Em seu livro seminal de poemas, Alguma poesia, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade dizia que era preciso escrever algo sobre a Bahia, mas que nunca tinha lá estado. Se essa premissa for verdadeira, o que dizer então de um lugar em que já se esteve? Revisitá-lo com a ponta da pena seria, mais do que uma opção, um dever? E quando se trata de uma geografia peculiar, um povo exótico, uma cultura rica e única?
Sim, é preciso escrever algo sobre Cuba... E aí reside um novo problema! Será possível, imerso numa experiência diferente e sob uma ótica "estrangeira", proclamar isenção sobre uma realidade até há pouco intocada, quase que cultivada em cativeiro? O que se poderá dizer, de forma imparcial, de um sistema e de um modo de vida que nos são completamente estranhos? É necessário, ou mesmo possível, despir-se de qualquer abordagem ideológica, em suma?
O que leva à primeira – e talvez única – conclusão deste texto: as seguintes palavras são tão-somente "verdades" de viajantes, nascidos e criados num país capitalista, de contradições econômicas e extremas desigualdades sociais. A visita à ilha caribenha acorreu após período de eleições presidenciais no Brasil, momento em que suscetibilidades estavam feridas e tendências ideológicas polarizadas se acirraram e um dos lados redarguia em revolta um “então vai pra Cuba!”.
À primeira vista Havana parece ser pacata, muito diferente datumultuada cidade que recebeu, no dia 8 de janeiro de 1959, a triunfante Caravana da Liberdade comandada pelos irmãos Raúl e Fidel Castro, Camilo Cienfuegos, Che Guevara, Célia Sanchez e Hubert Matos.
A chegada ao Aeroporto José Martí teve um sabor especial, degustado por olhos ávidos que anotavam na retina passo-a-passo do sobrevoo às águas caribenhas ao pouso tranquilo em terras cubanas. No caminho até o famoso, e kitsch, Hotel Deauville, antigo reduto da máfia dos jogos de Havana, são incontáveis os outdoors da propaganda revolucionária do regime castrista, segue imponente a Plaza de la Revolución, vigiada pelas silhuetas de Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos nos edifícios governamentais, duas arestas do triângulo revolucionário de Cuba. Tudo sob o olhar atento e desconfiado dos bustos do prócer José Martí, presentes em quase todas as repartições públicas.
A brisa caribenha do Malecón é uma recepção e tanto, palco dos principais eventos da vida política cubana nas últimas décadas, com direito à vista do Hotel Nacional e da Fortaleza de San Carlos de la Cabaña, onde acontece o célebre cañonazo das 9 horas da noite, evento histórico em que o barulho do canhão avisava a sonolenta cidade de San Cristóbal de La Habana, em meados do século 18, da necessidade de fechar os portões da cidadela.
A culinária é uma curiosidade à parte, um dos pratos principais oferecidos ao turista – mas pouco presente nos dos cubanos – amiúde fazia companhia nos cardápios às carnes de frango e porco, ao popular moros y cristianos (muito similar ao Baião de Dois daqui), e a outras delícias da cozinha nativa. Há um constrangedor apartheid, porém, entre os lugares frequentados por turistas, cuja moeda de troca é o Peso Conversível (CUC), e pelo cidadão cubano, que recebe em moeda nativa o equivalente a 30 dólares por mês e está restrito a consumir em estabelecimentos bem inferiores aos dos turistas.
Habana Vieja ostenta um conjunto arquitetônico eclético composto por prédios nos estilos barroco, neoclássico, art déco, art nouveau e modernista, que, apesar dos evidentes problemas de manutenção e das dificuldades impostas às ações de restauração e conservação realizadas pela Oficina del Historiador de la Ciudad, consegue guardar a mesma elegância dos seus automóveis históricos. O respeito pelo gabarito, a diversidade de estilos e a pátina do tempo conferem à arquitetura cubana o signo de relíquia, características que se estendem à belíssima necrópole havanesa da segunda metade do século 19, o Cemitério Cristóvão Colombo.
Havana é uma cidade encantadora e misteriosa. Seus automóveis charmosos, que desafiam o tempo, conferem um ar retrô e até garboso à velha paisagem. Entre a caravana de carros norte-americanos do período pré-revolucionário e soviéticos do período castrista, irrompem novos modelos e os já famosos cocotáxis, a atração entre os turistas. A figura mitológica de Che Guevara geralmente atrai o turista a Santa Clara, onde está o mausoléu que guarda os restos mortais do guerrilheiro heroico e seus seguidores, mas é possível conciliar a viagem com atrações artísticas que acontecem no Teatro de La Caridad, que naquela ocasião recebia o show da cantora espanhola Ángela Cervantes, na comemoração dos 50 anos do grupo cubano Los Fakires – uma emocionante mostra musical cubana.
No entanto, parodiando Câmara Cascudo, a quem o maior produto do Brasil é o brasileiro, o bem mais valioso de Cuba é o povo cubano. Sua composição étnica, uma mistura entre o europeu, o africano e o indígena, muito lembra o processo de formação social do Brasil. Mas não é só isso! Sua cultura extremamente musical, sua expressão religiosa de matriz africana, com seus orixás e exus, e sua festividade tropical fazem o curioso brasileiro se sentir em casa.
A tirar pela cultura musical presente nos bares de Havana, imagina-se que Cuba inteira seja, o a imagem cantante e dançante de seu grupo mais conhecido Buena Vista Social Club, com seus músicos apetrechados com claves, maracas, shekerés, congas, guatacas, passando o chapéu religiosamente ao final de cada apresentação como uma forma mais lúdica de ganhar a vida, depois de entoados os versos iniciais de Guantanamera:
Guantanamera, guajira guantanamera
Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Y antes de morirme quiero
Echar mis versos del alma.
A receptividade do cubano é algo inédito aos olhos míopes a qualquer proximidade. De garçons a escritores, todos se mostram dispostos a uma conversa amigável, terna e franca, regada a mojito, a principal bebida do país, em La Bodeguita del Medio, a Daiquirí em La Floridita e até mesmo ao charuto cubano, um dos melhores do mundo.
Como parte do Programa de actividades del Instituto Cubano del Libro, acontecia na Livraria Fayad Jamis o lançamento simultâneo de duas obras de escritores cubanos: Orlando Carrió (La isla del buen humor – crónicas costumbristas cubanas) e Leonardo Depestre Catony (Cien mujeres cérebres em La Habana). Após autógrafos das obras, os escritores dialogam com admiradores locais e turistas curiosos, uma aproximação que possibilita o estreitamento de futuros laços de amizade.
As livrarias de Cuba, muitas delas localizadas na Calle Obispo, exibem uma minguada variedade bibliográfica; a maioria das obras aborda o tema da Revolução Cubana e os feitos de seus guerrilheiros heroicos, poucas sobre literatura universal e ciências em geral estão nas prateleiras e nenhuma que faça críticas ou contrapontos ao regime. E ainda que seja acessível o preço do livro, esse artigo de primeira necessidade acaba relegado a segundo ou terceiro plano em comparação a outras prioridades mais urgentes, como alimentação e vestuário.
O principal assunto do país, claro, não poderia ser outro: a histórica reaproximação com um inevitável vizinho, distante 160 km da costa cubana. Inevitável, mas nem por isso indesejável! Em suas conversas, muitos cubanos manifestavam há algum tempo a esperança de retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos, suspensas desde a infame Crise dos Mísseis de 1962, origem do não menos abjeto embargo econômico. Outros percebem essa movimentação com certa desconfiança, tendo em vista não ter sido esta a primeira tentativa de diplomacia entre esses dois inimigos históricos.
Cuba é deveras um país misterioso. Como o Brasil, não é para principiantes. Ao turista que não se contentar apenas com as águas calmas e as areias cristalinas de Varadero, com o encanto histórico e bucólico de cidades como Trinidad (declarada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade), com a aura revolucionária de Santa Clara, por exemplo, cabe a missão pessoal de decifrá-la em todas as suas minudências, sob pena de, qual a esfinge edipiana, ser devorado por reducionismos abstratos e proselitismos ingênuos, sem descobrir o verdadeiro tesouro escondido na Ilha de Fidel – a mesma ilha de Ernest Hemingway, Pablo Milanés, Paul Lafargue e Yoani Sánchez: sua rica e profunda identidade cultural.
nota
NE – Publicação original: ORFILA, Patrícia; DARIN, Thiago Henrique. Cuba: a esfinge do Caribe. Caderno Arte & Vida, Jornal do Tocantins, 22 mar. 2015, p. 1.
sobre os autores
Patrícia Orfila Barros dos Reis é arquiteta e urbanista/UFPa, mestre em Engenharia Urbana/PPGEU/UFSCar, doutora em História Social IFCS/UFRJ e professora do Curso de Arquitetura da Universidade Federal do Tocantins/UFT.
Thiago Henrique Darin é amanuense formado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Mestre em Estudos Clássicos pela Universidade de Lisboa.