Vim conhecer a cidade de Campina Grande no período das festas juninas. A prefeitura da cidade afirma que aqui ocorre o Maior São João do Mundo.
Na verdade, eu vim para um congresso que por causa das burocracias das agências financiadoras teve que ocorrer justo nessa época de festas e da copa, tendo sua abertura no dia do jogo do Brasil, o que dificultou ainda mais a presença do público. Mas mesmo assim, o auditório da cerimônia de abertura estava cheio: não é todo dia que acontece no Brasil um congresso internacional com a temática indígena.
Traumatizada com explosões de bombas juninas e fogos de artifício em Salvador, onde resido, não estava nem planejando ver esse tal do maior São João, imaginando passar todos os dias da viagem no congresso. E a agenda era rica, cheia de diversos grupos temáticos, mesas redondas, minicursos etc.
Ouvi colegas comentarem sobre a festa no Parque do Povo, que era uma cidade do interior "de mentirinha", construída especialmente para a festa, cheia de atrações. O motorista do Uber comentou que veio de João Pessoa só para trabalhar na festa, pois sempre tem muita gente. As pessoas que me hospedaram asseguraram que não tinha nada de explosões, tudo tranquilo e organizado.
Terminado o congresso, tinha um pouco de tempo antes do ônibus, saí com colegas para ver artesanato, aqueles brinquedos de madeira, roupas de algodão colorido e crochê. A Vila do Artesão já estava fechando e uma mulher nos indicou o Parque do Povo que ficava logo perto. Lá, disse ela, tinha a Vila Nova da Rainha, onde vendia artesanato também e tinha outras atrações, valia a pena ver.
Saímos andando e logo avistamos o parque, que, na verdade, não parecia um parque, na minha mente inocente que imagina parque como um espaço com árvores. Parecia um parque de diversões, uma “Disneylândia” com sabor nordestino, isso depois de entrar. Mas, olhando do lado de fora, era aquele muro cercando e guardando a festa, e a única coisa que dava para ver era uma fogueira enorme, arrumada naquele típico formato de São João.
A fogueira iluminava a noite e parecia ter um fogo entre as lenhas, só dentro, nada em cima. Mas era iluminação artificial e decoração de bandeirolas que tremiam ao vento. "Será que essa madeira é de verdade?" ‒ indagou-se minha colega. "Deve ser de isopor" ‒ concluímos após uma breve discussão.
Parque do Povo, onde o povo só entra pelos portões e depois de ser revistado com detector de metal. Segurança em primeiro lugar. Nada de estranho, apenas um procedimento necessário, para garantir que não tenha arma na festa ou algo do tipo. Quando acontece carnaval em Salvador, outra festa do povo, e de rua, sou revistada na ida e na volta do mercado, já que moro no meio do circuito.
Olhe, eu ouvi falar dessa cidade de mentirinha, mas quando eu vi, pasmei. Fachadas de casas "típicas" do interior, arrumadas em ruas e praças, e até igrejas de madeirite, com a imagem de São João no meio, o padroeiro da maior festa. As visitantes posando com aquela expressão #partiufesta, na frente dessas igrejas.
As "ruas" com "fachadas" de casas, onde até as telhas são desenhadas, para não faltar nada neste cenário da cidade do interior. Até as decorações dentro dessas casas tentando lembrar os enfeites nas casas do interior. Só que sem pessoas morando nelas.
Dentro são lojas de artesanato, cenários para tirar foto, você com o corpo de caipira de madeirite, ou você tipo cantora de forró.
"Não é fofo? Você está gostando?" ‒ a colega me perguntou. Eu estava apavorada. Precisei explicar. O que fizemos com o patrimônio? Abandonamos o interior, destruímos o centro, folclorizamos sua cultura, suas festas e colocamos sua imitação numa reserva no meio da cidade.
“Achei estranho” – relatou minha colega, ‒ “que em Campina Grande não tenha centro histórico, mesmo a cidade sendo bastante antiga”.
Aí percebemos uma igreja grande. Grande mesmo e muito real. Surgiu a dúvida se ela é de verdade ou é uma parte dessas decorações.
Depois eu fui descobrir que é uma réplica da catedral da cidade. Da própria Catedral de Campina Grande, que está preservada, sim, eu passei por ela outro dia de ônibus e estranhei que a avenida passa logo na sua frente, fiquei me perguntando como acontecem as cerimônias religiosas e as procissões aqui, se acontecem.
Em Campina Grande tem uma rua toda em estilo Art Déco, que decidiram preservar, e a outra, vizinha, foi parcialmente alterada. Pensei que, por outro lado, talvez não seja tão ruim que não tenha um centro histórico: se tivesse, provavelmente seria outra imitação, destruição das fachadas Art Déco na tentativa de voltar às fachadas coloniais. Sabemos que as cidades históricas, primeiras tombadas inteiramente pelo Iphan (então Sphan), como Cachoeira, Diamantina e outras, e até mesmo o centro histórico da minha Salvador, estão cheios desses falsos históricos.
Shopping ao céu aberto, era nisso que queriam transformar o centro histórico de Salvador, no governo ACM. O que não deu certo naquele projeto? Estávamos discutindo isso numa aula da pós-graduação de arquitetura na UFBA. Eu sugeri que foi porque não isolaram o centro. O que faz o shopping ser shopping, tão querido pela classe média, é a segregação.
O espaço comercializado, feito exclusivamente para o consumo, onde não tem morador pobre, está tudo limpo e organizado. Ao entrar você passa por seguranças e não vai encontrar vendedor ambulante ou pedinte. Em Salvador, expulsaram moradores pobres do centro histórico, mas não isolaram o espaço, a população pobre entra, a rua é pública. Não funciona esse “shopping ao céu aberto”, o rico não se sente seguro, não se sente confortável.
E o Parque do Povo parece que funcionou. Não precisa ir para uma cidade do interior, ou preservar um bairro histórico da cidade. Muito mais prático criar uma cidade de cartolina, desenhar os telhados, não precisa se preocupar com as tecnologias de restauro, autenticidade dos prédios e do tecido urbanos e com moradores locais. O cenário funciona perfeitamente, é um parque de diversões que transmite a cultura folclorizada e romantizada. E é suficiente para relembrar ou imaginar “como era antigamente”, sem nada que estrague a festa, só “vibes positivas”. E parece real.
Enquanto eu estava pensando assim, no fundo da Vila Nova da Rainha, tentando achar palavras certas para explicar esse pavor, de repente, entraram umas pessoas correndo, meio caoticamente. Parecia estranho. Parecia assalto. Mas não era uma festa segura? Com aquele controle na entrada? Algumas pessoas correndo e outras não, andando naquela direção de onde vinha o suposto perigo. Finalmente ouvimos: “Incêndio! Estamos evacuando todo mundo!”.
Saímos apressadas da “vila” e nos deparamos com um cenário assustador. A cidade de mentira devorada pelo fogo de verdade subindo alguns metros para o céu. Madeirite e isopor queimando rápido e virando chamas e pretas nuvens de fumaça. E o povo que veio para ver as atrações do Maior São João do Mundo, hipnotizado pelo fogo, ou talvez mais pelos seus smartphones, fazendo transmissão ao vivo. Encontraram uma atração exclusiva. E a fogueira, do outro lado, intacta. Com seu “fogo” artificial, brilhando de dentro e não em cima. A fogueira de um lado e o fogo de outro.
Tirei umas fotos também e saí, pensando como o fogo revelou a verdade. Demonstrou a efemeridade dessa cidade de mentira, que estava parecendo tão real. Em poucos minutos, boa parte do parque do povo foi destruída. Os bombeiros chegaram rápido, mas aquele cenário de papelão já tinha ido abaixo.
Apenas uma pessoa se feriu, relataram depois nas notícias. “Apenas” várias pessoas não puderam curtir o show no último dia de junho. Depois a empresa organizadora fez mutirão para arrumar o espaço e garantir a continuação da festa logo no dia seguinte. Mas essa noite já estava perdida.
Passando uma hora depois pelo local, vimos semblantes tristes das pessoas com camisas xadrez e chapéus de couro, voltando do parque, que aparentemente souberam do ocorrido depois de tentar entrar na festa. E os semblantes de felicidade de pessoas indo na direção do parque, inocentes, ainda sem saber que hoje não teria festa na sua cidade efêmera “do interior”, a maior festa de São João, assim como querem lembrá-la, romantizando o passado das festas juninas tradicionais do Nordeste.
Que ironia, a festa de São João destruída pelo fogo.
sobre a autora
Volha Yermalayeva Franco é mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (desde 2014). Graduação com louvor em Patrimônio Cultural e Turismo pela Universidade Europeia de Ciências Humanas (2012) em Vilnius, Lituânia.