Minha vida como arquiteta sempre esteve pautada pela busca de conhecimento através de viagens. Acho muito importante viver, sentir e perceber a arquitetura e espaço urbano. Até 2013 atuei principalmente na área de patrimônio arquitetônico, o que direcionava meu olhar às cidades históricas e suas intervenções. Porém, ao assumir a secretaria de planejamento de Passo Fundo, cargo no qual estou desde 2013, os horizontes se ampliaram bem como os desafios. No ano de 2017, iniciando o segundo mandato frente à pasta, iniciei uma busca por cursos de aperfeiçoamento na área de desenho urbano, obviamente de curta duração, pois é impossível se afastar por meses de um encargo público. Assim conheci o Master Summer Classes oferecido pelo escritório de Jan Gehl.
O curso era em Copenhagen e tão logo fiz minha inscrição já organizei a viagem. Até então não tinha tido a oportunidade de visitar os países nórdicos, assim resolvemos que meu marido e minha filha me acompanhariam e já emendaríamos as férias da família. A experiência em Copenhagen e imediações foi simplesmente sensacional. À parte do curso no Gehl Institute, a cidade em si oferece aos arquitetos oportunidades únicas de conhecer soluções arquitetônicas e urbanísticas de excelente qualidade e com uma organização social já famosa no mundo.
A primeira coisa que me chamou atenção foi retirar já no aeroporto o guia “Copenhagen for Kids” onde toda a cidade aparece setorizada com a localização das atrações, restaurantes e locais para visitação com crianças. Minha filha com 9 anos já iniciou neste instante sua relação de amor com a cidade. Depois, durante o curso, aprendi que em Copenhagen existem 125 playgrounds públicos e que isto faz parte das estratégias de transformação da cidade como explicarei adiante.
Nosso deslocamento até o hotel foi de transporte público, um dos pontos altos da cidade. O aplicativo Rejseplanen (sonho de consumo de qualquer urbanista) explica de forma fácil todas as rotas e opções de deslocamento entre um ponto e outro da cidade, inclusive com o tempo de duração de cada trecho.
O foco da viagem era o Summer Master Classes, porém o turismo convencional também acabou fazendo parte da programação. Nosso hotel estava localizado exatamente no início do Superkilen, importante parque criado pelo escritório BIG em 2011, implantado no bairro Norrebro. Assim nosso primeiro contato direto com a cidade ocorreu através de um dos mais importantes projetos de urbanização dos últimos anos. Alugamos bicicletas no próprio hotel e nos primeiros dias visitamos os tradicionais pontos turísticos da cidade como o Porto, Pequena Sereia, Kastellet, Tivoli Gardens, bem como aproveitamos para conhecer o Museu Viking na cidade de Roskild, o que nos foi uma grata surpresa.
Roskild é uma cidade pequena com aproximadamente 50 mil habitantes que durante 500 anos (até meados do século 16) foi a capital da Dinamarca. Além do museu interativo, que exibe 4 embarcações vikings originais do século 11, encontradas em 1962 submersas no fiorde de Roskild, a cidade ostenta uma belíssima catedral gótica Patrimônio da Unesco. Desde o século 15 esse edifício também é o mausoléu dos monarcas da Dinamarca e uma das principais atrações turísticas do país. Esses dois pontos já seriam suficientes para compensar a visita Roskild, mas a cidade medieval ainda apresenta um paisagismo muito bem cuidado que encantará qualquer arquiteto.
Voltando a Copenhagen, vale ainda destacar, as visitas ao Castelo Rosemborg, que junto com os Palácios de Amalienborg e Christiansborg são representativos da arquitetura real da Dinamarca. O uso de tijolos aparentes, como na igreja gótica de Roskild, confere ao Castelo um ar de rusticidade, porém, em seus interiores é possível conhecer as ricas jóias da monarquia e vários objetos de artes decorativas Barrocos e Rococós.
Após os primeiros dias de reconhecimento e turismo na cidade, finalmente iniciaram as aulas que aconteceram no escritório de Jan Gehl. A empresa ocupa o quarto andar de uma edificação antiga, com planta de pátio central, inteiramente ocupado como estacionamento de bicicletas. O ambiente é iluminado, clean sem nenhuma ostentação, um espaço em que imediatamente você se sente bem.
O grupo formado por 27 pessoas provenientes de diversos países foi muito bem recebida por Shin-pei Tsay, diretora executiva do Gehl Institute e por David Sim, sócio e diretor criativo do escritório de Gehl. A primeiríssima atividade do curso foi uma criativa brincadeira de Lego onde cada aluno montou a si mesmo em um pequeno cenário. Após a construção de si próprio cada um falou sobre sua carreira, país e motivos de estar ali. Uma atividade que além de valorizar a cultura local (o Lego é dinamarquês), quebrou o gelo entre pessoas de diferentes origens e formações.
A programação do curso contava com a participação de doze professores, entre arquitetos, urbanistas gestores públicos, antropólogos, todos focados em desenvolver o tema Public Life Matters. As aulas, todas muito dinâmicas, aconteciam em uma sala multiuso integrada a recepção. Ali também eram servidas as refeições, sempre com comidas típicas. Já no primeiro dia de curso conheci as cozinheiras, duas brasileiras muito simpáticas e também outro arquiteto brasileiro que trabalhava na equipe de projetos. Ao fundo desta sala um mapa mundi indica os pontos onde estão localizados os associados de Gehl.
Na programação do Master Classes em algumas aulas teóricas foram apresentados e debatidos os princípios estruturadores do Gehl Institute com enfoque especial na metodologia de análise de espaços públicos desenvolvida pelo escritório. A primeira aula já iniciou com o questionamento de porque os arquitetos não se interessam pelas pessoas, considerando que tantas pesquisas são feitas sobre outros animais, sabemos mais sobre eles do que sobre nosso próprio comportamento. A importância de entender as pessoas, o que elas fazem no espaço público, como elas gastam seu tempo e dinheiro, como se conectam com a natureza deve ser um tema trabalhado com métodos de análise. Observar o mundo e as pessoas é a melhor escola. Trabalhamos o conceito de vida pública, de compartilhar o espaço com estranhos, confrontando diferentes formas de ser e viver, e como isso interfere no processo de mudança de comportamento e de apropriação do espaço urbano.
Os primeiros passos para criação de uma “Copenhagen para pessoas” foram dados ainda na década de 1962 com a criação da primeira rua para pedestres da cidade. Em 1973 os carros foram retirados de 49.200m2de ruas, que passaram a ser exclusivas de pedestres, principalmente na parte da cidade medieval, onde se concentra importante comércio. Em 2015, 90% da população de Copenhagen podia chegar a um parque ou área verde caminhando apenas 15 minutos. A valorização imobiliária de residências aumentou 10% a cada 10ha de área verde – praça ou parque – implantados a 500m de distância caminhando. Devido ao sistema político extremamente organizado eles conseguem medir quanto de economia aos cofres públicos é gerado a cada investimento em áreas públicas verdes, o que serve como um grande estimulo para justificar esses investimentos.
O curso também incluía atividades chamadas Urban Safari (nome curioso mas que representa exatamente o que a atividade se propõem). Saímos às ruas com tabelas de análise e contadores de pessoas para analisar os aspectos do ambiente, como as pessoas estavam usando o mesmo, suas deficiências e potencialidades. Dentro dos Safaris também realizamos um percurso de bicicleta pela cidade, onde fizemos paradas técnicas em diversos pontos importantes. Em um dia de percursos talvez tenha aprendido mais que em uma pós-graduação inteira.
A cada esquina, praça ou rua Copenhagen surpreende com uma lição. Ali as escolas não possuem pátio fechado. As crianças utilizam os espaços públicos da cidade, ou seja, próximo às escolas estão localizados parques ou praças (lembram dos 125 playgrounds públicos que mencionei? Então..). Cada um especialmente desenhado e pensado, ou seja, não são os parquinhos em série que encontramos por aqui. A cada local que eu visitava mandava a localização para meu marido por whatsapp e no final do dia minha filha tinha visitado todos os playgrounds que eu visitei e alguns mais.
O primeiro ponto de grande interesse foi o Parque SuperKillen, aquele ao lado do meu hotel. Neste parque foi construída a primeira ciclovia de lazer da cidade, implantada dentro de espaços verdes e arborizados. A implantação de ciclovias em Copenhagen sempre foi voltada para a mobilidade. Na cidade todos os ciclistas devem respeitar rigorosamente a sinalização de trânsito, e aprendi também que eles andam muito de bicicleta porque é fácil. Realmente o sistema de ciclovias cobre toda a cidade e também faz conexões intermunicipais (meu marido realizou uma viagem entre Copenhagen e o Castelo de Kronborg de bicicleta utilizando ciclovias). Sobre o assunto das ciclovias ainda vale contar que as crianças com sete anos de idade fazem um curso e recebem sua habilitação de ciclista, podendo a partir daí pedalar sozinhas nas ciclovias. A educação para o uso da bicicleta vem desde cedo, vimos várias crianças com três ou quatro anos pedalando com seus pais.
O pic-nic do percurso ciclístico foi na Israel Plads Square, obra concluída em 2014, projeto de COBE, Sweco Architects, localizada no coração da cidade. Com 12.500m2, esse espaço antes de ser praça era uma parte da fortificação da cidade, depois mercado e estacionamento. Configura claramente a transformação espacial de Copenhagen onde os estacionamentos foram paulatinamente sedo transformados em espaços públicos, e levados para o subterrâneo. A remoção dos estacionamentos foi uma decisão de mudança de cultura e a administração foi retirando 3% dos estacionamentos em praças e ruas a cada ano e reordenando os estacionamentos pagos. Israel Plads está configurada como uma praça de mercado, esportes e encontro, onde vimos novamente grupos de dezenas de crianças das escolas do entorno fazendo suas aulas de educação física ou aproveitando o intervalo. Após o almoço, o percurso ciclístico se direcionou para as margens do canal, porto e Christianshavn Route. Nesta região estão os mais novos investimentos urbanísticos e arquitetônicos da cidade. As pontes para ciclistas e pedestres são um capítulo à parte, e por essas conexões circulam mais de trinta mil bicicletas por semana.
O curso ainda incluiu visitas a intervenções urbanísticas com acompanhamento técnico do gerente de Projetos da Cidade de Copenhagen, Torkil Lauesen. Nesta visita entramos em contato com as estratégias que a cidade utilizou, baseadas nas teorias desenvolvidas por Gehl, para a ampliação e transformação dos espaços públicos e por consequência da vida pública. Visitamos diversas praças que servem tanto à comunidade quanto às escolas. Um ponto forte foi a discussão sobre as estratégias de transformação dos courtyards, os pátios internos das edificações, em espaços semi-privativos, sem cercamentos e com acesso público. A prefeitura indenizou os condomínios que se interessaram em remover as cercas e estabelecer um diálogo direto da sua área antes privativa com a cidade.
O curso obviamente trabalhou com as questões metodológicas e técnicas preconizadas por Gehl, impossíveis de serem discutidas neste artigo devido ao próprio limite técnico. Porém na aula final ouvir o próprio Gehl explicando a transformação dos espaços públicos que está acontecendo na Rússia, e como as pessoas estão vivenciando essas novas relações com o espaço urbano, fechou com chave de ouro essa semana que será inesquecível. Para meus colegas fica a dica de uma viagem a Copenhagen, com ou sem curso de aperfeiçoamento, é uma experiência transformadora.
sobre a autora
Ana Paula Wickert é arquiteta e urbanista formada na UFSM, mestrado na UFBA em Conservação e Restauro e MBA em marketing e gestão na FGV. Secretária de Planejamento da Prefeitura Municipal de Passo Fundo desde 2013. Professora no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Passo Fundo. Entre 2008 e 2014 arquiteta sócia da empresa ZAY Arquitetos Associados, atuando em projetos de restauração de patrimônio histórico, revitalização urbana e arquitetura. Palestrante na área de planejamento urbano, patrimônio histórico, mobilidade sustentável, cidades contemporâneas. Autora de livros e artigos.