O crítico entorna no bico a segunda garrafa de guaraná quando o poeta chega com os passos claudicantes marcados pela batida da bengala no chão gelado do botequim. Senta e pede inutilmente um whisky cowboy; o atendente – não seria bom chamá-lo de garçon para não provocar a ira do amigo, que só gosta do que é da terra, inclusive na escolha das palavras – já havia colocado o copo assim que o viu passar pela porta do estabelecimento. Agradece levantando o copo num brinde ao ar e volta-se para o pesquisador aposentado:
— Só você para escolher esta merda de música.
Na vitrola roda um discão de antigamente, ou long-play na fala provocativa do poeta. Toca um lundu, samba pré-histórico, ou melhor, a pré-história do samba segundo a convicção do estudioso da música brasileira. O garçon já estava com outro disco nas mãos aguardando o sinal do velho de cabelos brancos volumosos. Não demorou.
— Oh, moleque, coloque uma canção de verdade para rodar nesta tranqueira!
E a voz monocórdica começa a cantarolar baixinho: “Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser...” Uma provocação, sempre a mesma, mas suportável, pois o crítico e historiador da música não tolera a bossa nova, “coisa de gringo”, mas é justo com João Gilberto, a quem atribui a invenção de uma batida original no violão.
O poeta e o garçon observam a reação do estudioso empedernido, que mantém nos lábios congelados um sorriso amarrado desde a chegada do amigo. Finalmente as mãos se levantam e ajeitam os cabelos ausentes na careca lustrosa. Mas decepciona os dois expectadores com o silêncio manhoso.
— Grande Tom! O mundo se curvou diante de seu talento villalobiano —, diz o compositor com entonação de galã de novela canastrão e dá uma piscadela para o garçon que ri com dentes brancos no meio da cara negra. Diante da mudez agora incômoda, quase grita a fala irônica — “estou tentando te provocar!” — e ganha uma risada mais forte do atendente e um ranger de dentes do amigo. O troco do historiador demora um tanto, mas vem embalado em fino sarcasmo:
— Eu acho que você disse alguma coisa interessante, pois o Zezinho está brilhando de feliz, mas não ouvi nada não —, diz em tom de blague, levando as mãos em forma de conchas junto às orelhas, simulando uma surdez exagerada. Era um pouco surdo, mas tinha entendido muito bem. Os segundos de silêncio seguintes são vividos pelos outros dois com sentimentos díspares que se alternam da graça à perplexidade até que ele corta o silêncio com a lâmina de sua opinião ferina:
— João Gilberto é grande, não é tolo como o Tom Jobim. Coitado do Tom, que achava que fazia música brasileira...
O atendente sorri, o poeta gargalha, mas o historiador os ignora e continua:
— Bossa nova é jazz! Jazz americano tocado numa casa arruinada ao som da goteira — e cantarola “plinc, plinc, planc, plinc, planc...”, marcando o ritmo com mãos espalmadas de maestro. — Ritmo de goteira, é isso que a bossa nova é, um “ritmo goteira” —, finaliza mordaz.
Agora muito irritado, o poeta ameaça com uma temerária bengala, que oscila nas imediações do cocuruto do seu adversário. Falar assim de Tom Jobim é uma heresia. Justamente o Jobim onde desaguou o rio vigoroso da tradição, onde estavam imersos Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Aracy de Almeida e tantos compositores, cantores e músicos da nata carioca. Tom é Deus. Embainha a contragosto a bengala sob o olhar de reprovação de Zezinho, que finge severidade e segura a gargalhada diante da cena reprisada como filmes da sessão da tarde. Da vitrola vem a voz contida de João, que murmura “não há paz, não há beleza, é só tristeza, e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai...”
Poeta, letrista formidável, parceiro de Pixinguinha, Cartola, Baden Powel, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola etc. e tal, Hermínio Bello de Carvalho, carioca da gema, 80 anos, tamborila na mesa acompanhado por vozes imaginárias dos amigos ausentes, a maioria para sempre. Jornalista, crítico musical, pesquisador incansável da música brasileira, santista tornado carioca, 87 anos, José Ramos Tinhorão lembra que os seus seis mil discos já não estão mais ao seu alcance, jazem agora no acervo de instituição poderosa a espera de algum sucessor improvável, afinal, quem estaria interessado nas raízes profundas da música nacional? Com os olhares em paralelo postos na parede do botequim repleta de sedutoras garotas das cervejarias, coabitam na desarmonia de seus mundos inconciliáveis e nos únicos três pontos comuns que os unem há décadas: a paixão pela música, a batida de João e o amor incondicional por Mário de Andrade.
Zezinho olha com calma plácida a cena rotineira. Sabe que um vai acabar o primeiro uísque e o outro vai pedir o último guaraná, vão silenciar juntos mais meia ou hora inteira para depois cada um rumar para a própria casa, não sem antes disputar a primazia de passar em primeiro lugar pela porta do bar.
nota
NA — esta pequena ficção é uma homenagem à mesa “Música, doce música”, o mais eletrizante e divertido encontro que assisti na Festa Literária Internacional de Paraty – a Flip 2015, curadoria geral de Paulo Werneck – que reuniu no dia 5 de julho de 2015, às 10h do domingo, com mediação de Luiz Fernando Vianna, dois dos personagens mais sabidos acerca da música brasileira, Hermínio Bello de Carvalho e José Ramos Tinhorão. A harmonia na discórdia é uma arte para poucos.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.