Morar tem um conceito? Afinal, habitamos um lugar desde que nos conhecemos por gênero humano. Já fizeram esta história várias vezes e de vários modos: humanos habitam coisas que, nessa época, chamamos de casa. Mas, antes de ser um fato natural, morar não é, em primeiro lugar, uma vontade e, em segundo lugar, uma forma do corpo estabelecer uma relação com o espaço?
Uma experiência pelas estradas dos Estados Unidos, a famosa road trip, se converteu em algumas descobertas e, a mais inesperada, foi ver, de soslaio, a placa indicando, na autopista, “Cedar Rock by Frank Lloyd Wright”. “É isso mesmo?” Arrisco a próxima saída à direita e acabo num esplêndido lugar, mesmo na “América profunda”, na cidade de Quasqueton, Iowa.
Há um parque duas milhas além do traçado urbano: Cedar Rock. Ali, longe de qualquer olhar, entre as árvores, está a casa de Lowell e Agnes Walter. Tenho de perguntar novamente: morar tem um conceito? Quiseram uma casa exemplar, mas que não serve de exemplo, pois não é visível da estrada estreita que passa ao largo. Têm-se de adentrar a propriedade para ter a experiência de ver e tocar uma obra de Frank Lloyd Wright. No meio do mato?! Morar tem conceito?
Logo, o desejo de perguntar por que, que não é mais possível, somente as respostas que quiseram dar, as repostas que acharam que deveriam ser dadas, mas nada do conceito, a não ser aquele que o casal e Wright queriam que fosse registrado. Há traços? Sim, por todos os lados. A casa exemplar de um modo de vida, apesar de não visível, mostra os conceitos do morar dos abastados e do imaginário social: o encapsulamento! Isto é, uma típica casa norte-americana revisitada pelo arquiteto, para a qual, Lloyd utilizou o termo “usonian”, pois ele acreditava que não deveria dizer americano ou norte-americano, já que a América é mais do que os EUA. Deveria ser o exemplo do ideal de isolamento burguês e individualista da sociedade norte-americana. O ideal dos pioneiros modernizado na residência autossuficiente e integrada à natureza. A casa do imaginário e da moral “usonianos”.
A visita pode começar justamente pelo fim, a casa das máquinas e de caça, que fica à beira do lago que margeia pela propriedade. Lowell adorava caça (informação de Terry, voluntária do museu, que me acolheu de modo magnífico, conforme no final do texto). Na parte de cima, um escritório-quarto no qual passava horas. O pioneiro moderno que caça, pesca e usufrui do isolamento do mundo: um Adão pós-diluviano.
Enquanto isso, Agnes desfrutava de todos os confortos que a vida moderna poderia fornecer à dona de casa: todos aqueles gadgets elétricos que faziam o sonho das mulheres dos anos 1950. Típica esposa do pioneiro, que cuida do lar, enquanto o homem sai à caça para sustento da família, afinal, os EUA não são a terra prometida? Logo, trata-se de efetivar o paraíso na Terra, de realizar o que teria sido prometido para os “pilgrins” que atravessaram o oceano, no século 17, e aportaram na nova Jerusalém. Cedar Rock é a mostra de que o paraíso é real e pode ser alcançado (por quem tem muito dinheiro).
A casa, de acordo com a explicação de Terry, foi feita no espírito usoniano, quer dizer, a leitura que Lloyd fazia da moradia norte-americana. É despojada, num certo sentido, e sofisticada, em outro. Não teria a clássica garagem, nem o porão, nem o sótão, que, invariavelmente, viram depósitos. Logo, não há lugar para tralhas, portanto, segundo a vontade do arquiteto, a casa deveria ser sempre organizada. Providenciou armários para todos os ambientes para dar praticidade à vida quotidiana. Tudo determinado pelo lugar e pelo uso. Apetrechos da cozinha bem guardados, nos respectivos lugares. Material de limpeza, num armário discreto logo na entrada da área íntima, podendo ser levado a qualquer parte da casa.
No banheiro da suíte, a incrível pia basculante. Basta deslocá-la para a direita para ter acesso ao vaso sanitário, devidamente escondido pela própria pia. A torneira serve também a banheira, constituindo um conjunto integrado de cuidados corporais, um ambiente para uma “thalassoterapia” privada.
Os móveis são funcionais e foram projetados por Lloyd. Tudo pensado para que tivesse funcionalidade e praticidade, bem ao contrário das casas europeias cheias de móveis e de memorábilia e plenas de histórias. Na casa em Cedar Rock, tudo é objetivo, tudo é funcional, portanto, não há uma história que a precede, não é necessário. Ano Zero, o começo absoluto: A Parusia realiza a promessa feita nos inícios dos tempos, logo, há uma dose de misticismo cristão, realiza-se em Cedar Rock a redenção pelo trabalho. Lowell vendeu a sua empresa para os seus funcionários, após ter praticamente o monopólio do betume para a construção de estradas nos anos 1930 e 1940, assim a casa seria a sua aposentadoria, o seu pequeno pedaço de paraíso conquistado pelo trabalho das mãos e suor do rosto.
Lloyd planejou também a iluminação e as temperaturas, utilizando o vidro para captar os melhores momentos de luminosidade durante todo o ano e, com isso, aproveitar ao máximo a temperatura amena que pode proporcionar, diminuindo a utilização do aquecimento elétrico.
A casa típica de subúrbio, sem nenhum estilo, foi modificada para dar uma “identidade” ao usoniano feliz, autárquico e puritano, uma casa americana, desculpem, usoniana, já que as típicas casas de subúrbio são pré-fabricadas e de gosto duvidoso, se repetem à exaustão. Lloyd queria ir além do que a grande classe média americana pode usufruir, queria uma forma arquitetural que realmente transmitisse o que seria a USoland.
Enfim, a casa é um discurso sobre o modo de vida americano, pelo menos aquele desejado ou, ainda, como dizem os historiadores, um monumento da mentalidade social. Então, morar tem um conceito, ou melhor, um discurso sobre si e sobre o outro. Sobre os corpos, sobre o trabalho, sobre os desejos. Um discurso sobre o sonho americano (ou “usoniano”).
Sobre a Terry
Quando cheguei ao parque, procurei a administração e ali se encontrava uma voluntária, Terry. Informei que era brasileiro e gostaria de ver a casa dos Walters. Ela me disse que a próxima visita sairia às 11h30. Lamentei, pois não poderia esperar uma hora. Ela conversou com dois senhores, confabulou e retornou dizendo que poderíamos fazer a visita e ela me guiaria. Fomos de van até a casa e ela fez questão de me contar cada detalhe, do portal, à beira da estrada, até a churrasqueira. Não consigo reproduzir em pouco espaço todas as informações que me forneceu sobre a casa construída por Lloyd, então, procurei fazer um resumo, que não reflete totalmente a visita. Peço desculpas, mas há coisas na memória que só podem ser rememoradas e quase nunca narradas.
sobre o autor
André Luiz Joanilho, doutor em História, é professor assistente licenciado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná.