. Uma torre sineira, um oculum, uma porta, frisos, ornamentos, a cada passo, a fachada vai se completando frente aos olhos. A Igreja Nossa Senhora dos Aflitos toma forma.
A igreja viu crescer cada uma das paredes que a cerca, cada uma das calçadas que nos leva até sua porta. Antes de igreja incrustada no bairro asiático, dominava a paisagem de uma das mais antigas necrópoles da cidade de São Paulo, leito de escravos, indigentes, não católicos e condenados, Cemitério dos Aflitos.
Durante sua vida, de finais do século 18 a meados do 19, o cemitério recebeu aqueles que eram enforcados logo ali, no quarteirão de cima, no Largo da Forca. Foi justamente a forca, dizem alguns, que deu o nome Liberdade à movimentada praça. Nos idos de 1821, o soldado santista Francisco José das Chagas foi condenado à forca por encabeçar uma revolta reivindicando melhores salários e igualdade de tratamento para soldados portugueses e brasileiros. Chaguinhas, como era conhecido, foi, então, levado à cidade de São Paulo e à forca. Forca preparada, corda no pescoço. Conforme o peso do corpo se descarrega na corda, ela se arrebenta! Chaguinhas vai ao chão.
Seguindo os costumes da época, o público reivindica o perdão do condenado. “Liberdade, liberdade, liberdade”. À forca é levado novamente. “Liberdade, liberdade, liberdade”. Novamente corda rompida, novamente Chaguinhas ao chão, novamente erguido à forca. “Liberdade, liberdade, liberdade”. Também não foi o terceiro enforcamento que lhe tirou completamente a vida. Para alguns, o soldado foi espancado até a morte já que apresentava sinais vitais mesmo após o estrangulamento. Para outros, a corda se rompeu novamente e Chaguinhas morreu na quarta tentativa de enforcamento. Seja como for, a liberdade não foi concedida a quem desafiou a Coroa Portuguesa. O dito milagre, entretanto, não passou despercebido. A negação da liberdade a Chaguinhas se cristalizou em nome de bairro, praça, estação, ambiência urbana. Liberdade.
Passados quase duzentos anos de seu suposto batismo, o lugar mantém vivo em seu nome o clamor pela liberdade. Entretanto, Chaguinhas e sua luta foram sendo apagados da memória dos paulistanos. A liberdade do soldado condenado à forca vai se transmutando na liberdade de imigrantes que cruzam oceanos em busca de uma vida nova. A liberdade do recomeço.
Mais alguns passos na Rua dos Aflitos, a cidade fica do lado de fora e nós, do lado de dentro da igreja. A passagem é emoldurada pelo cheiro das velas. Santos, retábulo, nichos, toalhinhas de crochê. Atravessada a curta nave, o olhar se volta ao caminho percorrido. O olhar vai ao alto, um pequeno coro, uma balaustrada de madeira. À direita, uma porta. Fitas, flores, bilhetes enterrados em suas fendas. Chaguinhas passou sua ultima noite em uma cela situada no interior da igreja. Os condenados deviam se aproximar de Deus. O soldado deixou a Nossa Senhora dos Aflitos e seguiu rumo à forca pelas portas às quais os pedidos hoje se fundem. Bilhetinhos de papel novo reluzente, bilhetinhos de papel amarelado pelo tempo, bilhetinhos cobertos pelas camadas de tinta recebidas pela porta. Cada pequeno pedido aflito colocado nas fendas das portas é a lembrança de que o grito de liberdade por Chaguinhas vai sendo esquecido pela grande metrópole.
sobre a autora
Denise Fernandes Geribello é arquiteta e urbanista, mestre em História e doutoranda em “História e fundamentos da arquitetura e do urbanismo”.