Gostava de ler quando criança e algumas histórias se esculpiram na memória, poucas, infelizmente. Foi emocionante encontrar num sebo há mais de duas décadas, quando procurava livros listados pelos professores dos meus filhos, um volume exatamente igual ao Robin Hood que havia lido quando criança, desenho lindo na capa, verde a cor predominante (1), adaptação maravilhosa de Monteiro Lobato da velha lenda inglesa, cuja autoria se perde no tempo. Abro o volume depositado na ala infantil da minha biblioteca e, como me lembrava, na última página, está a sentença final, grafada em caixa alta: “Aqui jaz o corpo de Robin Hood, o melhor homem que ainda existiu. Criaturas como ele e seus camaradas a Inglaterra jamais verá” (2).
Na primeira vez que li o texto lobatiano se cristalizou a convicção que toda história verdadeira acaba com a morte do personagem principal, quando se fecha de forma honesta e corajosa a trajetória completa de uma existência. Na ocasião, não resisti e comprei, pois faz parte da minha lista de livros prediletos, aos quais recorremos quando o fio que nos une à origem e a tudo que é fundamental está prestes a se romper. “Não se esquece de onde se vem” é uma máxima que repito, mas é difícil cumpri-la, pois ela pode ser dura e causar pavor, dor ou vergonha. Disfarcei – um pouco para os outros, muito para mim – e presenteei meus filhos com as memórias maravilhosas que deixaram de ser apenas minhas. Eles leram e gostaram das peripécias do herói que rouba dos ricos e distribui aos pobres – e me ocorre que leguei filhos desajustados ao hospício em que vivemos... Lembrança desenterrada pela leitura que fiz de texto maravilhoso de Milton Hatoum, onde ele conta sonho maligno, “o sumiço da biblioteca na casa da minha juventude” (3).
Outra história, lida bem antes de Robin Hood – sei que era bem criança pois a li infinitas vezes –, era protagonizada por um pinguim desajustado ao seu meio ambiente nativo, as geleiras da Antártida. Nos seus devaneios se imaginava no calor dos trópicos e num belo dia – belo apenas por ser o dia da decisão, ele tremia como sempre sobre os ossos congelados – pegou seu serrote e cortou o pedaço de iceberg sob seus pés na forma de um barco de criança, grande o suficiente para caber ele e a banheira onde se aquecia e passava as melhores horas do seu dia. Não me lembro do nome do pinguim, apenas que ele usava gorro vermelho de lã e longo cachecol da mesma cor, que volteava várias vezes seu pescoço. As correntezas o levaram para os trópicos e as águas quentes derreteram a embarcação de gelo; engenhoso, o bravo pinguim transformou a banheira em barco e navegou para uma ilha tropical. Mantendo a tradição, passava agora as melhores horas dos seus dias dentro da banheira convertida em piscina. Nas mãos, um drink com frutas coloridas e gelo, muito gelo.
As duas histórias da minha infância me apresentaram as duas viagens mais radicais de uma vida: o abandono de nosso habitat de infância por um sonho ou um pesadelo, como realizou o pinguim memorável da minha infância; e a viagem derradeira, sem volta, para o continente ignoto (não resisto ao comentário que na antiguidade grega o barqueiro Caronte transportava os mortos pelas águas dos rios Estige e Aqueronte até o território sombrio governado por Hades). Desta não se esconde e alguns registram trajetórias dignas de serem lembradas, caso do meu Robin Hood. A outra, contudo, apenas alguns conseguem enfrentar com a energia necessária para uma viagem de fato transformadora.
[álbum "crônica de andarilho" — texto 101]
notas
NA – Vigésima sétima publicação da série “Crônicas de andarilho”, com textos originalmente publicados no Facebook.
1
A capa e as ilustrações são da arquiteta Odiléa Helena Setti Toscano, conforme me alertou Silvia Ferreira Santos Wolff em comentário na postagem original deste texto no Facebook.
2
LOBATO, Monteiro. Robin Hood: adaptação da velha lenda inglesa. Ilustrações de Odiléa Helena Setti Toscano. 2a edição. São Paulo, Brasiliense, 1959, p. 225.
3
HATOUM, Milton. A viagem no tempo. Drops, São Paulo, ano 19, n. 136.06, Vitruvius, jan. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.136/7228>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.