Morei em São Luís, recém-formado, por ocasião do meu primeiro trabalho com Patrimônio Histórico, arranjado ao acaso dois dias após ter pisado no Maranhão, durante viagem de barco para Alcântara, numa conversa fortuita com um senhor desconhecido, que, por extrema coincidência, era um diretor da Fundação Cultural e estava à busca de algum arquiteto para contratar. Fui arrebatado pela atmosfera da cidade e quis ficar lá por mais um tempo. Acabou virando um ano.
Aprendi bastante sobre o trabalho que desenvolvo desde então e tive a oportunidade de me embrenhar naquele universo particular, desencaixado do Nordeste e da Amazônia.
Naquele ano andei demais pelas ruas de pedra sob um calor incomensurável, suando até pelas unhas. Muitas noites segui o som dos tambores e matracas do bumba meu boi, que faziam tremer o coração e as estrelas.
Aprendi a dormir em rede, a gostar de arroz de cuxá e de Cola Geneve (o refrigerante cor de rosa com sabor de canela que só tinha na ilha). Amei aquela cidade.
Retornei a São Paulo e fiquei trinta anos sem voltar a São Luís, talvez por não querer retocar uma memória para mim tão perfeita... e então, numa viagem aos Lençóis Maranhenses, aterrissei novamente por lá.
Nesse tempo cresceu uma nova cidade do outro lado do rio onde antes havia apenas as praias nuas que a nova ponte devassou, drenando, por seu leito, a vida que acontecia na cidade velha, pelas ruas da Luz, da Estrela, da Saúde, da Paciência, da Alegria, dos Prazeres, da Inveja, das Crioulas, do Pespontão, dos Afogados, no Beco da Bosta, do Caga-Osso, do Quebra-Bunda e de tantas outras líricas nomenclaturas. Desta vez fui refazer meus trajetos habituais e presenciei, num fim de semana, uma cidade vazia, incomodada apenas pelo som dos meus próprios passos.
Perambulei por outras áreas onde os taxis tinham receio de passar e recomendavam para não ir. Mas fui, ainda que para constatar o abandono e a decadência. Também foi possível comemorar algumas boas surpresas.
O sobrado tradicional maranhense abria suas providenciais varandas com venezianas para o pátio interno, onde pulsava o coração da casa, protegido dos olhares bisbilhoteiros e dos rigores do clima.
Morei num sobradão daqueles que, mesmo não tendo azulejos nas fachadas, era a cara da cidade. Erguido nos moldes das tradições construtivas portuguesas, havia permanecido praticamente intacto dentro do então inovador traçado urbano ortogonal alinhado aos pontos cardeais, de Frias de Mesquita, das primeiras décadas dos 1600, que conferiu a São Luís ares de Lisboa. Abrigava então um albergue de estudantes que acabou sendo minha casa por muitos meses.
Neste retorno, desejei visitá-lo.
Passei por ele uma vez e não o reconheci. Fui percebê-lo noutro momento, enquanto a imagem candente que morava na minha memória se recusava a aceitar aquilo que estava diante dos meus olhos.
Lembrei Carlos Drummond de Andrade quando abandonou definitivamente BH por questões semelhantes dizendo: "Anda! Volta lá, volta já... Não. Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser... Não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor”.
Respirei fundo e decidi ficar ali a observá-lo. Pensei em seguida: Que bom que, pelo menos, não o haviam demolido.
Com grande esforço considerei a provável satisfação dos atuais inquilinos, do dono do boteco, das lojinhas e do vendedor de crédito que, felizes, ocuparam o casarão esquartejado imprimindo suas marcas particulares e me perguntei, tristemente irônico, se isto não seria um retrato fiel do Brasil.
No entanto, ainda que sob forte desencanto, meu coração enterneceu.
Quis dizer a ele o quanto eu era grato pelo que representou na minha vida.
Lembrei-me das suas paredes caiadas branquinhas rentes à calçada por onde passavam os ambulantes vendendo pamonhas enroladas em folhas de bananeira, aquecidas com brasas nas latas penduradas numa vara sobre os ombros. Costumava comprá-las através das janelas azuis amigavelmente abertas para a rua. Repassei os olhos pelas sacadas de pedra de cantaria feitas em grandes blocos que se estendiam para dentro dos cômodos fazendo contrapeso e que mantinham uma temperatura agradável à noite.
Sobre estas pedras, com as janelas escancaradas, dormi tantas noites abraçado com a brisa.
De saída, aprisionei o casarão na minha câmera digital e o levei embora comigo.
Voltei para São Paulo pensando em algum tipo de ação. Alguma coisa, qualquer coisa... Não me perdoaria se não fizesse nada.
Durante meses... Talvez mais de ano, mergulhado no Photoshop nos entardeceres e nas madrugadas, um pouquinho por vez, às vezes pixel a pixel (para saborear mais profundamente cada momento), retirei as malvadezas do tempo encravadas nas superfícies, recoloquei os vidros, limpei as sacadas e tirei a vegetação do telhado. Expulsei os vendilhões e, sem pudor, deixei o casarão nu de suas propagandas e daquela descabida vestimenta de tintas berrantes...
Os cabos elétricos, só removi em parte, para não irritar a vizinhança...
Recompus a parede que eles haviam rompido numa das laterais na sua fome de explorar ainda mais aqueles amplos cômodos que convergiam para o grande salão aberto para o quintal, que era onde se convivia.
Com grande prazer, arranquei também todas aquelas grades.
Sem obstáculos o velho sobrado estará novamente livre para berrar por todos os seus vãos exigindo respeito. R e s p e i t o !
Quem sabe essa voz possa crescer e sensibilizar pessoas em algum lugar, algum dia...
Assim, querido casarão, que em seu terno abraço me acolheu, ofereceu seu aconchego e me contou seus segredos, quero ser testemunha da sua história. Por isso falo de você com esse ímpeto de resistir de alguma maneira.
Você estará na Internet, espalhado pelo mundo aos olhos de todos, soltando seu grito e mostrando-se recuperado... por enquanto apenas sob a forma de indestrutíveis bits, mas dando concretude ao que poderá vir a ser, mesmo que ainda esteja desamparado em sua própria cidade, esta querida São Luís, declarada pela Unesco “Patrimônio Cultural da Humanidade”.
Então é isto. Não é muito, mas foi o que pude fazer.
Dedico esta pequena aventura a todos aqueles que ainda não acreditam que uma idéia e certa persistência possam mudar a realidade.
sobre o autor
Luís Antonio Magnani é arquiteto e restaurador de bens culturais especializado em Florença. É autor dos projetos de restauro da Casa Modernista, Complexo da Figueira do Gasômetro de São Paulo, Planetário do Ibirapuera (com Paulo Faccio e Pedro Dias) e das escolas “Caetano de Campos” em o Paulo, “Instituto de Educação” em Pirassununga, “Cardoso de Almeida” em Botucatu e ”Orozimbo Maia” em Campinas e dos planos diretores de preservação do Jockey Club de São Paulo, do centro histórico de Pirenópolis. Foi curador das exposições “Ver Zanine” e “A fábrica e o formão”, sobre a obra do arquiteto José Zanine Caldas e coautor dos livros "Complexo do Gasômetro" e "Caminhos do Patrimônio Cultural – 3 roteiros em São Paulo".