Lima é tão useira e vezeira em se vestir de neblina, que chega a dar saudades do azul do céu de Itanhaém.
Desembarquei no aeroporto Jorge Chavez em fevereiro, num dia nublado e quente de verão. Chavez, herói nacional como nosso Santos Dumont, fica na pitoresca cidade portuária de Callao, perto de Lima. Chabuca veio me buscar, atrasada, guapa e feliz.
Ela me escreveu pela primeira vez quando tinha 14 anos e eu 16. Sua primeira carta chegou num envelope aéreo de listras vermelhas, quando o Bom Retiro ainda reacendia a shtetl: no bairro ainda se encontrava, de manhã cedo, caminhando apressados, grupos de velhos judeus que iam rezar a Shacharit na sinagoga dos imigrantes da Bessarábia que ficava na rua da Graça; na hora do almoço, varenikes e krepalahs fumegavam nas grandes e gastas panelas de minha vó.
Ela me perguntou se queria ser seu amigo. Morava na calle Rio Moche, igualzim meu segundo nome, no distrito de Pueblo Libre. Meu coração, que desde sempre mora do lado esquerdo do peito, claro que quis.
Por quatro anos trocamos besos calientes em dezenas de cartas que demoravam a chegar. Quando começamos a universidade, nos olvidamos. 36 anos depois ela tornou a me escrever, agora pelo Facebook: “Lembra de mim?”.
Lembrava.
Dezenas e dezenas de cartas haviam sobrevivido aos diversos bota-foras de inutilidades e velharias que costumamos juntar.
Entre ires e vires finalmente aterrissei para viver con Chabuca en San Borja.
Passados cinco meses o espanhol às vezes se mistura com o português – e os sabores, bonitezas e algumas malezas daqui vão deixando suas impressões.
Talvez sejam os ventos do norte, não sei, mas nesse lado do Pacífico o trânsito é belicoso e as buzinas raivosas ardem no ouvido; de ônibus e vans, em geral velhos e mal conservados, os cobradores gritam a anunciar o trajeto e a disputar passageiros.
Quando não dirigem seus carros-buzinas, os limenhos são formais e bem educados. As viagens de táxi são bem mais baratas que as de São Paulo e, como nos mercados de Jerusalém ou Istambul, se pechincha antes de subir no carro, como fazia essa senhora na avenida San Luiz, em San Borja.
San Luiz, San Borja! Tanta santidade chega à cozinha. Nesses dias frios de julho, comer uma mazamorra fumegante, delicioso doce à base de “maiz morada” (uma espiga de milho quase negra) e pêssego, esquenta e acalenta a alma. Se os leões ainda rugem, atravesso a avenida e no mercado “El Eden” devoro, sem culpa, um suave, saboroso, leve e quase etéreo pastel de acelga.
El Eden é um dos muitos mercadinhos populares que existem por aqui. É acolhedor e tem de tudo. Tem “caseritos” vendendo roupa, costurando, consertando sapato, panela e liquidificador, preparando comida quentinha em mesas baixinhas onde comemos “agachaditos” menús de 7 soles; claro, tem frutas, flores que nunca faltam em casa, e legumes e verduras que não conhecemos no Brasil; que país incrivelmente biodiverso!
Quero contar sobre as ruas de San Borja.
Elas convidam para o vagar. Devagar. Ao contrário das avenidas, são bem silenciosas. Se escutam os pássaros, pombas com seus tú tú rúúú, e os amoladores de facas se anunciando com gaitas de plástico que, num repente, escorregam do agudo para o grave e, novamente, deslizam do grave para uma nota aguda. Os passeios são largos, bem conservados e, sobretudo, verdes.
As ruas de San Borja estão cheias de verde. Com tanto verde é difícil se lembrar que Lima está ladeada pelo deserto costeiro.
Perambulando pelas ruas de San Borja encontro uma praça.
Virando esquina, ainda uma outra praça.
E mais outra.
Em muitas praças, uma santa cuida do jardim. Deve ser uma das caras de Mama Pacha.
Ruas bem limpas chegam a oferecer bolsas plásticas para que continuem assim: cidade limpa não é a que mais se limpa, mas a que menos se suja.
Em algumas praças, a própria prefeitura cultiva hortas.
Em outras praças, integradas às áreas verdes, espaços cobertos estão sempre com atividades e oferecem, das sete da manhã às dez da noite, aulas de tai-chi, danças populares e de salão, ginástica aeróbica e musculação por 2 soles a hora.
E com tanta área verde, o manejo da poda se faz pelos puntos de acopio (coleta). Solução simples e eficaz, integrada à paisagem.
A prefeitura daqui também tem um outro programa bacana - San Boja Mas Verde – para estimular os moradores a esverdearem seus terraços. O poder público oferta ao participante plantas, vasos e assistência técnica. Quem recebe tem a responsabilidade de fornecer novas mudas que serão compartilhadas com mais gente. Meus tomates e temperos estão crescendo numa estrutura feita de madeira e garrafas de yogurt reutilizadas.
Nesses dias de comemoração da independência do país, chamados de festas pátrias, aprendendo a popular dança Marinera Norteña, faço altivo meu cepillado, giro o lenço com a mão direita ao alto, empino as costas e saúdo: Viva el Peru!
sobre o autor
Dan Moche Schneider é avô de Clarita, volviendo a los 17. Engenheiro, mestre em saúde ambiental, professor, lixólogo mililtante, consultor em gestão pública de resíduos.