RIO, 2014 – Do alto do Morro da Providência um menino acorda e olha pela janela, ele avista toda Baía de Guanabara, navios, porto, galpões, viadutos cinzentos, telhados de fibrocimento e caixa d’água azuis. Durante bastante tempo essa paisagem ficou estagnada, e sua única alteração arquitetônica era o lodo e o mofo em tons esverdeados nas fachadas e telhados, mas, apesar de sua pouca idade, ele percebe que muitas coisas estão mudando. O que chama atenção agora é um brilho muito forte vindo do porto, algo que parece refletir a luz do sol – seria um navio? Um edifício? Um container? Imaginava. Essa dúvida causa certo desconforto, pois depois de tanto tempo esquecido, o morro está em alerta em decorrência dos grandes eventos vindos para o Brasil, como um campeonato mundial de futebol e os jogos olímpicos. O morro que era tratado como algo indiferente na paisagem urbana por muito tempo, agora aparece como um objeto exposto em uma vitrine, ganhando um destaque na cidade recebido com alegria e desconfiança pelos moradores. O impacto visual e a desconfiança do menino causados pelo reflexo da janela foram tão grandes, que ele resolveu descer o morro para averiguar o que era. O menino era conhecido no morro pelo som das iniciais de seu nome, “Agapê”; ele tem 11 anos e estuda em uma escola perto de casa que agora está em período de férias. Normalmente ele fica sozinho em casa, pois sua mãe trabalha na Zona Sul cuidando de outras crianças, e para chegar lá no horário ela precisa acordar bem cedo. Sua rotina em períodos de férias é: acordar, preparar o café, jogar videogame, ver televisão e ir para rua encontrar os amigos. Esse cotidiano que parece normal para qualquer criança em período de férias não era o mesmo há uns anos atrás. Há três anos a rua era a sua primeira casa, muitos jovens e crianças viviam nas ruas: uns por falta de dinheiro e necessidades básicas, mas outros não, como o caso de Agapê. Para ele era uma oportunidade de ganhar um dinheiro fácil, que sua família não poderia lhe dar. Em poucos minutos ele conseguia bastante dinheiro pedindo aos motoristas parados nos semáforos e engarrafamentos, logo, enquanto os meninos de classe média comiam um modesto pão com manteiga no café da manhã, ele podia comer uma pizza da Pizza Hut como bem desejava. Já aos nove anos ele possuía certa independência derivada da subversão do espaço urbano. A cidade sempre foi um meio de subsistência, muitos meninos se empregavam no comércio de drogas ilícitas, outros pediam dinheiro, e a maioria executava serviços básicos como engraxar sapatos, guardar carros e vender frutas da estação no semáforo e nas áreas mais ricas da cidade. Isso criava um sentimento de independência para esses meninos. Apesar da discriminação relativa às atividades informais, eles se orgulhavam de ter uma autonomia sobre suas vidas, fazendo da cidade a sua casa. Hoje esta situação se modificou, pois com os programas de bolsas do governo e o mercado de empregos em alta, consequentemente, a intolerância do Estado a esses meninos se tornou mais intensa, com a justificativa de que não há motivo desse cenário acontecer. Após o café ele subiu na laje para observar o vento e ver se daria para soltar pipa, o dia nasceu claro com algumas nuvens, mas o céu estava repleto de urubus que, com seus bicos afiados, poderiam colocar em risco as pipas no céu. Ele desce a escada tortuosa e vai para rua, que estava estranhamente muito iluminada pelo sol, como se a luz fosse uma bruma branca que pairava no morro. O Morro da Providência é uma favela, ou seja, é um espaço urbano planejado, porém, não pelo poder público, mas pelos que ali residiam. Tanto o nome “providência” quanto “favela” são provenientes da Guerra de Canudos, que foi um movimento de resistência travado pelos seguidores de Antônio Conselheiro contra as tropas republicanas no Nordeste brasileiro. Faveleiro é o nome de um arbusto típico do Nordeste, e Favela (1) era o nome de um morro que ficava nas proximidades de Canudos e serviu de acampamento para as tropas. Favela não é um termo hegemônico no Brasil para designar esses lugares. Para os moradores o termo mais usado é “morro”, e em muitas outras regiões do Brasil esse termo varia: bairro, comunidade, aglomerado, baixada, grota, periferia; favela como um assentamento urbanístico é um termo tipicamente carioca que acabou se disseminando. A Favela da Providência foi formada em 1987, quando veteranos da sangrenta Guerra de Canudos receberam a promessa de concessão de terras no Rio de Janeiro. Ao chegarem e descobrirem que não havia terras disponíveis, depois de ocupar um edifício em frente ao Ministério da Guerra, eles foram deslocados para esse morro, que inicialmente foi batizado de “Morro da Favela”, depois, imigrantes e escravos também se estabeleceram por lá. O local se tornou uma boa opção para aqueles que queriam morar perto das regiões centrais com baixo custo, aliás, esse fenômeno é ainda muito forte na cidade do Rio de Janeiro. Durante anos esses territórios foram tratados como uma subcidade, uma anomalia que precisava ser corrigida, o descaso era tão grande que poderes paralelos tinham ampla liberdade para instaurarem leis próprias.
Já na rua, em meio a uma feira que ocorre toda segunda, Agapê encontra alguns amigos, que o convenceram a jogar bola na quadra ali perto, eles dizem que foi construído um teleférico no mesmo local. Agapê contesta – tele... o quê? Seu amigo respondeu – é um bondinho para levar os turistas. O governo coloca que essa obra é para melhorar a vida dos moradores, mas pode-se perceber que esta também não é uma opinião hegemônica. No caminho até a quadra, de becos inclinados, vê-se algo que vem aterrorizando os moradores já algum tempo. Uma sigla escrita toscamente nas casas (SMH – Secretaria Municipal de Habitação), em spray de cor azul, lembra a tática nacionalista de separar católicos de judeus, mas aqui ela separa quais casas serão demolidas para as futuras obras e quais não serão. A situação de descaso com as favelas, que há muito tempo foi intensa, dissipou-se, inclusive empresários de megacorporações voltaram seus olhos para elas. A favela há algum tempo foi colocada num patamar de assentimento, sendo promovida pela mídia e o turismo, o que mudou a visão dos moradores do Rio sobre ela. A história do Morro da Providência, inclusive, foi tema de uma novela brasileira com status de superprodução, levada para inúmeros países e ganhadora do prêmio Emmy, entretanto, o que parecia ser a solução de todos os problemas (a valoração do cotidiano dos morros cariocas) trouxe novos impasses. O amigo de Agapê, por exemplo, disse que sua casa foi marcada pelo spray azul, e boatos falam que sua família irá embora para dar lugar a um percurso novo no bairro. Para todos do morro um grande plano estava se concluindo, com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em 2010, o poder paralelo deixou o seu comando. Policiais e soldados subiram o morro para ocupá-lo, instalando lá uma base de operações e controle. Para o governo do Rio de Janeiro essa foi uma retomada de território depois de anos de descaso. Já para as pessoas que moravam ali foi, num primeiro momento, uma ótima ideia, pois traria infraestrutura básica como água, luz, coleta de lixo, saneamento, tevê e internet, porém, revelou-se aos poucos que esse tratamento teria um preço. Anteriormente à ocupação das UPPs, o poder paralelo patrocinado pela venda de drogas ilícitas controlava parcialmente a região. Muitos serviços, como tevê, internet e energia elétrica, eram executados clandestinamente; e muitas atividades eram patrocinadas pelo tráfico de drogas, de festas a eventos comunitários. Quando a polícia subia o morro era para uma operação específica, normalmente impulsionada por algum fato exposto pela mídia ou para extorquir o tráfico, prometendo não atrapalhar seus negócios. O tratamento era muito diferente, as subidas para operações de conflito sempre traziam o veículo apelidado de “Caveirão”, ele era equipado com blindagem e equipamentos de guerra, sua visita era temida por todos, pois o conflito era certo. O som do Caveirão subindo o morro é citado recorrentemente como um pesadelo, e o comportamento dos policiais eram, e ainda é em determinadas ocasiões, preconceituoso com os moradores. Frutos de um treinamento militar, policiais reconhecem os habitantes como uma dualidade, aliado ou inimigo. Com as UPPs o comportamento ficou mais apaziguador, pelo menos dentro dos bairros, mas os moradores sabem que lá embaixo, na cidade, a situação é diferente (ou invertida). Na quadra onde Agapê joga bola hoje estão afixados vários cartazes de protesto dos moradores que não querem as intervenções propostas pelo governo. Muitos acusam os policiais de abuso por entrarem no morro invadindo um espaço que, bem antes de haver uma quadra ali, existia uma praça centenária onde ocorreram eventos importantes para a história cultural do Brasil. O Morro da Providência é considerado berço do samba, do candomblé (2) e da capoeira (3), foi um lugar de resistência cultural africana no Rio, que na época era capital brasileira. Para Agapê a pelada (4) acabou, pois uma cabine do teleférico acaba de chegar, seu ponto de parada é bem no meio da quadra de futebol. De cor metal dourado com penas rosadas, simbolizando um adereço carnavalesco, saem turistas com máquinas fotográficas de última geração, ouve-se o barulho dos clicks e dos flashes. Ele não sabe quanto tempo sua quadra resistirá, pois cada vez mais turistas sobem o morro como um bando de aves migratórias. Neste momento, a bola que os meninos jogavam se assustou, pois ela era um tatu-bola colorido nas cores azul, amarela e verde. Ela parou e começou a cavar o chão, sumindo dali. E um dos meninos exclamou – não! Teremos que achar outro tatu-bola! Os meninos não paravam de reclamar da situação, mas também pairava um sentimento de ambiguidade, de querer e resistir, de desejar o imaginário futurista prometido pelas campanhas publicitárias do governo, mas também de resistir às transformações que afetavam seus cotidianos e seus entes queridos.
Agapê decide finalmente descer o morro para ver aquele objeto reluzente perto do porto. Ele chama seu amigo e juntos decidem ir depois do meio dia, após o almoço. Normalmente Agapê almoça na casa de sua tia, no caminho da sua casa ele pega um sacolé (5) com Dona Zita e desce os becos tortuosos. O andar pelo morro também não é a mesma sensação de pouco tempo atrás, os territórios se reconfiguraram: o movimento que era condicionado à aceitação de poderes paralelos instalados em pontos estratégicos do morro agora é amplamente difuso. Descendo os caminhos errantes da favela percebe-se que, agora, muitos deles estão mais silenciosos, onde havia pessoas conversando, manicures e o som de funk, agora há somente becos mortos repletos de muros com escritas azuis (SMH). Um militar de farda e atento ao andar dos meninos cruza o caminho; os meninos fazem silêncio, pois sabem que o menor barulho pode chamar a sua atenção. No meio do beco, o policial tenta pegar um menino, mas com um movimento ágil ele se esquiva. Para Agapê a polícia é um personagem de um pesadelo, pois em qualquer situação, na rua, na praça, shoppings ou na praia, os militares estão sempre de olho nele; a farda cinza parece fazer parte da pele deles, que é igualmente cinza em um tom pútrido; e todos os militares parecem iguais como se fossem clones, em movimentos errantes, eles andam normalmente em grupos sempre destinados a cercar bandos de meninos. Com a fuga, logo a passagem se abre para uma rua de comércio barulhenta e de comunicação visual caótica, e Agapê percebe num insight a dimensão desse novo território após a chegada da UPP. Várias redes de comércio, principalmente de eletrodomésticos e mercados, instalaram-se na região, muitas pessoas de fora estão adquirindo imóveis, instalando comércios e até estrangeiros estão se fixando em residências e hospedagens. Nessa rua muitas pessoas chegaram, saíram e, agora, policiais, habitantes, comerciantes, turistas, empreiteiros e artistas dividem um espaço heterogêneo. Os policiais são chamados para garantir o plano do governo e a conservação de todo o sistema. Seu território não abarca a totalidade, mas seu acesso é garantido e irrestrito (como um Estado de Exceção) caso haja interesse da manutenção do sistema. O seu papel é fornecer a infraestrutura para uma nova ocupação que garanta os mesmos direitos da cidade lá embaixo, ou seja, direito às mercadorias e serviços. Dentro da lógica caótica da rede de comércio da favela, há vendedores que estão cada vez mais empolgados com os rumos do comércio, empolgação que se nota no tom de voz para anunciar os seus produtos. O barulho do comércio compete igualmente com o barulho das motos, que é o principal meio de transporte, capaz de passar por becos esguios e levar mercadorias onde o carro não consegue chegar. Agapê atravessa a rua com cuidado, pois o perigo do trânsito está na confusão de sons que faz confundir animais, buzinas e anúncios. Entre muitos anúncios, em um terreno baldio, um outdoor da prefeitura se destaca pelo tamanho e imponência, ele mostra uma imagem de um trem elétrico e uma obra arquitetônica com ares futurísticos, onde antigamente havia galpões abandonados e um viaduto cinzento. A imagem escolhida para representar as novas mudanças é de uma aparência quase etérea e inalcançável, uma imagem sedutora que parece ter saído de um sonho ou filme de ficção científica, e tanto os meninos quanto os moradores estão ansiosos pelas mudanças. Entrando em um beco estreito, em meio a duas lojas, ele sobe uma escada de poucos degraus revestidos de cerâmica até chegar ao portão de ferro marrom da casa de sua tia. Já na casa de sua tia ele sobe mais escadas que dão para uma varanda gradeada e repleta de samambaias; senta em uma mesa enorme de madeira, na qual mais primos se servem do feijão com arroz e galinha que tem para o almoço, enquanto uma tevê está ligada em um telejornal sensacionalista que mostrava assassinatos nas periferias em tom de comédia. A conversa entre os meninos e as mulheres ultrapassou os assuntos cotidianos somente pelo fato de Agapê dizer que vai descer até o porto, deixando sua tia preocupada e nervosa com a situação, pois aquela região ainda resiste na memória como uma região violenta e inóspita, onde usuários de drogas mais pesadas se concentram. O conflito é amenizado pela falsa promessa de Agapê dizendo que não iria mais descer, porém sua tia continua desconfiada, pois sabe que o menino literalmente não possui limites. Cada habitante da cidade faz um zoneamento próprio dela, dividindo-a em territórios: bons e ruins, afetivos e hostis, lazeres e trabalhos, perigosos e seguros. Na maior parte das vezes, prevalecem no imaginário os territórios inseguros pelo mero desconhecimento dessas localidades. O fato de grande parte das pessoas percorrer a cidade através de meios de transporte públicos e particulares, e de se fixar em determinadas zonas e trajetos, faz com que exista um aniquilamento das experiências das cidades (6). Já esses meninos são legitimamente nômades urbanos, conhecem profundamente esses limites, para eles o território da cidade é amplamente diverso e rico: eles sabem em que beco entrar ou sair, em que pessoas eles podem confiar ou não confiar, em que horários eles podem trafegar ou não por determinadas regiões, interpretando a cidade como um território muito amplo e rico, ao qual a maioria das pessoas não está acostumada.
Agapê desce a pé, pois a estação de teleférico mais próxima ficava distante da casa de sua tia. O tráfego do morro continuou o mesmo após a instalação dos teleféricos, apenas os moradores do alto do morro e turistas foram efetivamente beneficiados. Lá em cima o preço dos imóveis disparou e muitos amigos e conhecidos venderam suas propriedades e se mudaram para longe. Descendo a ladeira junto às casas tem-se uma bela vista da baía, uma grande falha geológica faz com que não haja obstáculos para a vista, tornando o lugar um ponto privilegiado para contemplação da paisagem. Aqui, muitas pessoas saíram a mando da prefeitura, que prometeu novas moradias e um aluguel temporário, o argumento é de que a perícia técnica detectou a necessidade da retirada de mais moradores. A alegação não foi clara, mas os moradores entendem que esse local dará lugar a um mirante para turistas. Em meio ao estado de abandono, onde casas vazias e um ponto de lixo com alguns porcos negros protagonizam a paisagem, fica difícil acreditar em tais mudanças. Descendo uma ladeira de paralelepípedo em direção a Estação Central do Brasil, Agapê se reencontrou com o seu amigo, que juntos acharam graça do homem que subia com calças coloridas em uma perna de pau e tocando uma flauta. Ultimamente é comum encontrar essas figuras por aqui, artistas, estudantes, pesquisadores e professores estão morando nas redondezas, com isso muitos eventos novos estão acontecendo: como o samba no bar descendo a Ladeira do Barroso, que foi iniciado por um grupo de artistas faz alguns meses e agora faz parte do roteiro “tradicional” da cidade. No entanto, em meio às mudanças, algumas coisas estão desaparecendo, como o funk, que, apesar de hoje ocupar um local de destaque no cotidiano da cidade, foi proibido pela UPP por ser vinculado ao poder paralelo. Agapê e seu amigo se depararam com um desses novos eventos; em uma encruzilhada descendo as ladeiras foi armado um pequeno espetáculo de circo, algo bem colorido, e muitas crianças estavam assistindo. Em meio às crianças descalças e sujas de poeira e outras bem arrumadas acompanhadas de suas mães, o espetáculo seguiu até o final da tarde. Após o fim, algumas pessoas desceram a ladeira enquanto poucos permaneceram ali, comentavam a extensiva presença da polícia nas mediações da Central do Brasil, parece que iriam inaugurar um museu novo. Com muita curiosidade todos os meninos desceram a ladeira para ver o que estava acontecendo. No pé do morro observaram luzes piscando de viaturas militares e um grupo de policiais vestidos de fardas na cor cinza. A grande avenida de comércio já ia abaixando as portas, o sol ia se pondo e a rua estava no seu pico de engarrafamento. Os comentários das pessoas saindo do trabalho eram sobre a movimentação perto do porto, mas a maioria das pessoas que ali trabalhavam ou residiam não sabiam o que estava acontecendo. O passo curto e rápido do bando de meninos chamou a atenção dos policiais que, ao cruzarem o caminho, pronunciaram em tom de ordem – vocês não têm nada o que ver lá no porto. Voltem para casa. O grupo de policiais estava armado com um aparato militar, na mão uma metralhadora e no corpo um colete à prova de balas; e, apesar de toda imagem bélica passada por esses adereços, para os meninos se tratava de um cenário cotidiano. Destemidos, e em tom de chacota, desdenharam dos mandos e seguiram em frente. Os policiais os cercaram fechando a rua, mas os meninos pegaram um beco que contorna a barricada de policiais zumbis. Próximo ao Bairro da Gamboa mais policiais estavam posicionados, sem se importar com esse fato os meninos seguiram em direção à Praça Mauá, por uma rua repleta de castanheiras e casarões antigos que mais pareciam abandonados. Aos poucos o barulho provocado pelo acelerar dos motores e buzinas ia se dissipando, o Centro da cidade possui um fluxo maior de pessoas em horários de serviço. A noite ele demonstra ares de abandono, imensos galpões, lojas fechadas, praças vazias, parece um cenário desolador. Porém, se procurar nas frestas desse território, ouvindo melhor o silêncio do Centro da cidade do Rio de Janeiro, pode-se ouvir ruídos, enxergar fissuras e perceber movimentos que de relance parecem fantasmas. Na verdade esses ruídos são moradores de ruas, meninos, catadores de latas, prostitutas, marinheiros, eles são movimentos que sobrevivem ao cenário que se apaga com o prolongar da noite. Aproveitando-se dos espaços ermos como um gesto misto de desejo e sobrevivência, na maior parte das vezes são tratados como indigentes pelo “interesse público”. Na Praça Mauá a paisagem também se modificou, já não possui os antigos galpões industriais que eram obstáculos para ver o mar. A praça também estava estranha, pois estava limpa, não só de lixo, mas de pessoas, bancas de jornais, camelôs e, principalmente, limpa do fluxo do ponto final de ônibus que parecia não passar mais por ali. O silêncio mais uma vez predominava, as árvores naquele início de noite pareciam ser as únicas vidas naquele lugar. O que chamava atenção agora eram as luzes vindas do porto, flashes de luzes iluminavam um objeto enorme que parecia um edifício. Junto com os flashes, no térreo, luzes azuis e vermelhas denunciavam a presença ostensiva da polícia que parecia formar uma espécie de barreira. Grades metálicas foram postas como barricada, em torno de trinta policiais faziam a guarda do local, canhões de luz, flashes de fotógrafos e de pessoas faziam parecer que uma tempestade de raios estava passando, e no meio um tapete vermelho com pessoas bem vestidas dava a entender que se tratava de uma inauguração ou uma première. Para os meninos aquele cenário parecia sair de um filme: máquinas fotográficas, luzes, tapete vermelho, pessoas sorrindo artificialmente; aquele cenário trouxe um estado de êxtase fulminante, fazendo-os se misturar com a multidão que observava histericamente a entrada de artistas. O evento se tratava da inauguração da Cidade do Espelho, um complexo de entretenimento cultural na Baía de Guanabara, contendo museu de arte contemporânea (acervo diverso), museu da cidade (acervo fixo), lojas, auditório, café, workshops e o mais importante, a própria obra arquitetônica que servirá de âncora para as demais intervenções na área portuária. A arquitetura em aço e vidro transformou radicalmente a paisagem; ainda em período de construção foi mantida uma parte de um edifício, tapumes e algumas árvores como obstáculo visual, somente na semana de inauguração eles foram retirados tornando tudo ainda mais impactante. O projeto feito por um renomado arquiteto europeu possui uma alta tecnologia nos seus materiais, as peças foram executadas em países da Europa e na China e chegaram de navio somente para a montagem e execução. O design lembra um cenário de ficção científica com seus ângulos quebrados em diversas posições e sua estrutura metálica moldada especialmente para o edifício. Tal arquitetura de vidro, que não é típica de países com clima tropical, também será abastecida por uma central de água gelada advinda de captação de águas pluviais. A inauguração da Cidade do Espelho se tratou de um evento fechado - por isso a barricada de policiais e pessoas na frente do museu -, portanto, neste evento estavam presentes apenas autoridades políticas, artistas nacionais e internacionais e grandes empresários brasileiros. Os meninos se apertaram entre as grades e as pessoas para ver a cena do tapete vermelho. Um policial se aproximou vendo o pequeno tumulto que eles causaram e falou – aqui não é o lugar de vocês! Não vai ter confusão aqui. Mesmo somente observando toda a cena, os policiais foram especialmente agressivos com os meninos, pois para eles os meninos eram sinônimo de problema, talvez por terem consciência de que eles eram, “de certa forma”, livres e não respeitavam as regras. Para os meninos, as barreiras das cidades não são regras, mas são obstáculos como em um videogame, quanto mais transpô-los, mais pontos você ganha. Perto dali, eles descobrem uma passagem por uma grade que estava quebrada, como já conhecem o local eles se articulam para transpô-la. Não é a intimidação do guarda que irá pará-los, a vontade de estar junto àquele acontecimento desafia a ordem dos policiais, ela é mais forte do que tudo. Entrando no píer onde se encontra a Cidade do Espelho eles ficam deslumbrados com a multidão de pessoas, os flashes fotográficos e a arquitetura do museu que parecia sair de um filme de Hollywood. Eles seguem aproveitando-se do buffet servido na mesa sem serem importunados, até que um deles deu um grito de alerta – sujou, sujou, sujou. Agapê não sabe o que está acontecendo, mas ver seus amigos fugir é a deixa para seguir com eles. Eles correm em direção à fenda na grade, logo atrás mais quinze garotos, que já estavam no museu antes deles, fugiam de policiais que os cercavam como galinhas em um terreiro. Somente as pessoas de dentro perceberam o movimento; para os meninos, esquivar-se dos policiais fazia parte do jogo, já para os policiais os meninos perturbam a ordem estabelecida, eles são personagens do jogo que podem colocar tudo a perder pela completa falta de apego às regras sutilmente instauradas. Os meninos conseguiram fugir, muitos pela entrada principal e outros poucos pela fenda na grade. Após se dispersarem na rua lá fora, Agapê caminha distraído pela rua e é pego, ele se frustra com a atitude do policial ao perceber que o cenário para ele continua o mesmo, o repúdio dos policiais que havia acabado no Morro da Providência por parte das UPPs não se configura da mesma forma lá embaixo, desmanchando assim qualquer percepção positiva que ele poderia ter dos policiais. Levado para um beco escuro junto com mais três meninos, ele sente um frio na espinha que o faz acordar em estado de choque, sussurrando: – ufa!
A Cidade do Espelho é um modelo desse sistema que faz fluir o desejo nas cidades. O método lógico e racional de planejar não se aplica mais, o que faz funcionar a cidade hoje é o desejo (6): desejo de morar em tal lugar, desejo de estar em tal lugar, desejo de ser aquele lugar, ou um desejo de não estar em tal lugar (7). Portanto, a máquina desejante cidade se tornou a principal responsável pela distribuição de recursos, é ela que define que empreendimentos e serviços serão postergados para que o “desejo maior” seja executado, mesmo que para isso ela ataque a si própria. Pode-se pensar a Cidade do Espelho como o espelho de Narciso, personagem ao qual a beleza e o orgulho eram suas características mais conhecidas, e que se apaixonou por si próprio ficando imóvel na frente do espelho d´água até morrer. Pois a cidade e seus habitantes, diferente de Narciso, constroem a sua própria imagem dentro do espelho, ela antecede a visão do espelho, ela constrói aquilo que ela irá se apaixonar. Logo, a obra arquitetônica da Cidade do Espelho seria uma dessas imagens que os habitantes irão se apaixonar. E do mesmo modo da mitologia helênica, essa paixão avassaladora toma conta dessa máquina desejante fazendo com que todas as engrenagens trabalhem a fim de realizar tais desejos, levando a sua própria destruição (8).
notas
1
O jornalista Euclides da Cunha descreveu de tal forma em Os Sertões: "O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda (...). O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os... davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande". CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 189.
2
Candomblé é uma religião afro-brasileira derivada do animismo africano onde se cultuam os orixás, sendo de origem totêmica e familiar.
3
A capoeira é uma expressão cultural brasileira que mistura arte-marcial, esporte, cultura popular e música. Desenvolvida no Brasil principalmente por descendentes de escravos africanos com alguma influência indígena, é caracterizada por golpes e movimentos ágeis e complexos, utilizando primariamente chutes e rasteiras, além de cabeçadas, joelhadas, cotoveladas, acrobacias em solo ou aéreas.
4
É como é popularmente chamado o jogo de futebol amador, que pode ser jogado em qualquer área improvisada como: terrenos baldios, ruas, campos ou quadras.
5
Sacolé é um sorvete dentro de um saquinho plástico.
6
O desejo como fuga é um conceito talhado por Gilles Deleuze em carta para Michel Foucault. DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, out. 1994, p. 57-65. Para Deleuze são diversas linhas de fuga que caracterizam o desejo de uma sociedade, que por sua vez fogem dos dispositivos de poderes, por exemplo: é um conjunto de linhas de fuga que ocasionou o acontecimento da revolução francesa, ou seja, o desejo de fugir dos altos impostos e acabar com os altos custos da corte, desejo de acabar com as classes privilegiadas, e o desejo de uma reforma tributária, impedido pela nobreza e cleros que não "queriam dar os anéis para salvar os dedos", portanto foi todo um conjunto de ideias que buscava fugir das amarras que o poder existente conservava.
7
Marc Augè definiu o lugar como algo itinerário, relacional e histórico, mas aqui se trata de enxergar um lugar simplesmente como um lugar de afeição. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Coleção Travessia do Século. Campinas, Papirus, 2008.
8
Este artigo é um conteúdo publicado anteriormente na revista R. B. Estudos Urbanos e Regionais , volume 16, n.1, maio 2014, p. 51-65, com o título: Da Providência à cidade do espelho: a arquitetura e urbanismo como máquina de desejo da cidade.
sobre o autor
Lutero Pröscholdt Almeida é arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo (2007). Mestrado pela Universidade Federal da Bahia (2011). Tem experiência em docência e projeto de arquitetura, com participação em diversos concursos de projetos de arquitetura. Atualmente é doutorando pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia/ Ecole Nationale Supérieure d'Architecture de Paris La Villette e pesquisa o espaço urbano como um campo partilhado.