“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Sinto falta de São Paulo, como se estivesse longe de casa. Uma cidade pode sumir assim? Saio para rua e tropeço em espaços em que não me reconheço. Estou longe de casa, há muito tempo, a uma distância sufocante.
Sinto o dissabor de um desencontro dissimulado. Será que eu me atrasei e São Paulo se foi? Partiu discretamente levando todos os lugares que me pertenceram? Estou muito longe de casa, mas nos mesmos endereços. Eles mudaram de fisionomia. Demudaram sem eu perceber, silenciosamente, como uma calçada se esburaca, como as cores desbotam, como os extratos bancários ficam ilegíveis, como os relógios atrasam, como os objetos desgastam sem nos darmos conta. Choro engasgada. Cadê meu chão, cadê meu céu? Minha boca da noite? Minhas madrugadas?
A necessidade de ganhar dinheiro sempre se impunha, me levando, por rotas cambaleantes, para outras paragens. Desistências, desvios, dúvidas, escolhas absurdas, adiamentos sucessivos, covardias: tudo, pacientemente, depositado na minha conta vazia. Distraí-me por tempo demais. Naquele jogo de ganha e perde, não dei atenção para aquilo que consumia a mim e a minha cidade, lentamente. Nem encontrei, no corre-corre, a vida que poderia me arrebatar, me abraçar, colar seu rosto ao meu e acertar o passo comigo... sambalançando. Nas lembranças, repicam vestígios de felicidade em paisagens cada vez mais embaçadas. Custo a crer que o meu tempo se foi, sem me prevenir, sem alarde, disfarçado.
Na velhice, a gente hesita entre ler um novo livro ou reler um livro querido, entre conhecer um novo lugar ou voltar àquele lugar memorável. Entre descobrir sabores que não foram experimentados ou chupar a jabuticaba no pé, como quem encontra um velho, saudoso e doce amigo. Resta-me pouco tempo. Chamo São Paulo: quero encontrar os meus lugares numa cidade transformada, como quem abre o livro de cabeceira.
nota
NE – Nono texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6.Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.