Há quase uma década eu estava em vias de morar na cidade do Porto, no norte de Portugal, no âmbito do Acordo de Cooperação de Países Lusófonos e Latino Americanos (PLeLA) entre a minha instituição de origem, a Universidade Federal de Santa Catarina, e a Universidade do Porto. Era o ano de 2006 e eu embarcaria no mês de setembro, na semana em que completaria mais um aniversário. Aquela seria também a minha primeira grande viagem internacional e eu finalmente realizaria um sonho de infância: não apenas conhecer outro(s) país(es), mas viver de fato outras cidades, outros hábitos, culturas absolutamente diferentes das minhas.
Apesar de eu estar indo para um lugar onde se fala o mesmo idioma que o meu próprio – embora eu deva admitir que levei cerca de três semanas para compreender uma aula expositiva na íntegra –, eu estava indo para a FAUP, a conhecida Escola do Porto, uma das mais respeitadas escolas de arquitetura no panorama internacional. Passaria a estudar por um ano na Escola do “arquiteto Siza Vieira” (como é chamado por seus conterrâneos, mesmo por aqueles de fora do campo profissional da arquitetura e do urbanismo, o mais expoente arquiteto português em exercício), um dos poucos agraciados, pelo conjunto de sua obra, com o cobiçadíssimo “Nobel da arquitetura”, o Prêmio Pritzker.
Tanto a experiência no Porto (a topografia, as arquiteturas de várias épocas e estilos, desde a vernacular até a contemporânea; as vielas e becos de conformação medieval, as pontes de ferro, as caves de vinho na vizinha Vila Nova de Gaia, o cotidiano pacato e, ao mesmo tempo, cosmopolita; o Rio Douro e toda a paisagem a sua volta) quanto a experiência na FAUP (a grade curricular, as diferenças boas e ruins em relação às escolas de arquitetura e urbanismo no Brasil, os professores, os estudantes, o imenso contingente de intercambistas, dentre os quais grande número de brasileiros; as especificidades das disciplinas cursadas, o próprio prédio da Faculdade e sua relação com a paisagem e o Douro; a afetividade de professores e estudantes para com este mesmo lugar) geram, como não poderia deixar de ser, um infinito de memórias passíveis de serem narradas. Entretanto, gostaria de focar aqui numa experiência específica, imensamente prazerosa, que empresta o nome a este texto e que diz respeito ao trabalho final de História da Arquitectura Contemporânea, unidade curricular do então curso de Licenciatura em Arquitectura (hoje, Mestrado Integrado em Arquitectura), cuja parte prática ficava sob tutoria de Carlos Machado, professor auxiliar da FAUP e regente da disciplina.
De uma lista bastante generosa de arquiteturas do que se pode chamar “de autor”, cada estudante deveria escolher o mínimo de 20 obras, localizadas no Porto, arredores e também em outras cidades do país. Nesse momento, já se antevia, com alguma folga, o final do ano letivo, e talvez por esse motivo me era tão importante a possibilidade-chance de conhecer tanto mais arquiteturas e arquitetos quanto cidades que ainda não havia conhecido. Estabelecidas as obras a serem visitadas, organizei-me no calendário. As visitas foram espaçadas, mas todas aconteceram entre abril e maio de 2007. Visitei alguns lugares sozinho, mas, na maior parte das visitas, estive na companhia de amigos queridos, companheiros do meu cotidiano naquelas terras do além-mar.
O “caderno de viagens”, assim denominado, poderia ser realizado de modo absolutamente livre, através de textos, desenhos, fotografias, etc. Assim, para narrar um pouco dos meus percursos pelas oito cidades portuguesas que elegi – Porto, Marco de Canaveses, Maia, Lisboa, Évora, Aveiro, Ovar, Vila da Feira – mais Santiago de Compostela, na Galícia – que passou a integrar, por acaso e pelo contexto (por sediar obras de Álvaro Siza), o conjunto de cidades visitadas, já que não estava na lista oficial de obras previamente estabelecidas –, escolhi o tipo de narrativa mista, onde texto e imagem pudessem figurar de modo indissociável.
Por motivos de escopo, compartilho, aqui, com o leitor uma síntese das mais de 30 obras percorridas especialmente para o desenvolvimento do caderno, das quais 27 foram usadas de fato no trabalho em seu formato final. Do total de quase 400 fotos que compõem o caderno, 29 foram elegidas para compor este texto, mas todas as nove cidades, acima mencionadas, figuram com pelo menos uma obra cada. As imagens trazem as seguintes obras: a Farmácia Vitália, o Cinema Batalha, a Faculdade de Economia da Universidade do Porto, o Conjunto Habitacional da Bouça, a Casa e o Museu de Serralves e o Edifício de Habitação Plurifamiliar Bloco da Carvalhosa, todas localizadas no Porto; a Igreja de Santa Maria, localizada em Marco de Canaveses; o Edifício de Habitação Colectiva na cidade da Maia; o Hotel Vitória, o Conjunto Habitacional Bairro das Estacas e o Edifício de Habitação, Comércio e Serviços Bloco das Águas Livres, em Lisboa; o Bairro da Quinta da Malagueira, em Évora; o Depósito de Água e a Biblioteca da Universidade de Aveiro; os mercados municipais de Ovar e de Vila da Feira; o Centro Galego de Arte Contemporánea, em Santiago de Compostela. Finalmente, a Piscina de Marés, em Leça da Palmeira, é trazida para este texto como um “extra” – dando-nos a marca total de 30 fotografias tiradas em dez cidades visitadas –, em fotografia tirada poucos dias antes do meu retorno ao Brasil, já tendo o ano letivo finalizado e, portanto, o caderno de viagens sido entregue (1).
A escolha das fotografias que acompanham este texto se deu, muitas vezes, à originalidade da obra, por seu uso efetivo ou, ainda, por contraste, seja pela subutilização naquele momento, pela degradação ou estado de arruinamento em que se encontrava determinada arquitetura (como é o caso do Mercado Municipal de Ovar, restaurado e reinaugurado em 2012). Devo dizer, também, que preferi, conscientemente, pela não inserção da FAUP, seja no caderno de viagens, seja aqui, justamente porque eu estava ali diariamente e, portanto, não teria tido, ao registrá-la, o mesmo “olhar fresco” que tive para as demais obras visitadas.
Durante o intercâmbio, conheci algumas outras poucas cidades fora de Portugal. Encontrei alguns amigos queridos de longa data, conheci um tanto de amigos novos, dentre eles, brasileiros, italianos, alemães, austríacos, tchecos, turcos, espanhóis, alguns dos quais reencontrei posteriormente. Mas nunca mais voltei ao Porto, embora venha literalmente sonhando com este retorno desde então. Tenho a certeza de que a cidade mudou bastante nesses últimos anos: a Casa da Música e o Metro (metropolitano) já não são “novidades”, a Baixa parece já não estar mais em processo de degradação/arruinamento, devido às obras de “revitalização” por que tem passado a área recentemente.
De todo modo, fica o registro daquele tempo quase inocente, talvez “verde”, não maturado, ao passo que a memória vai criando cada vez mais hiatos, lapsos, fragmentando-se nas fraturas inexoráveis ao tempo. Um tempo de edificação, de construção de bagagem de arquitetura, de cidade, de vida. Como escrevi na breve introdução do trabalho, à época, o caderno de viagens é como um livro ou um relato-resumo do que vivi em Portugal, arquitetônica e urbanisticamente falando: objeto de arte-poesia-literatura-arquitetura-fotografia-e-o-que-mais-pudesse-ser – um devir.
notas
NA – Agradeço a todos que estiveram comigo durante as visitas realizadas, acompanhando-me no registro fotográfico: Karine Damásio, Laura Cunha, Paulo Monteiro, María Gordillo, Andréa Veras, Flavia Somavilla e, particularmente, Alexandra Fritz e Tobias De São Pedro, pela gentileza de terem cedido os direitos de uso de imagem. Agradeço também os generosos comentários feitos pelo professor Carlos Machado por ocasião da entrega final do trabalho.
1
As seguintes obras, constantes do caderno de viagens, ficaram de fora da seleção aqui apresentada: no Porto: Edifício de Garagem do Jornal O Comércio do Porto (Rogério de Azevedo, 1928-1932), Edifício de Escritórios e Habitação da Firma Soares & Irmão (Arménio Losa e Cassiano Barbosa, 1950-1955), Coliseu do Porto (Cassiano Branco, 1939-1940), Armazéns Nascimento (José Marques da Silva, 1914-1927) e Operação SAAL Norte, Conjunto Habitacional das Musas (Sérgio Fernandez, 1975-1978); em Lisboa, a Escola Nº 175 (Víctor Palla e Bento de Almeida, 1975); em Aveiro, o Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro (Eduardo Souto de Moura, 1990-1994) e a Câmara Municipal (Fernando Távora, 1963-1965); e em Santiago de Compostela, a Faculdade de Ciencias da Información (Álvaro Siza Vieira, 1993-2000). Algumas obras, elegíveis para as visitas (constantes da lista da disciplina), não as pude localizar, como a Operação SAAL das Antas, no Porto. Em outras, havia o problema do mau tempo ou de ordem técnica, como aconteceu com a Piscina de Marés, que só estaria aberta para o público no início do verão. Havia também problemas que atribuí, à época, a burocracias de ordens gestacionais e/ou administrativas, que, de algum modo, impediram que obras como a Escola do Vale Escuro e a Casa da Moeda, em Lisboa, e o Instituto Pasteur de Lisboa, no Porto, fossem visitadas. Do mesmo modo, em algumas obras não era permitido fotografias do interior – a menos que as regras fossem burladas, como aconteceu com a Biblioteca da Universidade de Aveiro. Ainda, por falta de tempo hábil, obras como o Clube de Ténis de Monsanto, em Lisboa, também não puderam ser visitadas. Por outro lado, algumas pessoas muito bem dispostas (funcionários, técnicos, seguranças) colaboraram imensamente para que obras como o Mercado Municipal de Aveiro e a Escola Nº 175, ambas em Lisboa, fossem não apenas livremente visitadas, mas também fotografadas.
sobre o autor
Osnildo Adão Wan-Dall Junior é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, com período de mobilidade acadêmica na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. É também mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, onde é membro do grupo de pesquisa Laboratório Urbano e da equipe de produção editorial da revista Redobra.