dA cidade de destino era Grenoble, ao sul da França, nos pés dos Alpes Suíços. No momento que foi dada a notícia que eu ia partir para um estágio doutoral na Europa eu já fui informada que eu teria pouco tempo para organizar a viagem. Tudo foi muito rápido, sem pensar muito. A correria de arrumar as malas e de resolver coisas relacionadas à viagem não me deixou tempo para procurar informações sobre o lugar. Isso era uma coisa incomum para mim, que sempre viajo sabendo o mínimo sobre o que me espera. Desta vez a única coisa que eu sabia era o nome do bairro em que eu ia morar e como chegar lá a partir da estação de trem. Mas sobre a cidade de fato eu não sabia nada. Poucos minutos de embarcar para a França caiu a ficha: eu estava indo sozinha para um lugar novo, no exterior o qual eu não sabia praticamente nada. Na busca de saber algo sobre a cidade, ainda na fila do embarque fiz uma busca rápida na Internet. Eu coloquei a palavra “Grenoble” e a única coisa que deu tempo foi de ver uma foto, uma que é típica dos cartões postais. E era lindo. Na foto tinha os Alpes, um rio que parecia cortar a cidade, o teleférico e a Bastilha. Naquele momento era essa a imagem que resumia tudo o que eu sabia sobre a cidade.
Era para ser um período de cinco meses fora do Brasil a trabalho, desenvolvendo uma pesquisa e tendo experiências de docência na École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble. Tendo como tema de pesquisa a cidade, em específico os espaços públicos, eu já estava ciente de que eu ia ter que desenvolver muito trabalho em um curto espaço de tempo. O que eu ainda não sabia era que Grenoble não ia ser só o lugar onde eu iria ter as respostas da tese, mas a cidade que ia me fazer levar para a vida uma maneira diferente de descobrir novos lugares.
A proposta de explorar a cidade a partir de uma perspectiva diferente foi feita praticamente nas minhas primeiras horas em Grenoble. Eu cheguei segunda-feira à noite e no dia seguinte, na terça-feira, logo cedo tive uma reunião com meu orientador. A pesquisa que eu iria desenvolver na França era empírica, e por isso eu precisava indicar lugares para os estudos de campo. E para isso eu já deveria ter sugestão ou ideia qual parte da cidade – espaço público – eu iria observar. De maneira muito desconcertada, falei para meu orientador que não sabia ainda onde aplicaria meu estudo, pois era recém-chegada e era minha primeira vez na cidade. E foi exatamente pelo fato de eu não saber nada sobre Grenoble que veio então a proposta: porque não tenta descobrir um lugar para seu estudo e me conta sobre como o encontrou em um diário? Na hora fiquei curiosa acerca da ideia e pedi para me explicar melhor do que se tratava.
O diário era na verdade um exercício que deveria ser feito durante o meu primeiro mês na cidade. A orientação era que eu, através das minhas andanças, descobrisse espaços públicos e que relatasse como havia sido a descoberta desses lugares, por onde passei (rotas, trajetos), como os encontrei e quais as impressões e sensações. O diário deveria ser ter o ponto de vista de uma pessoa que vem sozinha a Grenoble pela primeira vez e que, como moradora, quer fazer parte do lugar e dos grupos sociais. Era um exercício livre e eu poderia relatar a experiência da maneira que eu quisesse – por fotos, vídeos, escrita, ou desenhos. Eu usei todos os recursos, mas principalmente a escrita e o desenho. A única exigência era não usar mapas, não procurar informações na internet: se deixar guiar pela cidade. Eu concordei e prometi que seguiria a risca o exercício.
Embora a proposta fosse tentadora e empolgante, não era tão fácil assim. Eu tinha aceitado a ideia no calor do momento, mas ao poucos fui me dando conta que iria acabar me perdendo na cidade. Nos meus primeiros dias me detive no bairro que morava, onde tinha um shopping, um grande supermercado e a faculdade de arquitetura. Eu comecei o diário por lá e relatava tudo que surgia no meu caminho. O trajeto que eu fazia todos os dias de casa para a faculdade era praticamente linear, um percurso de quinze minutos a pé. Às vezes eu tentava andar um pouco mais pelo bairro, pelas redondezas, mas tinha receio. O bairro onde morei se chama Villeneuve abriga grande parte estrutura urbana construída para os jogos olímpicos de inverno de 1968. Hoje os edifícios da vila olímpica são destinados para moradias estudantis (Crous) escolas, faculdades – a exemplo da faculdade de arquitetura – e de imóveis financiados para pessoas de baixa renda. O bairro é grande, mas setorizado a partir de grupos sociais, em sua maioria imigrantes africanos, latinos e árabes. Assim, embora Villeneuve pareça tranquilo, tem áreas bem violentas devido a disputa de territórios por gangues de diferentes grupos sociais.
Depois de ser informada por um colega do laboratório que eu deveria andar por Villeneuve com cautela, eu passei a ter certa resistência, não só de explorar o bairro, mas a cidade como um todo. De empolgante, a ideia de fazer o diário sob os moldes propostos – sem ter referência dos lugares, sem mapa e sem informação pré-estabelecida – passou a ser assustadora. Em um momento de desabafo contei para uma amiga do laboratório a proposta a qual eu tinha aceitado e que eu não sabia como declinar. Foi ai então que ela, também recém-chegada e sem saber nada da cidade disse que iria comigo. Afinal já que nenhuma das duas não sabia de nada, íamos descobrir juntas.
Sem saber para onde iriamos, pedi para ela escolher qualquer lugar da cidade além de Villeneuve. Ela sugeriu que fossemos ao Centro, pois lá com certeza teria coisas legais para conhecer. Junto com ela criei coragem de tentar seguir as recomendações de ir sem mapa e sem destino certo. Mas por não ter buscado informações antes não sabíamos nem a parada a qual iriamos descer. Escolhemos o lugar quando já estávamos dentro do tram: a parada Chavant, que era onde se conectava todas as linhas de transporte da cidade. Sem saber muito bem o que fazer e para onde ir eu comecei a fazer uma espécie de deriva, um método de pesquisa que adotei de forma inconsciente naquele momento. Em linhas gerais, a deriva consiste em deixar a cidade nos guiar a partir do que nos chama mais atenção, de estímulos como cheiro, som, cor, movimento, dentre tantas outras coisas. Depois de certo tempo andando, pedi a minha amiga que me guiasse e seguimos praticamente flanando pela cidade. Ela também sem saber para onde ia começou a escolher as ruas tortuosas do centro enquanto eu fazia relatos e desenhos rápidos e descrevendo o percurso e tudo que víamos. Neste dia nós duas nos perdemos e encontramos um grupo de pessoas o qual pedimos informação de como chegar na parada de tram mais próxima. Uma das pessoas do grupo nos deu a informação e logo em seguida perguntou se nós não gostaríamos de ir a uma festinha em um adro ali perto. Eles explicaram que o lugar era pouco conhecido para muita gente, mas que para eles já era bem comum. Foi neste dia que encontrei meu primeiro lugar incomum e conheci os primeiros amigos nativos.
A partir deste dia perdi o receio e comecei a andar sozinha pela cidade. E quando eu me perdia, algo que acontecia frequentemente, eu perguntava para as pessoas a direção para algum lugar. Antes a pergunta era algo pré-estabelecido, como chegar à parada de tram mais próxima, um supermercado, ou qualquer outra coisa que surgia na hora. Depois mudei a abordagem. Seguia em uma flanerie, escrevendo meus relatos durante meu trajeto e fazendo desenhos rápidos. Quando me perdia, ou encontrava alguém no meu caminho eu dizia. Estou fazendo um diário sobre Grenoble sobre os lugares que poucas pessoas conhecem, mas que para você é bem comum. Você poderia me indicar um lugar assim? Um espaço público que poucas pessoas conhecem? No inicio achei que as pessoas ia se opor, ou achar que eu estava brincando. Mas a grande maioria recebeu muito bem a pergunta e queriam saber o porquê eu buscava aquele tipo de informação. E eu dizia que tinha acabado de chegar na cidade para morar e que queria conhecer lugares e pessoas diferentes. As pessoas não só me diziam quais eram os lugares e porque acham que eles eram únicos, como me explicavam como chegar por caminhos totalmente inusitados, como atalhos e ruas que passavam despercebidas. Aos poucos foi descortinando uma cidade totalmente diferente, inclusive que os amigos nativos, diziam desconhecer.
A partir dos diferentes trajetos passei a conhecer lugares de encontro de diferentes tribos urbanas como os grafiteiros, artistas de rua, artesãos e mercadores. Eram lugares aparentemente vazios e sem uso, mas que ganhavam vida por poucas horas com a permanência dos grupos. Aos poucos fui descobrindo uma cidade do cotidiano, mas não aquela que se revela no dia a dia a todos seus moradores. Eu anotava e principalmente desenhava muito do que via e vivia. Grenoble é uma cidade universitária, mas que também tem muitos estrangeiros árabes, coreanos e latinos. Andar por lugares não convencionais permitiu não só conhecer uma cidade diferente, mas conhecer pessoas de hábitos e culturas distintas.
Ao fim, o exercício que duraria apenas um mês foi estendido até o meu retorno ao Brasil. Do diário saíram não só os espaços públicos que foram objeto da minha pesquisa, mas uma nova maneira de explorar as cidades. Em todas as andanças que fiz na Europa, apliquei a ideia do “mostre-me um lugar comum para você aqui na cidade, mas que poucos conhecem”. Só hoje que já estou de volta ao Brasil é que começo a ler informações sobre Grenoble. E de fato, descubro ainda algumas coisas sobre a cidade as quais eu não sabia, mas a maioria me foi revelada em conversas com seus moradores ou pelo próprio cotidiano enquanto eu morava na cidade. Mas o mais surpreendente é que o descobri através das minhas andanças não encontrei em nenhum lugar, mas está no meu diário exploratório, fruto das minhas andanças para descobrir lugares únicos. Mais do que fonte de dados para tese, o diário é para mim uma lembrança de uma Grenoble que me foi revelada através de seus moradores locais. Lugares que para muitos pode ser comum surge, em meio aos seus usos e diferentes localizações, como incomum aos meus olhos e de muita gente que mora na cidade. Uma experiência única, que buscarei adotar nas minhas futuras viagens.
nota
NA – Artigo inspirado em texto originalmente publicado em francês: THOMAZ, Barbara. L’ambiance de Grenoble à travers les sens d’une brésilienne. Carnet de Recherches: Cresson veille et Recherche. Grenoble, 19 set. 2017 <http://lcv.hypotheses.org/12019>.
sobre a autora
Bárbara Thomaz Lins do Nascimento é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Alagoas, doutoranda do programa de pós-graduação em arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do laboratório Arquitetura, subjetividade e Cultura. A experiência relatada surgiu a partir do tema da tese: a Empatia Espacial, uma ferramenta teórica-metodológica para o estudo da fundação das experiências coletivas na cidade.