“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Gosto de me ver como um anjo sem asa, solitária, descida do céu para trazer a flor que vai lembrar uma história de amor. Ah, já vivi o amor. Hoje, sozinhazinha, me satisfaço vendo que ele é mesmo sempre novo. Confirmo seu nascimento, toda santa noite, vendendo flores na cidade. Sabe, com o tempo, como uma fotografia, aprendi a encontrar o exato momento de botar uma rosa na prosa, na pausa, quando somem as palavras e um silêncio me avisa a horinha de chegar. Raro ouvir um “não-me-amole”, nessa idade, com os meus cabelos e vestido brancos. O branco, de noite, faz fundo para o colorido das flores. Isso aprendi com o japonês que antes vendia as flores e hoje me dá, de coração, a troco de amizade e de ouvir as aventuras do amor que imagino irrigar a cada flor vendida. Tantas histórias.
No começo era difícil. Fui vender em bar bacana, em bairro grão-fino. Tomei empurrão, ouvi palavrão. Mas nos velhos bares do centro, onde sobrevivem os músicos e as vozes antigas, velhos conhecidos, encontrei sossego e algum trocado. Tudo é aprendizado. Quando comecei, achei que ia ser passageiro, até encontrar situação melhor. Tinha tanta dó de mim. Sobrevalorizava todo o esforço, todo empenho. Sabe, tudo na vida é uma questão de medida. Isso eu aprendi sozinha. Quantas flores cabem numa noite? Rosas, gérberas, tulipas, margaridas, íris, camélias? Quais cores? Quanto custa uma lembrança de amor? E o tamanho do balde para passar na catraca? Quanto pesa a água? Quando eu pego as flores com o japonês? Qual o horário da última condução? O tempo, os casais e as músicas me ensinaram as medidas e eu fui aceitando esse ofício, esse destino que tomou de assalto a minha vida. Matei a atriz que vivia uma vida que não foi feita para ela ao aprender a medida das coisas, a viver meu papel de anjo. Quando sobra uma flor, penso que é para mim.
nota
NE – Quarto texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.