Mário de Andrade foi um intelectual múltiplo, plural. O alcance de seu radar era vasto: literatura, poesia, música, etnografia, folclore, arquitetura, artes plásticas, fotografia, crítica literária, políticas culturais enfim, um universo de interesses que não encontra paralelo na atualidade. É notável também sua intensa atividade de missivista, com os maiores intelectuais e personalidades de seu tempo, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Câmara Cascudo, Tarsila do Amaral, Gustavo Capanema, Fernando Sabino, mas também com anônimos, o que permitiu aos estudiosos e biógrafos uma oportunidade ímpar para refletir sobre a diversidade de questões, ainda contemporâneas, presentes em sua vida e sua obra. Poucos como ele são merecedores de seu famoso aforismo: “eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta”.
Embora a homenagem aos setenta anos de sua morte tenha ensejado a reedição de grande parte de seus livros, artigos e ensaios, bem como a realização de seminários e eventos, como a Festa Literária Internacional de Paraty/2015, alguns dos 49 títulos que compõem sua obra encontram-se esgotados. É o caso de O turista aprendiz.
A partir dessa constatação, o Iphan deu início, em 2013, às providências para a sua reedição. Concluído em 1943, mas só editado pela primeira vez em 1976, recebeu sua última edição em 1983, pela Livraria Duas Cidades (1).
O turista aprendiz, um dos mais importantes livros de “descobrimento” do Brasil, foi escrito em forma de diário, com informalidade, humor e elevada percepção para o prosaico e o inusitado, para narrar duas viagens de Mário. A primeira em companhia da aristocrata do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, de sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e de Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral, pintora do célebre Abaporu. O périplo se inicia em maio de 1927 e dura três meses. Do Rio de Janeiro até a Bolívia e o Peru, navegando por toda a costa brasileira até Belém e depois por rios da região, entre eles, Amazonas, Negro, Solimões e Madeira. Na segunda viagem, Mário parte sozinho, em novembro de 1928, para o Nordeste, onde permanece até fevereiro do ano seguinte, para realizar seu projeto de pesquisa etnográfica. Ali é recepcionado por amigos como Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Câmara Cascudo. O contato, ora com a floresta, ora com o sertão, e seus diversos tipos humanos e manifestações culturais, religiosidade, folguedos, danças, músicas, quase sempre impregnados de sincretismo e superstição, causa grande impacto em nosso “turista”, consolidando uma visão de nacionalidade abrangente em oposição aos valores regionais até então majoritários.
O relato dessas viagens reforça valores já presentes na Semana de Arte Moderna de 1922. Valores esses que, em nosso ambiente, onde passado e presente coexistem com grande proximidade, revelam-se, às vezes, contraditórios: ao mesmo tempo crítico das instituições e pregando a ruptura com o passado acadêmico, Mário identifica-se com ideias liberais e conservadoras. O resgate de um Brasil de feição mestiça e desgarrado dos padrões europeus de então, mais indígena, mais africano, mais caboclo e caipira, inicia uma nova síntese cultural que procura abarcar as múltiplas faces da brasilidade. Trata-se de reinventar o país a partir do seu reconhecimento e indeterminações. Não é por acaso que sua inovadora obra Macunaíma, um herói sem caráter vem à luz em 1928, depois do contato com o universo amazônico.
Desde a famosa visita dos paulistas a Minas, em 1924, denominada por Oswald de Andrade de "a viagem de descoberta do Brasil”, da qual também participaram Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, Tarsila do Amaral e o poeta suíço Blaise Cendrars, Mário vinha recolhendo farto material para a análise dos elementos constitutivos de nossa nacionalidade, o que mais tarde balizaria sua proposta para criação de uma instituição de proteção ao patrimônio histórico no Brasil. Esse material reúne mais de 900 fotos produzidas com sua “Codaque”, que acompanham a presente obra em DVD.
Ao assumir a Diretoria do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1935, nosso modernista põe em prática muito do aprendizado de suas viagens. Empreende uma intensa atividade de difusão de manifestações culturais eruditas e populares, com forte viés educativo, o que acabou por polir suas formulações para elaborar, em 1936, o Anteprojeto de Preservação do Patrimônio Artístico Nacional, sob encomenda do então Ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema.
Conceitos como o de arte ameríndia e popular, bastante abrangentes, incluindo o que hoje denominamos de saberes, fazeres e falares, ou o de paisagem cultural – sem ainda receber esta denominação –, já estão presentes em sua proposta, o que lhe confere impressionante contemporaneidade após tantos anos. As sementes ali lançadas irão germinar ao longo das oito décadas seguintes, antecipando em vários aspectos – especialmente na dimensão imaterial – as iniciativas e convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), referência internacional na preservação do patrimônio cultural, criada em 1946, bem como a Carta de Veneza, de 1964, cuja influência na preservação do patrimônio cultural em todo o planeta ainda se faz sentir.
O visionário projeto de Mário de Andrade, para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), constituiu-se em referência central para a elaboração do Decreto-Lei Nº 25, de 1937, que estabeleceu o conceito de patrimônio cultural e propôs como seu principal instrumento o tombamento.
O Decreto-Lei Nº 25 de 1937 caracteriza-se principalmente pela concisão e objetividade. Sua utilização ao longo de quase oitenta anos, praticamente sem modificações, em um período de profundas transformações sociais, econômicas e políticas, é o principal testemunho de suas qualidades. A ênfase principal do decreto está em definir e regulamentar a aplicação do instituto do tombamento, medida inovadora e acertada, em uma sociedade cuja elite sempre foi pouco afeita a restrições ao direito pleno de propriedade, em prejuízo de sua função social.
As circunstâncias históricas e políticas que caracterizaram a concepção de preservação do patrimônio no Brasil, especialmente no Iphan, assim como a ausência de outros instrumentos além do tombamento, determinaram que as ações de proteção se concentrassem, até os anos 1990, quase que exclusivamente em identificar e proteger monumentos, edifícios e conjuntos urbanos de relevante interesse histórico e artístico, isto é, nos bens em “pedra e cal”, significativos por sua excepcionalidade e/ou monumentalidade. Os bens móveis, por sua vez, já contavam com certa atenção governamental desde o Brasil Colônia, pois foram valorizados com a criação de museus, como o Nacional, em 1818, o do Ipiranga, em 1909, pelo Governo do Estado de São o Paulo, e o Histórico Nacional, em 1922. Uma realidade que só seria alterada substancialmente com a Constituição de 1988, especialmente os artigos 215 e 216, que resgatam concepções do anteprojeto de Mário.
Essa política de preservação se amplia em escala, após 1937, e se soma ao esforço de reconhecimento internacional, por intermédio da divulgação de livros e textos de escritores estrangeiros, como o francês German Bazin, o inglês John Bury e o austríaco Stefan Zweig – autores, respectivamente, de Arquitetura religiosa barroca no Brasil, Arquitetura e arte no Brasil colonial, e Brasil, país do futuro. O período entre 1937 e 1967, acertadamente denominado de "fase heroica", coincide com aquele em que Rodrigo Melo Franco de Andrade dirigiu o Iphan, a ponto de personificar a proteção ao patrimônio no Brasil e de fazer da instituição uma das mais importantes do mundo.
É, portanto, a hegemonia modernista quem promove uma notável revisão de paradigmas e de ressignificação da herança cultural brasileira. Nessa dialética tradição/modernidade, é fundamental lembrar que as artes em geral e a arquitetura em particular foram, e continuam sendo, entre outras coisas, eficazes instrumentos de irradiação de ideias e conceitos. O resgate do barroco, estilo dominante nos séculos 17 e 18, especialmente o mineiro, até então relegado por ser considerado excessivo e trágico em sua visão de mundo e metáfora da vida celestial, valoriza aos olhos do país e do mundo uma herança que, embora de origem ibérica, revela a contribuição singular de arquitetos, artistas, mestres e músicos – cuja maioria, ao largo de uma formação acadêmica regular, em condições muito peculiares, produziu um conjunto de realizações de grande beleza e apuro técnico. Antônio Francisco Lisboa, “o Aleijadinho”, mestres Ataíde e Valentim, o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, entre muitos outros, foram reconhecidos por autores como Affonso Ávila, Lucio Costa, Robert Smith e Lourival Gomes Machado. Todos representantes legítimos da originalidade da produção artística aqui desenvolvida, em contraste com uma cultura repetitiva dos padrões europeus, que até então eram a referência de um país que iniciava sua urbanização e procurava no academicismo a sua feição civilizatória.
Transcorridos quase noventa anos de suas viagens e oitenta de seu anteprojeto para o Sphan, permanecem os paradoxos existentes no país. É num contexto social em que as mazelas centenárias, bem como as disparidades e assimetrias interpessoais e inter-regionais, continuam as mesmas, que a realidade, no entanto, vem se transformando, graças a uma nova concepção de cultura e do imaginário nacional, pela incorporação das manifestações populares. A modernização é crescente. São as famosas “ideias fora de lugar”, para as quais Roberto Schwarz nos chama a atenção em seu clássico ensaio homônimo.
A leitura de O turista aprendiz não é a de um livro histórico, datado. É a de uma realidade onde ainda se confrontam manifestações culturais ligadas à tradição, ao território, às relações com a ecologia, aos fazeres e saberes do cotidiano, em oposição a uma outra muitas vezes desenraizada, pois relacionada a valores exógenos, descompromissados com o cotidiano, que são próprios de uma cultura urbana mais cosmopolita, nem sempre afeita à dialética de transformação, em que a cultura assume seu papel libertador e semeador do futuro.
O Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, premiação realizada há 28 anos pelo Iphan, tem exposto anualmente essa contradição entre vários Brasis. Daí o grande interesse despertado pela reedição de O turista aprendiz. Contemporâneo e reflexivo, o livro ainda é capaz de ajudar a surpreender a realidade com o desafio à criatividade e a instigar um novo olhar, inquieto, curioso e sobretudo generoso sobre o Brasil.
nota
1
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2a edição. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1983.
sobre o autor
Luiz Philippe Peres Torelly é arquiteto e urbanista. Trabalha no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.