“Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmos traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos”.
Ítalo Calvino, Cidades invisíveis (1)
Paranaguá – Paraná. Porto. História que se confunde com a própria história do país – extração de ouro, tráfico de escravos, ciclo do café, da erva mate, dos grãos.
Sonhada para ser capital da província, Paranaguá ainda tem traços arquitetônicos da suntuosidade de seus moradores, e de sua primeira vocação.
Sobrados de vidro aparente, com eira, beira e tribeira. Ladrilhos hidráulicos, sacadas, colunas ecléticas, estrada de ferro e estação de trem, indícios do progresso, do dinheiro e do sonho de outrora.
O centro histórico é protegido pelas esferas federal, estadual e municipal. Compreende-se o valor estético e histórico da arquitetura urbana.
Ao caminhar por este centro aos poucos a cidade começa a se revelar, muitos destes exemplares arquitetônicos, representantes dos sonhos de outrora se encontram em estado de abandono. A ordem previa – da preservação e da História – foi subvertida (2).
Subversão e antagonismo. O abandono coabitando o espaço preservado. Em Paranaguá é comum encontrar quadras inteiras de edificações em desuso.
Gaston Bachelard considera a casa um corpo de sonho, e aqui, estendemos o conceito à cidade (3). Se comparássemos edifícios abandonados a corpos humanos?
Um edifício abandonado pode ser pensado como um corpo cuja alma original – àquela que lhe foi soprada às narinas assim que terminada a formação – já o deixou para trás, e acaba a dar corpo a outras vidas, outras ocupações. Uma nova encarnação em um corpo antigo, das vidas que habitam o abandono – o musgo, o líquen, a aranha, a teia, os sem-teto que abrigam tetos sem propriedade afetiva.
Edifícios que contam uma história cujo ponto de partida é o fim, o fim do sopro nas narinas do boneco de barro, que se esvai, mas deixa o corpo que fica se deteriorando a vista. Talvez seja neste lugar o incômodo diante dos edifícios abandonados: A evidência, clarividência da morte, do fim. Do sonho que deixou de existir, cuja materialidade explícita não oferece alternativa senão ficarmos diante do fim, da ação do tempo, da corrosão/ transmutação da matéria.
Essas imagens de abandono convocam a imaginação, e tocam (des) afetos.
O antagonismo dos edifícios abandonados dentro de áreas de preservação só reforça a sensação incômoda do fim sem funeral.
A cada semana um novo líquen, uma nova teia, uma nova rachadura, um desabamento.
Para Choay,
“Campos de deleite, redes de laços afetivos e novos tecidos com vestígios dos movimentos históricos (...). Muralhas, esqueletos, musgos, ervas daninhas, rosto erodido do apóstolo no pórtico. Lembram que a destruição e a morte são o término desses maravilhosos inícios” (4).
Talvez a função desses edifícios seja somente oferecer à paisagem reflexão.
Como o estopim de narrativas individuais para que de algum modo, se possa relacionar-se com os próprios fins.
E repensar a cidade, os espaços, os vazios, aquilo que já não tem mais serventia senão ao olhar, à contemplação.
Em Paranaguá há um tempo que passou que permanece parado, em mumificado em algumas edificações que guardam vestígios de beleza que um dia houve. Uma vitrine do para trás à espera de um olhar que as desabandone, pois olhar para um abandono já é um des-abandonar (5).
notas
1
CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. São Paulo, Folha, 2013, p. 32-33.
2
ROCHA, Eduardo. Arquiteturas do abandono – ou uma cartografia nas fronteiras da arquitetura, da filosofia e da arte. Porto Alegre, UFRGS, 2010.
3
BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
4
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad.: Luciano Vieira Machado. São Paulo; Editora Unesp/Estação Liberdade, 2001, p. 133:
5
ROCHA, Eduardo. Op. cit.
sobre a autora
Marcela Cristina Bettega é mestranda em Desenvolvimento Territorial Sustentável pela UFPR Litoral, com pesquisa relacionada à estética do espaço. Especialista em Gestão Publica Municipal pela mesma Instituição, e especialista em Leitura e Produção de Texto – FAE; possui licenciatura em Artes Visuais pela FAP PR e é produtora cultural há cerca de 15 anos.