Desde setembro de 2005, no Centro Histórico da Cidade de São Paulo, o amor ao lugar tem sido expressado por meio de condutas proativas cujo objetivo principal é a apresentação desse lugar à comunidade paulistana: habitantes, turistas, curiosos, interessados, estudantes e pesquisadores. Trata-se do programa semanal Caminhada Noturna, iniciativa de Carlos Beutel, morador e comerciante local que, amparado por um grupo que compartilha seus ideais, vem revelando histórias e curiosidades da área central da cidade de São Paulo (o Centrão), com a intenção de demonstrá-lo enquanto lugar, ou seja, um centro de significados construídos pela experiência (1). Reportagem do jornal Centro em Foco, publicada um mês após o início do programa, afirmava que dentre os propósitos da Caminhada Noturna estava “o desejo de demonstrar às autoridades que moradores, trabalhadores e comerciantes da região central querem a recuperação completa do Centro, não apenas porque vivem e/ou tiram o seu sustento de alguma atividade desenvolvida na área, mas principalmente porque a amam e a respeitam” (2).
Carlos Beutel, em depoimento ao jornal Centro em Foco, afirmou que o programa acontece à noite porque percebeu que as pessoas demonstravam receio e medo do lugar quando escurecia e, com a Caminhada, desejava “demonstrar à população da cidade que é, sim, possível, caminhar pelo Centro à noite, e que a região tem uma população vigilante, que a ama e respeita” (3). O programa tem atraído pessoas diversas, habituais ou casuais, tais como moradores, comerciantes e/ou trabalhadores locais, estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação, turistas nacionais e estrangeiros... e mesmo com essa enorme e distinta variedade, na opinião de Carlos (que tem o olhar afetuoso pelo velho centro e pelos passeios noturnos), todos “ficam apaixonados por nossa cidade” (4), como se o centro velho fosse a cidade de São Paulo, e vice-versa. Reiteradamente, as palavras amor e respeito aparecem nos discursos que envolvem a Caminhada, expressando o sentido afetivo com o lugar.
A Caminhada Noturna é uma atividade gratuita. Acontece todas as quintas-feiras, a partir das oito horas da noite, e tem duração aproximada de duas horas. O grupo já se reuniu nas escadarias da Biblioteca Mário de Andrade, mas o ponto de encontro tem sido o belíssimo Teatro Municipal de São Paulo onde, pouco antes do horário marcado, o líder do projeto e seu grupo já estão uniformizados, preparados com um carrinho de som e microfone e a bandeira da Caminhada, esperando as pessoas interessadas ou curiosas pelo Centro Histórico da capital paulistana.
A caminhada noturna é temática. A cada semana um mistério do velho centro é apresentado ao grupo. São exploradas as obras de Ramos de Azevedo, as igrejas, o Largo São Francisco, o edifício Martinelli, o Mosteiro São Bento, o Vale do Anhangabaú, as luzes de natal, as fontes, as praças, os viadutos, os rios, o império Matarazzo, a Avenida São João, os palacetes, o Arouche, a Associação Cristã de Moços, o Minhocão, a Praça da Sé, o Largo do Café, o Bixiga, o Pateo do Collegio..., enfim, grande parte da história e memória que o velho centro guarda, pois ali a cidade nasceu.
A cidade de São Paulo nasceu como Piratininga, na década de 1550, bem ali, no alto da colina onde hoje está localizada parte do seu Centro Histórico (5). Evoluiu de vila (1560) para capitania (1681), para cidade (1711), para metrópole (1973), tornando-se, conforme Helena Kohn Cordeiro (6), núcleo financeiro do país. A autora explica que a consequente expansão desse núcleo, ao sediar bancos, grandes empresas nacionais e internacionais, em adição ao desenvolvimento das telecomunicações, da globalização financeira, dos padrões de concorrência, transformaria São Paulo em uma “cidade mundial”, com grandes aeroportos, avenidas, hotéis, centros de negócios etc. Transformação que sobrecarregaria seu Centro Histórico, levando-o, conforme denuncia a literatura (7), a um local abandonado e, consequentemente, em processo de degradação...
Candido Malta Campos Neto, ao escrever sobre a construção, desconstrução, modernização e urbanização da cidade de São Paulo e do centro paulistano, apresenta um retorno histórico importante para a compreensão das mudanças sofridas e provocadas no e a partir de seu Centro Histórico (8). Nessa trajetória, vimos que o Centrão apresenta um quadro crítico de deterioração patrimonial, perda de população, informalização do trabalho etc., porque o movimento de concentração de habitação, comércio e serviço ocorrido na primeira metade do século 20, levou a uma superlotação e consequente descentralização, a partir da segunda metade do século, quando a cidade passou a procurar por novos locais como centro comercial e financeiro, estabelecendo novas centralidades a sudoeste (avenidas Paulista, Faria Lima e Berrini), criando o chamado centro expandido.
Disso decorre a consagração popular do velho centro, quando, no último quartil do século passado, se intensifica a concentração do transporte coletivo na região, por meio da construção de novos terminais de ônibus, e estações de trem e metrô interligadas, e se transformam grande parte de suas ruas em calçadões. Essa situação afastaria os veículos particulares e muitos moradores do centro, levando consigo parte da renda que sustentava a vida no Centrão, o que, por sua vez, acabou varrendo inúmeros comércios e serviços para as novas centralidades e/ou para regiões periféricas, modificando, aliás, pervertendo o próprio lugar, como na descrição apresentada por d’Arc: “a imagem do centro de São Paulo hoje difundida e percebida é a de um espaço degradado, mal cuidado e poluído, com numerosos edifícios abandonados, e outros invadidos” (9). Desse modo, o desuso e decadência dos edifícios na região colaborariam para alterar drasticamente o perfil de seus usuários, não porque o centro se consolidava como ponto de referência para moradia, comércio e serviços populares, mas porque estava sendo abandonado pela sua própria vida cultural, deixando edifícios vazios, sem uso e sem cuidados, ruas desertas e até sem comércio, tornando-se atraente para diversos problema, tais como criminalidade, prostituição, uso e tráfico de drogas, vandalismo, depredação do patrimônio construído etc. No entanto,
”mais que o “abandono” da região ou a popularização de seu perfil comercial, o que comprometeu a integridade do Centro Histórico de São Paulo foi a exacerbação da segregação e das desigualdades urbanas, indissociáveis de nosso processo de urbanização; e o desvirtuamento de suas qualidades construídas, obliteradas pela superposição de sucessivos padrões de ocupação sem consideração com o quadro existente, dos quais a atual ocupação popular, precária e irregular conforma apenas a última camada” (10).
Em defesa ao centro velho de São Paulo, Candido Malta Campos Neto e José Eduardo Borba Pereira afirmam que, no sentido urbanístico, essa é a região mais rica da cidade, em referência ao seu caráter histórico, no qual parques, praças, monumentos, avenidas e edifícios construídos e acumulados ao longo de seus séculos de existência, revelam a diversidade cultural, patrimonial e arquitetônica da cidade, bem como guardam suas mais antigas memórias, e possibilitam as mais distintas experiências de lazer, entretenimento, gastronomia, aprendizado, trabalho etc. (11)
Na mesma direção, Sérgio Zaratin anota que “qualificar o Centro paulistano como obsoleto e passível de substituição pelos novos pólos do sudoeste da Capital será, quando menos, grave erro teórico e de avaliação, que cumpre evitar” (12). Isso quer dizer que, ao invés de recorrer a novos centros e abandonar o lugar de origem da cidade, há que se preservar e vivificar o primeiro centro, símbolo do nascimento e desenvolvimento da metrópole paulistana. Assim, em meados dos anos 1990, inúmeras ações para renovação da paisagem urbana emergiram, tanto do poder público quanto da iniciativa privada (como, por exemplo, a Associação Viva o Centro e a Virada Cultural), a partir dessas ideias de que o Centro Histórico de São Paulo não merece e não pode ser abandonado à sua própria sorte: reconstruções de vias e praças, reformas de edifícios, implantação de programas culturais etc. No seio dessas iniciativas, começaram as atividades das Caminhadas Noturnas no Centro Histórico de São Paulo.
Semana após semana, toda quinta-feira um destino diferente, um novo tema, novas histórias (ou velhas, porém contadas de outro jeito e/ou por outra pessoa e/ou para outras pessoas), mais lembranças surgem, compartilham-se curiosidades e mistérios sobre esse lugar (que me é) fascinante... A ação política desenvolvida por esse grupo está muito além do entretenimento oferecido (que há) ou do passeio turístico pelo lugar (que também há). A Caminhada Noturna é mantida por um grupo de defensores do patrimônio cultural do Centrão, oferecendo apoio a diversos atos de tombamento e revitalização, proteção e recuperação dos monumentos e fontes. Pela história oral, mantém vivos o conhecimento e a memória do lugar. Pelo exercício do andar, aprimora os sentidos, fortalecendo a percepção e o sentido do lugar.
Ao final, espera-se que o olhar acadêmico sobre as Caminhadas Noturnas dê maior visibilidade a essa ação política, e que novas pesquisas venham dessa primeira análise, com o propósito de dar continuidade, e até melhorar, às condutas de proteção e dedicação ao lugar.
Por enquanto, acredito que veremos, por muitas e muitas quintas-feiras, o hastear da bandeira da Caminhada Noturna às 20 horas, em frente ao Teatro Municipal da cidade de São Paulo... Isso, não apenas porque o lugar é guardião de histórias, lembranças, segredos e mistérios que podemos explorar a partir de diversos olhares, mas porque estão muito vivos, em todos que por ele caminham, a afeição, a admiração, o respeito e a gratidão por esse lugar... Sentimentos de afeto que vão se multiplicando e perpetuando graças à brilhante ideia, e a destemida coragem de um desbravador que, reconhecendo a importância do lugar e do sentido de habitar para a própria vida humana, arregaçou as mangas, calçou os sapatos, e decidiu caminhar em direção à defesa do seu próprio lugar.
notas
1
Cf. TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução Lívia de Oliveira. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1983.
2
Caminhada Noturna pela recuperação do Centro. Jornal Centro em Foco, São Paulo, 25 out./25 nov. 2005, p. 5 <www.caminhadanoturna.com.br/pdf/centro%20em%20foco%20pag05_Out-Nov_05.pdf>.
3
A Caminhada Noturna pelo Centro homenageia Monteiro Lobato. Jornal Centro em Foco, São Paulo, 30 out./30 nov. 2009, p. 4 <www.caminhadanoturna.com.br/pdf/centro%20em%20foco%20pag04_Out-Nov_09.pdf>.
4
Os mais altos e queridos de São Paulo. Jornal Centro em Foco, São Paulo, 30 jan./28 fev. 2010, p. 2 <www.caminhadanoturna.com.br/pdf/centro%20em%20foco%20pag02_Jan-Fev_10.pdf>.
5
Oficialmente, a data de fundação da cidade é 25 de janeiro de 1554. Nesse trabalho, não queremos adentrar sua densa historiografia, nem nas discussões sobre sua fundação e sobre seus fundadores. Pare entender a cidade de São Paulo, indicamos os seguintes livros: BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. 4ª edição. São Paulo, Hucitec, 1991; MORSE, Richard. Formação histórica da São Paulo: de comunidade à metrópole. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970; TAUNAY, Affonso de Escragnolle. História da cidade de São Paulo. Brasília, Senado Federal/Conselho Editorial, 2004.
6
CORDEIRO, Helena Kohn. A “Cidade Mundial” de São Paulo e a recente expansão do seu centro metropolitano. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, vol. 54, n. 3, jul./set. 1992, p. 5-26 <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1992_v54_n3.pdf>; CORDEIRO, Helena Kohn. Setorização e estrutura interna do atual centro metropolitano de São Paulo. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 1, n.1, 1981, p. 59-79.
7
Ver: CARLOS, Ana Fani Alessandri; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (Org.). Geografias de São Paulo 1: representação e crise da metrópole. São Paulo, Contexto, 2004; CARLOS, Ana Fani Alessandri; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (Org.). Geografias de São Paulo 2: a metrópole do século XXI. São Paulo, Contexto, 2004. Os livros citados são alguns dos inúmeros trabalhos que tecem profundas discussões a respeito da deterioração e abandono da área central de São Paulo. No entanto, faz-se necessário mencionar que a admiração e o afeto pelo lugar, bem como a presença in loco, nos dão um ponto de vista diferente e, assim, ao mesmo tempo em que concordamos, também discordamos desse quadro de centro degradado... Razão e emoção em conflito.
8
CAMPOS NETO, Candido Malta. Construção e desconstrução do centro paulistano. Ciência e Cultura, v. 1, n. 1, São Paulo, SBPC, 2004, p. 33-37; CAMPOS NETO, Candido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo, Senac, 2002.
9
D'ARC, Hélène Rivière. Requalificar o século XX: projeto para o centro de São Paulo. In: BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (Org.) De volta a cidade: dos processos de gentrificação às políticas de revitalização dos centros urbanos. São Paulo, Annablume, 2006, p. 270.
10
CAMPOS NETO, Candido Malta. Construção e desconstrução do centro paulistano (op. cit.), p. 36.
11
CAMPOS NETO, Candido Malta; PEREIRA, José Eduardo Borba. Da segregação à diversidade: moradia e requalificação urbana na área central de São Paulo. Cadernos de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, v. 5, São Paulo, 2006, p. 2.
12
ZARATIN, Sergio. O centro e a posição metropolitana de São Paulo: contribuição do Plano Metropolitano da Grande São Paulo 1994/2010. In: MEYER, Regina Maria Prosperi (Org.) Memória técnica do encontro São Paulo Centro XXI: entre história e projeto. São Paulo, Associação Viva o Centro, 1994, p. 24 <www.vivaocentro.org.br/media/9556/saopaulocenroxxi.pdf>.
sobre o autor
Ivan Fortunato é pós-doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro. Coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares: Ensino, Ciência, Cultura e Ambiente (NuTECCA). Líder do Grupo de Pesquisas Formação de Professores para o Ensino básico, técnico, tecnológico e superior (FoPeTec). Pesquisador do Laboratório de Estudos do Lazer (LEL). Editor da Revista Hipótese e coeditor da Revista Internacional de Formação de Professores e da Revista Brasileira de Iniciação Científica. Membro da Academia Itapetiningana de Letras, cadeira 27, e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga (IHGGI), cadeira 37. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCAr, Sorocaba. Professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Gestão Ambiental, da UFSCAr, Sorocaba. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais - UFABC. Professor em regime de dedicação exclusiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus de Itapetininga.