É inegável que Medellin ainda sofre com o estigma de ter figurado entre as mais violentas cidades do mundo e por ter sido sede do temido Cartel chefiado por Pablo Escobar, que dominou o narcotráfico mundial de entorpecentes. Confesso que viajamos com poucas expectativas e uma pulga atrás da orelha, já que a cidade não conta com atrativos muito famosos e agentes de viagem não se entusiasmam tanto quanto para vender pacotes para os famigerados destinos europeus.
Sob o simpático slogan de “Cidade da Eterna Primavera” o qual encabeça uma campanha mundial para vencer a mácula deixada pela violência urbana, Medellin não esconde o passado, se reinventa ano após ano. O que se diz objetivamente é que a sucessão de administrações públicas comprometidas com a população tem reduzido drasticamente a violência urbana nos últimos anos, melhorado consideravelmente as condições de mobilidade da população, aumentado à distribuição de renda, democratizado o acesso aos serviços públicos e, de quebra, apresentado arquitetura de alta qualidade, fatores importantes para se considerar uma visita, mesmo que tudo isso pareça apenas balelas marqueteiras de alguns políticos muito habilidosos para alavancar o turismo.
Por ser uma metrópole frenética com 2,7 milhões de habitantes e apresentar uma atmosfera cosmopolita não é muito fácil identificar de imediato os aspectos da cultura local, chamada de Paisa. Situada nos vales andinos da porção noroeste do país, a atual região metropolitana da capital do Estado da Antióquia chega a 3,7 milhões de habitantes e lidera a região mais próspera da Colômbia devido à economia baseada na mineração, na indústria, na prestação de serviços, na geração de energia e na agricultura. A cidade é também conhecida no cenário internacional devido aos centros de excelência em medicina. Inclusive, se diz que o desenvolvimento desta área do conhecimento se deveu ao fato de haver muito trabalho decorrente da violência que atingiu seu ápice na década de 1990.
Apesar de ainda não ser propriamente acolhedora e estar fora do circuito das cidades consideradas mais interessantes dos vales Andinos possui poucos atrativos históricos e turísticos à primeira vista, isso não quer dizer que não existam. É necessário sair da cidade para presenciar a origem da cultura Paisa e mergulhar na alma colombiana.
Entre os pontos que merecem atenção e nos diz bastante sobre a cultura Paisa na região é a pequena cidade de Guatapé. Distante a 87 km a leste de Medellin possui uma belíssima represa formada na década de 1970 para gerar cerca de 30% da energia elétrica consumida na Colômbia. A área tem vocação para veraneio e para o turismo, no entanto a região só começou a ser explorada há menos de 10, devido à instabilidade provocada pelo avanço das FARC – Forças Armadas Revolucionária da Colômbia – sobre as propriedades agropecuárias do seu entorno. Proprietários e produtores rurais insatisfeitos com a insegurança e cansados de viver dominados por uma instituição criminosa decidiram formar organizações paramilitares para defender o território, o que acabou diminuindo o avanço das FARC sobre as áreas rurais muito próximas a Medellin. Se por um lado a iniciativa beneficiou o desenvolvimento de várias atividades na região, por outro fortaleceu diversos grupos extremistas que podem desestabilizar a região, caso o Estado se descuide.
Tudo parece muito intenso e há resquícios de um passado violento que deve ser superado, mas certamente jamais será esquecido.
A beira da represa de Guatapé é possível encontrar as ruínas da antiga sede de uma das fazendas de Pablo Escobar que foi atacada em 1991 por um grupo rival em disputa pelo controle do narcotráfico proveniente do Cartel de Cali. Chefe do tráfico nas Américas por duas décadas, Escobar chegou a ser o sétimo homem mais rico do mundo, logo, não é de se admirar que tenha se tornado inimigo de Deus e do diabo, despertando a ira em grupos rivais, dos ianques e do próprio governo colombiano. Foi cassado até a morte em uma operação especial preparada pelo exército colombiano com ajuda dos norte americanos em 1993.
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Não sei exatamente quais foram os benefícios que o mega traficante proporcionou para as regiões pobres de Medellin em termos de trabalhos sociais, intervenções espaciais e assistência direta às populações carentes. É possível apenas notar que seu legado ainda está muito presente no imaginário popular, portanto, não recomendo que um estrangeiro desavisado emita qualquer opinião particular para um colombiano desconhecido. Sua polêmica personalidade ainda desperta reações desmedidas de ódio ou admiração.
A Pedra do Peñol é um dos pontos mais interessantes e visitados da região de Gatapé. Não precisa ser alpinista profissional para vencer seus 220 metros de altura, somente muita disposição para vencer uma escada de concreto de 740 degraus até o topo. Ao subi-la, a sensação é muito parecida com a de uma penitente em busca do topo de uma catedral gótica. Assim, o visitante é generosamente recompensado ao final do trajeto com uma das prováveis vistas mais espetaculares colombianas, os vilarejos das redondezas emoldurados pela belíssima Represa de Guatapé.
Próximo a região metropolitana, Marinilla a 47 Km de Medellin é um daqueles lugares que parece já termos estado alguma vez. A comida farta, de boa qualidade, a simpatia dos moradores, a temperatura amena, as ruas e calçadas de pedra, as construções agrupadas em ruas estreitas com muita declividade e as mulheres bonitas me fizeram lembrar a deliciosa atmosfera do interior de Minas Gerais. Principalmente por ter sido também um ponto importante de extração de ouro e outros minérios, o que deixou cicatrizes indeléveis no ambiente natural.
A forte presença da religiosidade católica, resquício do domínio espanhol, pode ser vista no maior acervo do mundo de representações de Jesus Cristo crucificado expostas na Casa da Cultura da cidade. As 2760 imagens estão organizadas em temas latinos, egípcios, eslovacos, russos, italianos, espanhóis, entre outros.
A Igreja de Maria Auxiliadora é outro exemplo que faz de Marinilla um importante destino de peregrinação cristã. As 6 abóbadas de concreto na base são inspiradas na estrela de Davi, e apoiam outras 12 abóbadas sobrepostas entre si, as quais estabilizam toda a estrutura do templo. Os vitrais inspirados em formas e cores da natureza, a decoração sem excessos, o ambiente acolhedor e o equilíbrio estrutural remetem a simplicidade das origens do cristianismo.
Chegando à Medellin pela rodovia 60 é fácil entender a ocupação urbana em que o principal eixo de circulação se estende de norte a sul ao longo do Rio Medellin. O fundo de vale, com topografia mais plana, propiciou a implantação do sistema de avenidas e de circulação de trens. As encostas na direção leste oeste apresentam uma topografia extremamente acidentada e muito difícil de ser vencida com sistemas tradicionais de mobilidade urbana como, veículos automotores, bicicletas, linhas férreas ou mesmo simples calçadas. A solução encontrada foi a implantação de um sistema de teleféricos batizado de Metro Cable, cujas linhas se interligam com o eixo principal e conecta boa parte da população mais carente que ocupa as áreas mais precárias da cidade, situadas nas encostas dos morros.
Como qualquer outra grande cidade latino americana, Medellin foi fortemente segregada e com alta variação no valor da terra. Ao criar áreas desproporcionalmente bem dotadas de infraestrutura e outras praticamente esquecidas pelo poder público, provocou uma série de conflitos sociais, os quais até poderia justificar o avanço do mercado de drogas.
Na tentativa de aliviar a tensão social criada pela alta segregação espacial, minimizar as diferenças sociais e reduzir a violência, o poder público optou assumir a divisão territorial e criar um sistema tributário menos injusto. Desta forma, foram atribuídos valores de 0 a 6 para diferenciar os estratos sociais, sendo que o estrato 0 é formado pelas áreas mais carentes de infraestrutura, com maiores índices de violência e com o padrão de habitação mais precário. O estrato 6 é formado pelas áreas mais bem dotadas de infraestrutura e evidentemente habitadas pela elite. Assim, os habitantes das áreas classificadas como 0, 1, 2 e 3, as quais abrigam 70% da população, recebem subsídios em tarifas de serviços públicos como transporte, energia e água, por exemplo, dos habitantes das áreas classificadas com, 4, 5 e 6, as quais representam 30% da população.
Mesmo que este sistema de tributação se pareça paternalista, a distribuição de renda é feita diretamente pelos próprios habitantes da cidade o que induz a uma menor autonomia da poder público em direcionar investimentos para privilegiar determinados grupos sociais. Creio que o principal efeito deste sistema seja o estabelecimento da noção de coletividade, de forma que a elite assume suas responsabilidades independentemente de ideologias políticas e de perfis de governantes.
Uma das linhas do Metro Cable liga o eixo principal norte sul ao Parque Arvi, local onde é possível explorar a região em relação ao seu patrimônio natural, cultural, arqueológico e agrícola e, ainda, trafegar por bairros populares e áreas de refúgios dos habitantes de Medellin. No meio do caminho pode-se visitar a Biblioteca de Espanha a qual foi doada pela Coroa Espanhola e marca o início da pacificação do bairro Santo Domingo Savio, tido como um dos mais perigosos da cidade no passado. Ainda não é possível circular pelo bairro com total segurança, mas o trajeto turístico é fortemente vigiado pela polícia e pelo exército e é preservado até pelos próprios moradores que adoram conversar com forasteiros.
Situada na região do centro administrativo a Praça dos Pés descalços é um dos símbolos do renascimento do urbanismo de Medellin. Antes que o leitor pergunte, a Praça dos Pés descalços nada tem haver com a música da Shakira. Inaugurada no ano 2000, a concepção arquitetônica buscou princípios da reflexologia para fazer o visitante desfrutar da tranquilidade da natureza em pleno ambiente urbano de forma que não é permitido o uso de calçados para caminhar pelas suas quadras de areias grossas. As cascatas, chafarizes e espelhos d’água são altamente convidativos para molhar as canelas, massagear os pés ou mesmo para um belo banho nos frequentes dias ensolarados.
A região ainda conta com o Teatro Metropolitano, um Museu de Ciências, o Bosque de Bambu, vários bares, restaurantes, cafés e a Plaza Mayor que abriga um centro de Convenções com uma Sala Multipropósito, vários pavilhões de exposições e um centro de apoio a eventos. Todas as áreas bem servidas de acesso ao sistema de transporte público, com arquitetura arrojada, com caminhos bem sinalizados e principalmente seguros.
O sucesso de muitos dos empreendimentos públicos como a rede de bibliotecas municipais, o Metro Cable e os espaços públicos urbanos inovadores têm por traz a gestão da EPM – Empresa de Serviços Públicos de Medellin, a qual é de propriedade da Prefeitura e atua efetivamente no desenvolvimento urbano nas áreas de obras públicas, produção e distribuição de energia, saneamento, mobilidade, tratamento e distribuição de água e gás, no Estado da Antioquia, cuja capital é Medellin. Não é por acaso que sua sede está situada na mesma região que foi escolhida para simbolizar a modernização da cidade em um edifício icônico e com elevado padrão de automação em sistemas prediais, tendo se tornado uma referência internacional em termos de edificações inteligentes.
A união entre o interesse público e os investidores privados fazem da EPM uma empresa bem fiscalizada e gerenciada com austeridade, fatores decisivos para torná-la a segunda maior empregadora do país, ficando apenas atrás da estatal Empresa Colombiana Petrolífera, a Ecopetrol.
A EPM tem autonomia para reinvestir e administrar o lucro de empreendimentos públicos nos 123 municípios em que atua e, pelo fato de estar desvinculada da política e ter independência administrativa, diminui-se o risco de projetos serem interrompidos devido à sucessão de prefeitos ou a mudança de prioridades políticas.
Não é possível conceber tal organização empresarial e assumir tamanha responsabilidade social sem um pacto entre Estado e população e um rigoroso combate à corrupção. Assim, a repercussão internacional dos projetos e o alto grau de excelência em gestão pública só se tornaram viáveis com o amadurecimento da democracia e o aumento da transparência nas contas públicas.
O que faz de Medellin tão instigante é que nada é tratado como bibelô, não vi nenhum grupo de indígenas tocando Beatlles com flauta andina. Todos os espaços públicos são de fato utilizados tanto por visitantes quanto por moradores, nada é preparado somente para turistas verem. Um exemplo é a Praça das Esculturas, situada no coração da cidade, onde desde 2002 estão expostas 23 peças originais confeccionadas em bronze e doadas para a cidade pelo consagrado escultor Fernando Botero. Mesmo após uma das esculturas – El Pájaro – ter sofrido um atentado terrorista em Junho de 1995, optou-se por deixá-las expostas em praça pública para que todos possam tocá-las e interagir com a sensualidade das formas de suas obras.
A história de Medellin tem sido escrita com muita intensidade a menos de quatro décadas, de maneira que podemos acompanhar sua vivacidade cultural em seus aspectos urbanísticos, em sua política ousada e, principalmente, por ter despertado o orgulho de ser colombiano, consequência da pujança de sua economia, chegando a ser considerada a segunda melhor cidade para se fazer negócios na América Latina.
Ainda há muito que fazer para melhorar as condições de vida da população, no entanto, caso alguém considere uma visita e esteja preocupado com a segurança para o turista, é importante relatar que atualmente a cidade ocupa o 35º. posto no ranking da violência urbana mundial e é mais segura do que muitas cidades brasileiras.
sobre o autor
Érico Masiero é arquiteto, doutor em Engenharia Urbana pela Ufscar e diretor da MW Arquitetura SS Ltda.