Que resultados pode produzir, hoje, um brainstorming no mais alto nível entre um teólogo e um historiador da arquitetura? Esta espécie de milagre, eu me atreveria a dizer, nós podemos tocar com a mão na ilha de San Giorgio Maggiore, em Veneza, até 25 de novembro de 2018.
Na primeira participação da Santa Sé na Bienal de Arquitetura o cardeal Gianfranco Ravasi – antigo prefetto da Pinacoteca e Biblioteca Ambrosiana de Milano e atual presidente do Conselho Pontifício da Cultura, homem de grande sabedoria e ao mesmo tempo voz influente na mídia e nas mídias sociais – queria restabelecer o contato entre fé e artes contemporâneas, dois mundos que nos séculos passados foram “quase sobrepostos e que se tornaram mutuamente estranhos” (1).
A ideia inicial era provavelmente a de criar um pavilhão temporário do tipo daquele feito em Milano por ocasião da Expo 2015, que recebia os visitantes com as palavras Non di solo pane vive l’uomo – o cardeal costuma usar as frases do Evangelho na comunicação, e sobretudo nas mídias sociais, onde seu tweet recente ero straniero e non mi avete accolto, alusivo aos migrantes do navio Aquarius, desencadeou na Itália milhares de reações conflitantes, entre emoção e raiva (2).
Para tanto, ele se dirigiu para Francesco Dal Co, editor da revista Casabella, professor titular da História da Arquitetura no IUAV durante décadas, figura eminente no panorama arquitetônico e editorial italiano e além do mais profundo conhecedor do ambiente veneziano. Ele não poderia ter feito uma escolha mais acertada.
Tendo descartado a priori a ideia de criar um pavilhão tradicional onde expor projetos ou documentos de vários tipos, o curador propôs uma “exposição de arquiteturas construídas” distribuídas na natureza; encontrou na história da arquitetura o modelo de referência – ou melhor, o tema orientador – perfeito: a Skogskapellet, a Capela no bosque, que Erik Gunnar Asplund construiu a partir de 1918 no Cemitério do bosque de Estocolmo; e identificou na Laguna de Veneza o melhor lugar possível para a sua realização: a mata da ilha palladiana de San Giorgio Maggiore (obtida por meio de aterros, na década de 1950, atrás do antigo mosteiro beneditino), hoje sede da prestigiada Fondazione Giorgio Cini.
“Com a Skogskapellet – escreve Dal Co no catálogo – Asplund definiu a capela como um lugar de orientação, encontro, meditação dentro de uma vasta área arborizada, destinada a ser uma evocação física do caminho labiríntico da vida e da peregrinação do homem à espera do encontro. Também as capelas que formam o pavilhão da Santa Sé são isoladas e acolhidas por um ambiente natural totalmente abstrato, caracterizado apenas pelo seu surgimento da Laguna e sua abertura à água, uma outra metáfora da peregrinação da vida” (3).
Os dez arquitetos convidados, das mais diversas origens e experiências, trabalharam livres de cânones e de qualquer restrição tipológica ou funcional. O único requisito sugerido pelo cardeal Ravasi era a presença, no interior das estruturas projetadas, do atril (4) e do altar, sinais da palavra e da comunhão; mas só em alguns casos o requisito foi respeitado, como ele mesmo observou, descontraído, durante a reunião com a imprensa no dia da inauguração.
Em perfeita sintonia com a filosofia que informa o programa do Atrium gentium – a estrutura do Conselho Pontifício da Cultura que promove sobre temas de ética, ciência, arte e novas tecnologias o encontro com os não crentes e com todos aqueles que vão “em busca de um Deus desconhecido” – cada arquiteto dialogou livremente com o tema proposto, na busca de soluções não óbvias, e permaneceu fiel a si mesmo.
Estava lá no dia da abertura para a imprensa e pude verificar o trabalho magnífico dos arquitetos: recusando, rejeitando, eludindo, driblando o próprio nome da “coisa” em questão; concentrando-se nos aspectos formais, estruturais, tecnológicos, ambientais do projeto e naquele tema da “custódia da criação” que nos envolveu todos em tempos recentes; ou bem identificando-se completamente com o tema, enriquecendo-o com todos os seus componentes litúrgicos ou, ao contrário, reduzindo-o aos seus elementos essenciais.
“Não, não é uma capela, não é um santuário, nem em todo caso, um sepulcro” – escreve Eduardo Souto de Moura (Porto) – “é apenas um lugar fechado entre quatro paredes de pedra, enquanto outra pedra no centro poderia ser um altar. As paredes internas têm uma saliência sobre a qual podemos sentar e esperar ... esperar com os pés no chão e a cabeça nas mãos” e conclui com palavras do poeta David Mourão Ferreira, que poderiam tornar-se o próprio título da exposição: “são as coisas mesmas que sabem quando elas têm que acontecer” (5).
“Este não é o projeto de uma capela, é uma reflexão construída sobre o tema”, explica por sua vez o arquiteto italiano Francesco Cellini, de Roma, que priva a construção de parte de seu invólucro, inserindo a mesa/altar e o livro como simples “imagens” (6).
O arquiteto norte-americano Andrew Berman, de Nova York, cria uma sofisticada concha branca da qual se pode acessar, querendo, a um interior escuro muito sugestivo; e acompanha-a com uma ficha técnica em que seu edifício é chamado de “uma forma definida de origens anônimas” (7).
Javier Corvalán, arquiteto paraguaio de Assunção, em sua “capela nômade”, coloca a seção de um cilindro em equilíbrio sobre um tripé inspirado na “bricola” veneziana, tudo inicialmente planejado em madeira, depois feito de aço por razões de projeto e segurança (8).
O britânico Norman Foster, de Londres, ”apoia na paisagem” uma plataforma com três cruzes que acabam sendo absorvidas numa tensegrity structure, abrindo um caminho não-retilíneo e ao ralenti (9) rumo à água e ao céu (10).
La cappela del mattino dos arquitetos Ricardo Flores e Eva Prats, espanhóis de Barcelona, que lembra “as ruínas da Villa de Adriano, bem como as capillas abiertas da América Latina”, é projetada para “capturar o primeiro sol do dia”, escrevem os autores no belo texto que acompanha o projeto (11).
Educado pelos Jesuítas, o australiano Sean Godsell, de Melbourne, propõe uma capela itinerante com estrutura metálica e revestimento de zinco que, construída e montada na terra firme, pode ser transportada e realocada em qualquer parte do mundo, ad maiorem Dei gloriam (12).
A capela cônica do arquiteto chileno Smiljan Radic, de Santiago do Chile, um lembrete das animitas nas margens das estradas chilenas, tem telhado aberto protegido por uma lastra de vidro e finas paredes de concreto cobertas com plástico bolha; um tronco de árvore erguido no meio forma uma cruz, que intercepta o feixe único do telhado (13).
Partindo da ideia inicial de sobrepor uns paralelepípedos em concreto armado para formar uma cruz, Carla Juaçaba (Rio de Janeiro) reduz enfim seu projeto, de imensa sugestão, a quatro vigas de aço inox, deitadas e erigidas num espaço escondido: um banco para sentar perto do chão, quase na grama, e na frente uma cruz refletindo a natureza ao redor (14).
Paradoxalmente, e também de paradoxos vive a arquitetura, a reconstrução iconográfica mais “ortodoxa” é a do japonês Terenobu Fujimori, que após uma pesquisa histórica e tipológica sobre “cristianismo” e “cruz” cria uma capela precedida por um pórtico de madeira (homenagem a Asplund), dotando-a de todos os acessórios, incluindo bancos e vitrais, que ele realizou pessoalmente no local, colando nos vidros das janelas folhas de papel coloridas a mão (15).
Durante a inauguração, em 25 de maio passado, um clima bastante incomum de felicidade pairava na ilha; quase de beatitude, se quisermos citar a obra do Cardeal Ravasi sobre a “mensagem contracorrente” do Sermão da Montanha (16). Afinal de contas, todos concordamos na necessidade de comunicar beleza e ideias através da arquitetura. Crentes e não crentes, sejam bem-vindos à romaria!
notas
NE – Segundo artigo da correspondente do portal Vitruvius na 16a. Bienal de Arquitetura de Veneza. Artigo anterior: ROSSO DEL BRENNA, Giovanna. Freespace. Crônicas da 16a. Biennale di Architettura di Venezia. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 198.01, Vitruvius, jun. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.198/6997>.
1
RAVASI, Gianfranco. Presentazione. In DAL CO, Francesco (curador). Vatican Chapels – padiglione della Santa Sede. Partecipazioni Nazionali de Vaticano, La Biennale di Venezia, 16. Mostra Internazionale di Architettura. Milão, Electa, 2018, p. 23.
2
As frases, em tradução livre, significam, respectivamente: “Nem só de pão vive o homem”; “Eu era estrangeiro e você não me recebeu bem”.
3
DAL CO, Francesco. Vatican Chapels, il progetto. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 78.
4
Atril – móvel ou suporte dotado de inclinação onde se coloca um livro aberto, para se poder ler sem o segurar com as mãos. Cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa <https://www.priberam.pt/dlpo/atril>.
5
SOUTO DE MOURA, Eduardo. No, non é… In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 307.
6
CELLINI, Francesco. Una riflessione costruita. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 127.
7
BERMAN, Andrew. Una forma precisa di origini anonime. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 111.
8
CORVALÁN, Javier. Una cappella nomade. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p 145.
9
Ralenti – movimento lento ou em câmara lenta. Cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa <https://www.priberam.pt/dlpo/ralenti>.
10
FOSTER, Norman. Una croce modellata come una tensegrity structure. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 189.
11
FLORES, Ricardo; Prats, Eva. La cappella del mattino. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 169.
12
GODSELL, Sean. Una identità capace di sopravvivere a migliaia di chilometri di distanza. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 243.
13
RADIC, Smiljan. Una cappella come una animita sul bordo dela strada. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 285.
14
JUAÇABA, Carla. Una panca e una croce. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 267.
15
FUJIMORI, Terenobu. La cappella e la croce. In DAL CO, Francesco (curador). Op. cit., p. 217.
16
RAVASI, Gianfranco. Le Beatitudini. Milano, Mondadori, 2016.
sobre a autora
Giovanna Rosso del Brenna, italiana, é historiadora da arte. É docente da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, desde 2001, e da Università degli Studi di Genova, desde 2000. Foi Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) entre 1978 e 1990.