Vim a conhecer o trabalho da Xsense (1) durante minha estadia como pesquisadora visitante na área de história do Desenho Urbano na cidade de San Luis Obispo, Califórnia e fui imediatamente atraída por sua filosofia. O conceito da Xsense é extremamente intrigante para urbanistas já que lida com ideias familiares para muitos historiadores, planejadores e geógrafos.
De fato os conceitos de sense of place, autenticidade e caráter foram discutidos ao longo dos anos desde o poeta inglês Alexander Pope no século 18 quando o termo genius loci era comumente associado a paisagismo e áreas rurais.
Nas palavras de Pope deveríamos consultar o gênio do lugar em tudo o que informa
“Consult the genius of the place in all
That tells the waters to rise or fall
Or helps the ambitious hills the heavens to scale
Or scoops in circling theatres the vale…” (2)
A expressão “ter gênio” é uma referência direta à mitologia romana, de acordo com a qual genius (plural, em Latim, genii) era uma divindade, o espírito guardião de alguém ou, no caso de genius loci, o espírito guardião de um lugar e que ninguém ou nenhum outro lugar possui.
Esses conceitos foram retomados após a segunda Guerra Mundial em reação à homogeneização do Modernismo e do “International Style”. Durante esse período a importante consideração a respeito de valores locais ganhou relevância e foi concluído que o caráter essencial de alguns lugares, resultado de séculos de evolução, não deveria ser sujeito a rupturas abruptas.
Os textos de Christian Norbert-Schulz também representam um momento crucial para os estudos sobre desenho urbano, o processo de projetar e dar forma a cidades e espaços públicos. Para esse arquiteto norueguês genius loci significava a percepção que as pessoas tem de um lugar, entendido como a soma de todos os valores físicos e simbólicos de um ambiente natural ou construído.
Genius loci e caráter foram preocupações recorrentes também para a filosofia britânica Townscape. Nascida após a segunda Guerra Mundial, o objetivo do movimento Townscape era o de chamar atenção para questões que iam além da arquitetura de edifícios individuais e assim enfatizar a diversidade, variedade e complexidade do ambiente construído. A metodologia Townscape, visava providenciar os instrumentos necessários para reconciliar elementos aparentemente irreconciliáveis e ensinava a valorizar a relação entre esses elementos no ambiente e ouvir seu genius loci. Ian Nairn, o qual foi, com Gordon Cullen, um dos mais aguerridos defensores de Townscape afirmava
“quando escrevo uma sentença, espero que as palavras nela contidas se relacionem uma com a outra, e o mesmo vale para as partes de uma cidade. Elas devem fazer algum tipo de sentido” (3).
Assim, genius loci, passou a ser aplicado não apenas a áreas rurais e paisagismo mas também a ambientes urbanos.
No entanto, de acordo com John Pendlebury, a noção de caráter, explorada por muitos urbanistas desde os anos 1940, era entendida principalmente em termos sensoriais e não somente visuais e portanto permanecia bastante vaga, um fato que, em sua opinião, convinha a muitos arquitetos e planejadores que assim poderiam usá-la como lhes convinha.
De maneira similar, o influente paisagista americano J.B. Jackson (1909-1996) afirmava que o uso do termo sense of place havia se tornado tão popular entre arquitetos, urbanistas, decoradores de internos e até marqueteiros de condomínios que havia perdido seu significado passando a ser geralmente usado para descrever a atmosfera de um lugar ou a qualidade de um ambiente. Ao mesmo tempo ele reconhece que certos lugares providenciam uma indescritível sensação de bem-estar para a qual somos atraídos.
O trabalho da Xsense consiste em capturar, através de uma sensibilidade especial apoiada por uma solida pesquisa, essa sensação de bem estar e assim conectar pessoas a seus lugares Xsense faz uma clara distinção entre a atividade de desenvolver uma atração turística ou um “tema” e a de revelar um conjunto de atributos autênticos” de uma maneira sutil mas ao mesmo tempo visível.
A mente e o coração por trás da Xsense é a alemã Uta Birkmeyer. Uta surpreendentemente não provem da área de Design Urbano, Arquitetura ou Urbanismo embora sua longa experiência como consultora e sua colaboração com pesquisadores multidisciplinares com certeza contribuíram para enriquecer o trabalho da Xsense como um todo. Uta possui título de Mestre na área de Hospitalidade pela Cornell University e Xsense nasceu de sua visão e do trabalho de uma impressionante rede de colaboradores multidisciplinares e internacionais desde antropólogos, arquitetos e urbanistas até historiadores, escritores e etnógrafos, todos selecionados de acordo com as exigências específicas de um projeto. A seleção de colaboradores pode ser baseada tanto no conhecimento de um tema especifico ou por sua afinidade com o lugar. Ao formar essas equipes, explica Uta, diversidade, tanto no background cultural como em educação é sempre considerada uma vantagem.
Outro ponto forte da Xsense é a importância dada a ouvir e traduzir os dados e informações coletados sobre o lugar em “planos de ação tangíveis e práticos”.
Perguntei a Uta para elucidar a abordagem da Xsense especialmente no contexto da experiência norte americana. Um dos casos mais interessantes e representativos ilustrados por Uta (e são muitos e muito variados) é a consultoria oferecida à Macatawa Legends, próximo à cidade Holland, uma cidade fundada por holandeses no estado de Michigan.
Para descrever esse exemplo Uta apresentou-me ao termo holandês Gezelligheid. Gezelligheid, que por sua vez lhes foi apresentado durante o trabalho com um grupo focal na Holanda. Essa palavra geralmente considerada como a epítome da cultura holandesa, pode ser traduzida como aconchego, prazer, convívio, mas pode também conotar pertencimento, momentos compartilhados com as pessoas amadas ou reunião que produz sensação e atmosfera agradáveis e calorosas. Em Holland, Michigan, a Xsense explorou, com o apoio da população local, essa sensação muito típica holandesa de conforto e harmonia ao invés de contribuir com os já presentes ornamentos importados. Com o tempo, os mais óbvios ícones da cultura holandesa como moinhos a vento e tulipas tornaram-se representações demasiadamente literais de um passado com o qual os habitantes já estavam se distanciando. Como diz o autor alemão Heinrich Böll, o folclore é como a ingenuidade: uma vez que você sabe que o tem, você já o perdeu.
Se por um lado a Xsense atua como uma estratégia de marketing criativa e eficiente para promover um lugar e atrair interesse no âmbito da competição global, por outro lado ela opera como agente catalizador cultural. Finalmente em Holland, Michigan o moinho a vento perdeu seu lugar e a atenção foi transferida para o já existente farol (1872) o qual, além de apresentar características arquitetônicas que refletem mais integramente e mais sensivelmente a influência holandesa nessa área, tem significado e propósito.
Embora a Xsense trabalhe predominantemente com o setor mobiliar, os efeitos de sua pesquisa e ideais exercem um impacto na comunidade como um todo e seus princípios podem ser aplicados desde em projetos de pequena escala particulares, a espaços públicos ou até cidades. Programas de regeneração urbana e, como mencionado anteriormente, a competição entre cidades no contexto da globalização colocaram ênfase na qualidade dos ambientes urbanos bem como em questões de sustentabilidade. Essas politicas publicas estabelecem, em alguns aspectos, continuidade com o passado e com o que já existe. Neste sentido Xsense obedece ao imperativo ético de preservar os recursos que alimentam um lugar. E para preservar esses recursos significa preservar os sustento daquele que os mantêm.
Em Holland, Michigan, agora o importante é gezelligkeit e embora as tulipas não tenham ainda sido substituídas por plantas nativas, esse lugar escolheu ser ele mesmo, escolheu as raízes holandesas que florescem em um novo ambiente, com novos recursos e novos hábitos.
A operação de discernir o que é falso do que é genuíno teve o importante efeito de motivar os habitantes locais e conecta-los com suas raízes, com valores com os quais eles podem se identificar e não com uma fachada frequentemente importada e imposta.
Um termo que a Xsense usa frequentemente para ajudar a população nativa a discutir seu lugar de origem é “ornamento”. Para ilustrar a diferença entre este ultimo e os atributos reais, Uta usa a analogia da árvore: uma árvore com raízes, ramos e folhas floresce e gera frutos que alimentam e envolvem todos os sentidos. No entanto, uma árvore de Natal com ornamentos torna-se logo antiquada, não se sustenta e não se regenera. Redescobrir e intensificar significados usando recursos locais de maneira criativa representa portanto o coração da missão da Xsense.
Como residente de longa data no Brasil me deparei com incontáveis oportunidades perdidas. Especialmente no estado de São Paulo onde as cidades são tão parecidas umas com as outras. Muitas cidades foram incapazes de conservar seu verdadeiro caráter com a expansão e modernização. Arquitetura e características naturais foram, às vezes gradualmente e às vezes brutalmente substituídos com os mais cobiçados (e frequentemente importados) símbolos do “progresso”. Nestas cidades, cursos d’água foram enterrados, praças tornaram-se estacionamentos e árvores são considerados fontes de problemas. Em algumas partes do litoral, em vez de explorar nomes e tradições indígenas, estabelecimentos locais, lojas, hotéis, bares e restaurantes recebem nomes que evocam distantes paraísos havaianos. E ao fazê-lo eles perdem a inocência que os mantêm autênticos e honestos. Como Uta diria, eles perderam seu caminho. Como dizem os brasileiros: é só para inglês ver.
Ironicamente, em um país que tão frequentemente negligencia suas raízes, existe também uma noção nostálgica e superficial de que “as coisas eram melhores no passado” o que leva muito frequentemente a uma interpretação simplória e equivocada desse passado. Outra abordagem em relação à preservação desse patrimônio e a de isolar elementos específicos (edifícios ou monumentos) em vez de incorporá-los sutilmente no tecido da cidade. Assim, as raras e às vezes desajeitadas (ou mesmo desrespeitosas) tentativas de explorar características locais acabam resultando em meras atrações turísticas, uma mercadoria destinada a se tornar obsoleta.
Umas das lições mais importantes que a Xsense ensina e que, em minha opinião, seria benéfica para qualquer empreendedor, urbanista ou arquiteto e que, todos os lugares, não importa o quão insignificantes possam parecer ao primeiro contato, possuem uma história que pode ser revivida e explorada.
Na experiência de Uta Birkmayer, muitas destas histórias acabam se revelando intrigantes e memoráveis a ponto de cativar a imaginação e estabelecer um vinculo entre residentes e seus lugares e entre residentes e visitantes. E estas historias não devem narrar necessariamente o passado de figuras notáveis e distantes pioneiros. Tudo tem potencial para ser explorado: recursos naturais, língua e tradições nativas, materiais, arquitetura e métodos de construção vernaculares e até características climáticas. A arte consiste em aproveitar essas características de maneira a torná-las parte da identidade local da população e de sua vida quotidiana assim que essas podem ser comunicadas eficientemente ao visitante. A mensagem não precisa ser inventada, ensina Xsense, as histórias já existem, estão apenas esperando serem restauradas e trazidas à luz.
notas
1
Website da Xsense: www.xsenseauthenticplaces.com/
2
POPE, Alexander. Epistles to Several Persons, Epistle IV, 1731.
3
“When I write a sentence, I hope that the words in it will bear some relation to each other: and it is the same with the parts of a town. They must make sense of some kind”. NAIRN, Ian. The American Landscape: a Critical View. Londres: Random House, 1965.
sobre a autora
Lorenza Pavesi é doutora pela FAU USP, pesquisa a paisagem urbana e a recepção, em diversos países, das teorias Townscape. Orientada pelo Prof. Paulo Bruna, foi pesquisadora visitante do City and Regional Planning Department (CRP) da California Polytechnic State University (Cal Poly) em San Luis Obispo, Califórnia, sob a supervisão do Prof. Vicente del Rio. Tanto a pesquisa no país quanto o estágio no exterior foram financiados pela Fapesp.