Um roteiro basicamente serrano, mas também com um pouco de praia porque ninguém é de ferro.
As serras? Do Mar, da Mantiqueira e da Bocaina, uma infinidade de tons de verde das folhagens, de flores e de beleza.
As altitudes? As mais variadas possíveis – do nível do mar, na Praia dos Ranchos em Trindade, até os 1800 metros na Pedra da Macela, no município de Cunha (1), no Alto Paraíba.
Arquitetura singela do casario colonial, casarões, sedes das fazendas de café, plantações, campos de lavanda, natureza exuberante, trilhas, cachoeiras, vistas deslumbrantes, horizontes extensos, comidinhas, artesanato de crochê ou madeira... tudo para o turista que gosta de viver a história e sair do tradicional.
Nossa viagem começa em Cunha (40 km de Guaratinguetá e 45 km de Paraty), um dos maiores municípios do Estado de São Paulo, com 1410 km2. Pouco mais da metade (55%) de seus quase 22 mil habitantes moram na zona urbana e os 45% restantes na zona rural. Criado como posto de descanso, no final do século 17, o local era a última parada dos tropeiros que percorriam a Estrada Real antes de chegar ao porto de Paraty de onde nosso ouro era embarcado com destino a Portugal. Serviu também como percurso para o café, já que as antigas trilhas indígenas foram alargadas e calçadas, desta vez por escravos. Porém, com o declínio da atividade cafeeira, Cunha começa a perder a importância, mas seu relativo isolamento foi um fator positivo que ajudou a preservar seu ar tranquilo e suas tradições religiosas e caipiras. Hoje, a estância climática de Cunha tem situação privilegiada pela paisagem, pelo clima e suas dimensões. Assim, percorre-se muito chão, dentro de seus limites. Em suas estradinhas, vimos cachoeiras, nascentes, riachos, pedras, remanescentes de trilhas construídas pelos escravos, imensas áreas de reflorestamento, muitos horizontes, muitas araucárias e uma vegetação abundante em ipês, manacás, quaresmeiras, sibipirunas e outras árvores da Mata Atlântica.
Desde meados da década de 1970, Cunha se destaca como polo de cerâmica artística (2), a partir da vinda para a região de ceramistas de formação japonesa que trouxeram consigo a milenar técnica chinesa de cerâmica artística, queimada nos fornos Noborigama, a lenha e de altíssima temperatura. Em japonês, noboro significa rampa e gama forno. Assim, o forno é construído em degraus, em declive natural, e pode chegar a 1.400 graus Celsius. Com isso, cada câmara fica interligada à outra, permitindo o aproveitamento do calor – que vai subindo, gradualmente. Sempre atuantes, os ceramistas prosseguiram em seu trabalho e formaram uma legião de discípulos que formaram novos discípulos e assim por diante. Não existe quem vá para Cunha e não faça a via sacra nos ateliers de cerâmica em sua rica diversidade técnica e estética.
O tranquilo centro histórico da cidade conserva duas igrejas mais antigas: Igreja do Rosário, tombada e construída em 1793, para os escravos; e a Matriz Nossa Senhora da Conceição, construída em 1731, cujo interior guarda belas imagens e altares talhados em madeira. Destacam-se ainda alguns prédios antigos, dentre eles, os imóveis que ladeiam a praça da Matriz, onde hoje funciona a prefeitura e o antigo casarão, construído em 1830, sede da prefeitura na década de 1950 e desapropriado em 2002. Hoje, tombado, encontra-se em processo de recuperação com projeto de restauro da arquiteta Maria Luiza Dutra.
A Igreja de São José da Boa Vista fica a 6 km do centro histórico e foi erguida, em 1724, onde se estabeleceu a primeira povoação da região. Pode ser vista, à distância de O Lavandário (3).
O Lavandário é outro local que merece ser conhecido. Pouco depois da entradinha para a Igreja de São José, na Estrada Cunha-Paraty, está a entrada para O Lavandário que encanta os visitantes com a bela plantação de lavandas que florescem o ano todo, e a marcante lojinha/bar em estilo provençal. O local, que começou suas atividades há apenas três anos, já é um dos pontos mais visitados na região. Segundo alguns, a atividade colocou Cunha “no cenário mundial”. Vivências práticas são oferecidas aos sábados (mediante reserva), onde o interessado aprende um pouco sobre as variedades de lavanda, os cuidados necessários, as formas de plantio e poda e o processo de destilação para a extração do óleo essencial. É um evento perfumado, didático e inspirador.
Ir à lojinha é um acontecimento à parte. Além do projeto em si, do arquiteto Nelson Dupré, a construção foi pensada com pesadas peças de madeira (portas e janelas duplas, como na região da Provence), ferragens especialmente produzidas, ambientes amplos e agradáveis, cores provençais e oferece produtos cosméticos (sabonete em barra e líquido, hidratante, aromatizador de ambiente, creme de mãos, xampu, condicionador etc.). Da varanda tem-se uma ampla vista de toda a plantação e do entorno, inclusive da Igrejinha de São José, e a oportunidade de saborear tortinhas, bolinhos, sorvetes e chás à base de lavanda, isso sem falar nos produtos de culinária – sal, azeite e açúcar, todos aromatizados com lavanda. É como se o visitante estivesse, de fato, na região da Provence, na França, ou nas fazendas de lavanda de Kent, ao sul de Londres, ou mesmo na Austrália. Só que a apenas duas horas de São Paulo. O passeio é imperdível. De manhã é mais fresco, mas à tarde você pode curtir o pôr do sol – simplesmente arrebatador. Horário de funcionamento: das 10 da manhã até o pôr do sol, das sextas-feiras aos domingos.
Cunha tem ainda gentileza, simplicidade, boa alimentação e muitos pratos à base de trutas, pinhão e cogumelo shitake, cultivado na região. Agrada a todos os gostos.
notas
NE – Artigo pertencente a série de três textos:
DI MARCO, Anita. Serra-Praia-Fazendas (parte 1/3). Um roteiro por Cunha, Paraty, São Luiz do Paraitinga e pelas fazendas históricas do Vale do Paraíba. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 110.03, Vitruvius, maio 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.110/6018>.
DI MARCO, Anita. Serra-Praia-Fazendas (parte 2/3). Um roteiro por Cunha, Paraty, São Luiz do Paraitinga e pelas Fazendas Históricas do Vale do Paraíba. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 111.02, Vitruvius, jun. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.111/6042>.
DI MARCO, Anita. Serra-Praia-Fazendas (parte 3/3). Um roteiro por Cunha, Paraty, São Luiz do Paraitinga e pelas Fazendas Históricas do Vale do Paraíba. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 112.03, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.112/6103>.
1
Sobre Cunha, ver: Tonussi, Ana Ma. Sanches in http://www.cunha.sp.gov.br/?page_id=87#tb_release-tab; www.portaldecunha.com.br/cunha/mirantescunha.html.
2
Sobre ateliês de cerâmica, ver: http://www.portaldecunha.com.br/cunha/ateliecunha.html.
3
O Lavandário: www.olavandario.com.br.
sobre a autora
Anita Di Marco, arquiteta (FAU-USP, 1976), especialização pelo ICCROM-Roma e tradutora (DBB-RJ).