O arquiteto, escritor, editor e curador Michel Gorski divulga a exposição As mil e uma fontes de Marcel Duchamp, que trata das obras e documentos inéditos do grande artista francês. Fruto de pesquisa de quatro décadas, a mostra acontece a partir de setembro de 2017 em locais dispersos pela cidade de São Paulo e que só serão divulgados no dia da abertura – uma alusão evidente às deambulações aleatórias dos dadaístas na Paris do início do século passado.
O interesse de Gorski por Duchamp foi despertado em sua primeira aula no curso de arquitetura, quando o professor de Estética projetou a famosa obra A fonte. Na ocasião, o jovem estudante ficou surpreso que um urinol branco e esmaltado, comprado em uma banal loja de construção, pudesse ter mudado a história da arte. Seu fascínio pela obra do artista francês transbordou quando assistiu, em 1976, um documentário sobre o dadaísmo em cinema pulguento do Jaçanã, bairro periférico de São Paulo.
No filme, após Francis Picabia fazer troça de seu ready made, Duchamp retruca com sorriso sarcástico: “Nem queira saber quanta epifania se esconde por detrás dessa imundície”. Ao sair do cinema, o jovem arquiteto brasileiro estava inebriado com a descoberta de que algo muito profundo, seguramente uma teoria revolucionária sobre a arte, se escondia por detrás do gesto iconoclasta do líder Dada. Decidiu de ora em diante dedicar todas as horas vagas de sua existência na busca das explicações perdidas, mas que seguramente Duchamp deixara em algum lugar.
No início, Gorski se enveredou pelas teorias psicanalíticas da arte. Hoje de senso comum, a hipótese das formas curvas do mictório serem uma referência às formas femininas, onde o membro masculino derrama urina, foi sugerida por Gorski nos anos 1980, em uma de suas primeiras palestras sobre o tema, proferida em Blainville-Crevon, a cidade natal do artista, durante evento comemorativo do centenário de Marcel Duchamp.
Nos anos 1990, o pesquisador brasileiro aprofundou sua investigação no âmbito da sociologia e antropologia, convicto que Duchamp entendia o urinol não apenas como objeto simulado do desejo, mas também como simulacro da democracia social contemporânea ao reduzir todos os homens às suas necessidades fisiológicas.
Desde então suas pesquisas se ramificaram para diversas áreas do conhecimento, em especial no campo histórico, com enorme dedicação à pesquisa de campo – visitou milhares de banheiros em várias cidades em todos os continentes – e de fontes primárias, com especial cuidado em garimpar documentos inéditos em meio às pastas, fichários e caixas do artista acervada no Instituto Duchamp, em Nova York.
A exposição – que acontece em banheiros de bares, restaurantes, boates e clubes privês de São Paulo ainda mantidos em segredo – contará com objetos produzidos em fábrica de peças sanitárias localizada em Carapicuíba, com desenhos técnicos realizados por Michel Gorski a partir de croquis e fotografias até então desconhecidos da lavra de Marcel Duchamp.
A revista Arquiteturismo – da qual Michel Gorski é um dos editores – divulga em primeira mão material relativo à exposição. São fichas do artista, com algumas inscrições enigmáticas, sugerindo que Duchamp realizava às escondidas sua obra maior, a Enciclopédia da Escatologia Sublimada. As imagens apresentadas a seguir são apenas algumas das peças da exposição e o texto que as acompanha é do curador, escritas a partir da palavra ou frase inscrita nos originais do gênio francês.
Obras selecionadas
Impenetrável – na metafísica, impenetrabilidade é qualidade da matéria pela qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Bumbo – escrito originalmente em português do Brasil (em português de Portugal se diz “bombo”), refere-se ao instrumento de percussão de forma cilíndrica, de grande dimensão, com som grave e seco. Há alguma possibilidade de Duchamp, nessa instalação, relacionar forma e conteúdo.
J.B.V.A.P.M.R – escrito em estêncil, a misteriosa inscrição dessa ficha original de Duchamp não foi desvendada pelo curador.
A Trindade – ou, convocando uma exegese cristã, a Santíssima Trindade.
O que entra sai – em inglês, no original, o ready made proposto por Duchamp é uma ironia mordaz contra Louis Sullivan e sua máxima, adotada pela Bauhaus, que “a forma segue a função”.
Pessimismo – não existia na época a hoje consagrada “Lei de Murphy”, mas Duchamp já tinha claro que na vida sempre as coisas podem dar errado.
Museu Novo – não se tem claro se a proposta é uma ironia ou uma aceitação tácita do pragmatismo alemão, que sutura o alto e o baixo no que diz respeito à inteligência, ética e estética.
Donatien Alphonse & Leopold – o termo “sadomasoquismo” seria a versão conceitual para o título dessa instalação, que evoca poeticamente Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, e Leopold von Sacher-Masoch, personagens históricos que compreendiam a sexualidade de forma antagônica.
Petrarca e o Monte Ventoux – em erudito artigo publicado na revista Arquiteturismo, Vladimir Bartalini, arquiteto e professor da FAU USP, atribui a Petrarca a construção da paisagem moderna ao escalar o Monte Ventoux, na França, movido pela curiosidade: “Depois de muitos tropeços, atingiu, por fim, seu objetivo. A data da subida, mais precisamente, 26 de abril de 1336, é tida como o marco inicial do olhar moderno sobre a paisagem, pois Petrarca subiu por subir, por mera curiosidade, simplesmente pelo desejo de ver um lugar reputado por sua altura” (1). Ao conceber Petrarca et Mont Ventoux, Marcel Duchamp tinha em mente a possibilidade de reunir em uma mesma obra os prazeres insuperáveis da contemplação espiritual e o do alívio fisiológico da bexiga.
A fonte – em 1917, Marcel Duchamp enviou um urinol branco de porcelana – assinado em preto “R. Mutt”, o nome do fabricante – para um concurso de arte nos Estados Unidos. O ready made foi rejeitado pelo júri por falta de atributos artísticos, mas se tornou uma das mais lendárias obras de arte do século 20.
nota
1
BARTALINI, Vladimir. Petrarca é o culpado. Arquiteturismo, São Paulo, ano 01, n. 010.04, Vitruvius, dez. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/01.010/1386>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.