Puerto Montt, sul do Chile, marca uma das extremidades sul da Ruta Panamericana (a outra está em Ushuaia, na Argentina), estrada que atravessa todas as Américas, alcançando o Alaska, numa extensão de 48.000 km quase toda já implantada. Também de Puerto Montt inicia-se uma estrada em direção ao sul, a Carretera Austral, qualificada como “bimodal”, em razão de algumas travessias feitas por balsas. Uma destas, a de percurso mais longo, consome três horas para vencer a distância entre Hornopirén e Caleta Gonzalo. Longe de ser uma viagem monótona e aborrecida, a balsa navega pelo labiríntico e fragmentado litoral do sul chileno. São paisagens espetaculares onde montanhas, canais e um mar que varia do azul turquesa a variados tons de verde, percorre um roteiro em que, a cada curva, revela-se nova paisagem em sucessão constante. Como pano de fundo, irrompem picos eternamente nevados de vulcões e montanhas muito mais altas, à medida que se afastam da costa.
O ponto de partida, a cidadezinha de Hornopirén, constitui-se de umas poucas quadras, com casas espalhadas, e já dá uma ideia da quietude que vai nos acompanhar por toda a viagem. No cais, apenas uma pequena rampa (acesso à balsa) e um trapiche ainda menor. Ali próximo, um restaurante familiar serve um congrio grelhado inesquecível. Tanto que não o esquecemos e repetimos a dose no almoço do dia seguinte, alguns minutos antes da partida da balsa.
A rota deste trecho sai por um longo saco formado pela grande ilha de Chiloé e o continente, ao fim do qual, e depois de uma rápida visão do golfo de Ancud, enfia-se pelo fiorde Comau ou Leptepu até chegar ao seu fundo, na localidade de Leptepu. Daí, mais 10km de estrada e uma nova, rápida e última travessia por balsa nos deixa em Caleta Gonzalo. Daqui em diante, somente a Carretera Austral, com 1.240 km de paisagens espetaculares. As margens da estrada estreita, cuja vegetação foi removida pela construção, são ocupadas por Gunera manicata e por uma samambaia que não identificamos. Alternam-se trechos asfaltados e outros com rípio (cascalho grosso). Estes últimos exigem maior cuidado e velocidades mais baixas. O carro flutua sobre as pedras, perdendo quase toda a aderência. Ao mesmo tempo, as rodas vão jogando pedras para cima, que batem no fundo, fazendo um barulho ensurdecedor. Aqui, a palavra-chave é “paciência”. Velocidades acima de 30 km/h são desaconselháveis por conta da pouca estabilidade e porque, quando vem um veículo em sentido contrário – o que não é muito frequente – há que ter tempo para encostar, sem guinadas, no bordo da estreita faixa de rolamento, para evitar pedras atiradas nos para-brisas, faróis e demais vidros.
São estes os únicos cuidados. No mais, é aproveitar a interminável diversidade de paisagens, onde se sucedem lagos e rios com cores inesperadas, vulcões adormecidos, mas de cujas crateras nevadas escapa uma fumacinha contínua, como a nos avisar que podem despertar a qualquer momento. Buscando sempre o rumo sul, a estrada contorna uma infinidade de parques e reservas naturais protegidas como unidades de conservação pelo governo chileno.
A partir de Chaitén para o sul, a Carretera Austral afasta-se um pouco do litoral e, correndo-lhe paralela, começa a cruzar uma infinidade de córregos e rios, circundando lagos, todos numa profusão tal que explica e justifica amplamente o subtítulo deste texto. Não bastasse a quantidade de água por toda parte, quesito no qual a região nada fica devendo às várzeas amazônicas, temos nestas uma profusão de cores distintas, num gradiente que vai desde o mais tímido dos verdes até o azul mais escandaloso! Um dos mais impressionantes é o rio Yelcho, com uma tonalidade azul leitosa nunca vista em outra parte.
Seguindo a viagem em direção ao sul, chega-se ao Parque Nacional Queulat, onde se encontra o peculiar Ventisquero Colgante (glaciar pingente ou pendurado), cujo degelo origina uma expressiva queda d’água. Depois de uma pequena trilha, que fizemos debaixo de uma chuva persistente, chega-se a um mirante de onde se avista a geleira suspensa e sua cachoeira. Aqui esperamos em vão algumas horas, que as condições atmosféricas melhorassem. Depois cabisbaixos e frustrados, seguimos viagem.
Sempre no rumo sul, estávamos nos aproximando de um dos pontos altos e mais esperados da viagem, a Catedral de Mármore, em Puerto Rio Tranquilo. Mas a chuva não deu trégua. Quando chegamos naquela localidade, chuva e frio provocavam novos sentimentos de frustração e tristeza. Seria impossível navegar pelo Lago General Carrera, expondo o equipamento fotográfico à chuva e às fortes rajadas. Resolvemos seguir viagem para Cochrane e voltar dois dias depois. Esforço debalde! A chuva continuava. E continuou a noite inteira, para nossa insônia e desespero! Decidirmos ir no dia seguinte, de qualquer forma, porém, sem equipamento, apenas para conhecer. Dez minutos antes do embarque, um milagre: um sol radiante rompeu a grossa camada de nuvens e, em poucos instantes, secou poças, calçadas, pavimentos, iluminando a paisagem da pequena cidade como há várias semanas não se via! Numa mistura de felicidade e incredulidade, corremos a pegar nossas câmeras e demais quinquilharias fotográficas. E pudemos registrar essas formações únicas, resultado da longa erosão das águas do lago, sacudidas pelos fortes ventos locais, desbastando as montanhas de mármore das margens em desenhos caprichosos, curvas, abóbadas, janelas, uma miríade de formas que deixariam Gaudí embasbacado! Na volta, o milagre adquiriu contornos de exagero: voltou a chover forte. Mas já estávamos saciados.
Seguindo ainda para o sul, a Carretera Austral flanqueia por um bom tempo o lago General Carrera (na Argentina, lago Buenos Aires) exibindo suas cores também admiráveis, até uma encruzilhada: à direita, o caminho segue para Cochrane, ponto mais austral em território chileno de nossa viagem. E, depois, até Villa O’Higgins, onde a estrada acaba e onde não chegamos. Mas comemoramos nossa presença em Cochrane dignamente, comendo costela de cordeiro patagônico, como não se encontra tão saboroso em qualquer outra parte.
Nestas paragens aumenta a sensação de vazio. Raramente cruza-se com outro veículo. Mas é frequente encontrarmos ciclistas, solitários ou em pequenos grupos, andarilhos e motociclistas, todos em profunda comunhão com os ambientes naturais. Da paisagem, continuam a constar lagos, rios e bosques de pinheiros. Voltando à encruzilhada, à esquerda a estrada leva a Chile Chico e ao passo Jeinemeni (passagem nos Andes) para o lado argentino da cordilheira, chegando-se à cidade de Los Antíguos por asfalto que ainda bordeja o agora lago Buenos Aires.
Na fronteira, produz-se uma das mais radicais mudanças na paisagem: da sucessão de lagos, rios, vulcões e montanhas nevadas que nos acompanharam pela Carretera Austral passa-se, sem maior aviso, a um deserto não menos espetacular. Muda instantaneamente a palheta de cores, dos tons frios e azulados para os quentes, terrosos. Mantem-se a quietude, agora irmanada a uma sensação de solidão. Trata-se de uma superfície plana que, quase desprovida de vegetação, estende-se por todas as direções daquela parte do território argentino: a estepe patagônica! Mas isso já é outra história.
sobre o autor
José Tabacow é paisagista e professor de paisagismo.