NA – Este é um conto ambientado em um contexto histórico. Os personagens são reais, mas o encontro em Nova York é fictício. As falas durante a premiação e as entre aspas são de seus personagens, as sem aspas são criações do autor.
Em 1988, o prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura, foi concedido, ineditamente, a dois arquitetos não sócios, o brasileiro Oscar Niemeyer e o norte americano Gordon Bunshaft. Não foi um acaso. O Lever House, de 1952, foi o primeiro edifício construído nos EUA segundo os cinco princípios da arquitetura moderna formulados por Le Corbusier. Princípios que tomariam forma, pela primeira vez, na sede do Ministério da Educação e Saúde do Rio de Janeiro, inaugurado em 1943, cujo principal designer foi Oscar Niemeyer. Os dois edifícios são muito semelhantes: uma plataforma suspensa por pilotis, coroada por com terraço-jardim, de onde parte uma lâmina com curtain wall, a segunda construída em Nova York, depois da sede da ONU, de Niemeyer e Le Corbusier. Oscar Niemeyer não pode receber o prêmio em Chicago. O júri ao conceder o prêmio aos dois arquitetos justificou desta maneira:
Há um momento especial na história de uma nação quando um indivíduo capta a essência dessa cultura e lhe dá forma. Às vezes é na música, na pintura, na escultura ou na literatura. No Brasil, Oscar Niemeyer captou essa essência com sua arquitetura. Os projetos de seus edifícios são a destilação de cores, luzes e é a imagem sensual da sua paisagem natural [...]. Sua busca pela grande arquitetura, ligada às raízes de sua terra natal, resultou em edifícios com formas plásticas novas e líricas, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Por toda a obra realizada em sua vida é que o Prêmio Pritzker de Arquitetura lhe é concedido.
Quem saudou os homenageados foi a historiadora e crítica de arquitetura Ada Louise Huxtable, que assim caracterizou a obra dos dois arquitetos:
O prêmio reconhece a qualidade e a importância de duas contribuições paralelas e complementares. Bunshaft e Niemeyer representam as faces opostas da moeda modernista – o racional e o romântico, o poder e a poesia [...]. Gordon Bunshaft definiu o edifício corporativo, uma estrutura tão importante para nossa cultura comercial, quanto o palácio e a igreja eram para a era monárquica ou religiosa anterior, com arte e habilidade consumadas [...]. Se Brasília está presa aos erros do princípio da teoria urbana, os projetos vernáculos e lúdicos de Niemeyer, nos quais flui espaços em forma-livre tão perfeitamente casados com os jardins exóticos de Roberto Burle Marx, demonstrando um lirismo e uma linguagem únicas no tempo e no lugar. Juntos, esses dois arquitetos resumem e significam o alcance e o caráter do movimento moderno.Eles ajudaram a definir e moldar a arte e as instituições do século.
Niemeyer mandou um discurso de agradecimento curto no qual reafirmou seu compromisso com a beleza e a fantasia e exaltou a leveza e plasticidade do concreto:
Primeiro eram os muros espessos de pedra, os arcos, as cúpulas e abóbadas – do arquiteto procurando por espaços mais amplos. Agora é o concreto armado que dá à nossa imaginação o voo com os vãos e os balanços incomuns. Concreto, ao qual a arquitetura moderna está integrada, através do qual é capaz de descartar as conclusões precipitadas do racionalismo, com sua monotonia e soluções repetitivas.
A preocupação com a beleza, o entusiasmo pela fantasia e um sempre presente elemento de surpresa testemunham que a arquitetura de hoje não é uma arte menor, ligada às normas de ponta, mas uma arquitetura imbuída de tecnologia: leve, criativa e sem restrições, procurando sua imagem arquitetônica. Como Charles Baudelaire disse uma vez: ‘O inesperado, o irregular, a surpresa, o incrível são uma parte essencial e característica da beleza’. E isso, meus amigos, é o que eu tenho a dizer sobre a arquitetura, uma prática que me manteve leve ao longo dos anos, na minha prancheta, à disposição e ao chamado dos governos em conformidade com as classes dominantes, indignado com a miséria que pesa sobre um mundo socialmente injusto, uma miséria ignorada, que nossa profissão é impotente para melhorar. É com pesar que não posso comparecer à cerimônia e com grande prazer que recebo o prêmio com o qual fui homenageado.
Bunshaft preferiu não discursar e disse que seus projetos falam por si próprios, mais que suas palavras. Naquela oportunidade, Ada Louise se lembrou do encontro que teve com Oscar Niemeyer numa passagem rápida e secreta dele por Nova York a convite do Secretário Geral da ONU, Dag Hammarksjold, em setembro de 1961, pouco antes de sua morte, em acidente de avião no Zâmbia suspeito. Quem organizou aquele encontro foi o arquiteto Wallace Harrison, amigo dos dois, e sua responsabilidade era muito grande. Harrison jurou a Dag Hammarksjold, que nenhum paparazzo ou jornalista iria registrar sua presença nas ruas de Nova York. Não que se tratasse de um terrorista ou um espinhão soviético, mas apenas alguém que por razões políticas não poderia sair da sede da ONU em que estava hospedado, ou melhor, enclausurado. O local escolhido para o encontro não poderia ser mais apropriado, o final da Park Avenue, onde se situam alguns dos edifícios mais famosos de Nova York. Aquele foi um dos domicílios mais nobres da cidade, embora estivesse, cada vez mais, se transformando numa zona de escritórios comerciais.
O Secretário Geral da ONU queria ter a opinião do principal projetista de sua sede sobre a nova biblioteca que acabara de construir, mas que vinha sendo criticada pela imprensa. Embora Niemeyer tivesse morado conjuntamente com Lucio Costa e suas famílias nos EUA, entre 1938 e 1939, durante a construção do pavilhão do Brasil para a Feira Internacional de Nova York e durante cinco meses, em 1947, quando participou da comissão escolhida para projetar a sede da ONU, com o macarthismo o Departamento de Estado não permitia sua entrada no país, mesmo para fazer conferências convidado por universidades norte americanas, porque ele era membro do Partido Comunista do Brasil. Washington sabia que uma andorinha só não faz verão, mas não podia admitir que um comunista pudesse gozar, ainda que por um par de dias, da maravilhosa American Way of Life. O Secretário da ONU tinha liberdade para convidar um cidadão de qualquer dos países membros para lhe assessorar, desde que não saísse da sua sede.
Harrison combinou com Dag Hammarksjold pegar Niemeyer na garagem da ONU, driblando a vigilância policial, e levá-lo ao local do encontro, o Lever House, na Park Avenue, um edifício inspirado no Ministério de Educação e Saúde do Rio de Janeiro. Harrison e Niemeyer eram velhos amigos que se conheceram em 1938 quando ele e Lúcio Costa trabalharam numa sala de seu escritório no Rockefeller Center desenvolvendo o projeto do pavilhão do Brasil na feira de 1939, e aprofundaram sua amizade em 1947, quando integrou a equipe internacional que iria desenvolver o projeto da sede da ONU. Harrison queria apresentar Niemeyer a outros seus admiradores. A obra e a ginga boêmia do carioca lhe encantavam. Para ele Niemeyer era um mago no desenho. Riscava uma série de traços soltos no papel e num passe de mágica, ao ligar todos eles com um fio, fazia surgir um edifício ou uma praça. Na seda da ONU os dois amigos se cumprimentaram formalmente para não chamarem a atenção dos policiais, mas se abraçaram afetuosamente no carro a caminho do encontro.
No Lever House, o autor de seu projeto, o arquiteto Gordon Bunshaft, os esperava na garagem e subiram pelo elevador de serviço até um dos andares onde havia uma sala reservada para a reunião. Quando Niemeyer entrou na sala não acreditou no que viu: Mies van der Rohe sentado numa poltrona Barcelona fumando um imenso havana, ao lado uma senhora bem mais jovem. Ele se beliscou para ter certeza que não estava sonhando. Niemeyer abraçou o velho mestre e amigo e não resistiu a ir até a fachada de vidro Ray-Ban e apreciar a Pak Avenue e o Seagram Building que brilhava sob o sol de outono com sua estrutura bronzeada e vidros âmbar, precedido de uma grande “plaza” com duas fontes, entre as quais se contorcia preguiçosamente um mobile de Calder. Voltou-se para Mies e gritou: bravo, bravo mestre!
Harrison apresentou Ada Louise Huxtable a Niemeyer dizendo que ela era uma crítica de arquitetura e grande admiradora de sua obra. Todos se sentaram e começaram a conversar. Bunshaft recordou que eles tinham tido algumas conversas, em 1938, quando ambos construíam pavilhões de seus países na feira de Nova York.
– Senti uma enorme emoção ao ver aquela paredes onduladas e rampas, que rompiam com a rigidez do International Style, que exaltava a linha e o ângulo retos como a racionalidade pura. Le Corbusier chegou a dizer que “uma rua curva é o caminho de um burro. A linha reta é a estrada para os homens”.
– O senhor demonstraria, mais tarde, que havia racionalidade estrutural e funcional também na curva e na parábola, como na igrejinha da Pampulha. Acho que quem melhor definiu aquele momento foi o crítico Henry Russel Hitchcock Jr. quando disse que o senhor criou “um novo idioma nacional dentro da linguagem internacional de arquitetura moderna”, observou Ada Louise.
– Eu conhecia o projeto, porque foi desenvolvido em uma sala do meu escritório no Rockefeller Center, mas tive um alumbramento quando o vi construído. Eu sentia que o Art Déco já havia passado, mas também não concordava com a arquitetura asséptica dos nossos colegas europeus. Mas só tive a certeza que alguma coisa nova estava acontecendo na arquitetura mundial quando visitei a exposição realizada no MoMa sobre a arquitetura brasileira.
Nelson Rockefeller, diretor do MoMa, havia lido o livro de Stefan Zweig Brasil país do futuro e ficou tão impressionado com o que leu que pediu a RKO, que sua família era grande acionista, que mandasse Orson Welles ao Brasil verificar se “É tudo verdade”. Mas o filme foi interrompido quando Welles filmava jangadeiros cearenses entrando na Baia da Guanabara e a jangada virou afogando Jacaré, seu mestre. Ele foi acusado pela mídia de responsável pelo acidente e voltou para os EUA sem terminar o filme. No ano seguinte, Nelson Rockfeller promoveu uma missão do MoMA, chefiada por Philip Goodwin, para documentar a antiga e a nova arquitetura brasileira cantadas por Zweig.
– O livro Brazil Builds de Philip Goodwin correu o mundo e o prédio do Ministério da Educação e Saúde passou a ser uma referência da arquitetura moderna, não só brasileira como internacional. A crítica internacional atribui a mim a autoria do projeto, mas na verdade aquele edifício era a demonstração da tese dos cinco pontos da arquitetura moderna teorizados por Le Corbusier realizada por uma equipe de arquitetos brasileiros. Não considero um projeto meu. Da mesma época foi o projeto do pavilhão do Brasil na feira realizada aqui em 1939, meu e do mestre Lucio Costa. São estéticas inteiramente diversas. Ali já há mais liberdade de interpretação dos princípios de Le Corbusier e plasticidade, que não existe no Ministério de Educação e Saúde.
– Desculpe, mas não concordo, Corbu o destacou na equipe e o pilotis com dez metros de altura proposto pelo senhor transformou um quarteirão em uma praça. Não se compara com os pilotis baixos da Ville Savoye e do Pavilhão Suíço na Universidade de Paris. Embora aquele tenha sido o primeiro edifício de escritórios projetado segundo os princípios de Corbu, ele não era apenas a demonstração de uma tese, era um edifício realmente belo e funcional, afirmou Ada Louise.
– Eu fiquei muito impressionado quando visitei o Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro e confesso que tentei reproduzir aqueles pilotis neste edifício, mas não consegui (1). Primeiro, porque só dispunha de meia quadra e não se podia cruzá-la como uma praça. Segundo porque o preço dos três primeiros pavimentos nesta avenida é astronômico e o empreendedor não admitiria que além do térreo eu não desse uso comercial à sobreloja e ao primeiro andar. Eu não tive um sponsor, como o ministro Capanema, que era um esclarecido dentro de um governo ditatorial, mas consegui reproduzir a fachada de vidro e o terraço ajardinado do 3º andar.
Mies assistia a discussão impassível, mirando as espirais da fumaça de seu “puro”. Ele estava na cidade porque havia ido conhecer a decoração do restaurante Four Seasons, no Seagram Building, feita por Philip Johnson, por quem nutria uma relação ambígua de amor e ódio. O anfitrião Harrison ficou preocupado com o rumo que a conversa tomou temendo que a exaltação da curva pudesse parecer uma crítica velada à obra de Mies. Para evitar um mal-estar, achou que aquele era o momento de intervir na discussão.
– Vocês tocaram em um ponto muito interessante, a relação profissional/cliente e a motivação na arquitetura. Acho que ninguém melhor para falar sobre isto que Mies.
– De relação profissional/cliente posso falar de cátedra, pois tenho experiências antagônicas neste campo (todos riram). O Seagram Building só foi possível, como a maioria das minhas obras, porque foi feito fora do mercado. O Seagram nasceu de um sentimento de afeto. De um pai, o presidente da empresa, Samuel Bronfman, que queria conquistar o amor de sua filha, Phyllis Lambert, uma ativista defensora das artes e do patrimônio, criada à distância pela mãe. Pediu a ela para coordenar a construção da nova sede da empresa em Nova York. Ela hesitou entre mim, Frank Lloyd Wright e Le Corbusier. Acabou me escolhendo e me dando carta branca, com o aval do pai, para fazer um edifício de 38 andares, nesta avenida. Se algum dia a empresa mudar de dono ou falir, seu nome não será esquecido, pois já é um monumento tombado.
– Sem dúvida, nós não poderíamos ter feito nossas obras se não tivéssemos grandes empreendedores. Eu devo muito à família Rockefeller, que conheci quando da construção do Rockefeller Center, como auxiliar do arquiteto Raymond Hood. Foram eles que me confiaram a direção de planejamento da feira de Nova York de 1939 e do complexo das Nações Unidas, cujo terreno foi doado por eles. Nelson, como governador de Nova York, tem me dado muitas obras, inclusive dois aeroportos nesta cidade.
– No seu primeiro trabalho com eles, a feira de 1939, você demonstrou ser um grande urbanista e hábil coordenador de arquitetos de muitas nações que vieram montar aqui seus pavilhões, e foi isso que o credenciou para presidir a comissão internacional encarregada de desenvolver o projeto da sede da ONU, ao meu ver, mais que suas relações de amizade com os Rockefeller, disse Niemeyer.
– Os empreendedores privados ou públicos são os agentes que viabilizam nossas obras, mas muitas vezes interferem no nosso trabalho. Bunshaft, este é um edifício comercial, como foi possível construir este edifício deixando o pavimento térreo aberto para o público, na avenida mais cara do mundo?
– Sim, este é um edifício comercial, mas emblemático da maior empresa mundial de detergentes. Frank Lloyd Wright chegou a dizer que ele era o edifício sabonete, como o Chrysler era o edifício automóvel. Não posso me queixar. Eu tive todo o apoio do então presidente da Lever nos EUA, o arquiteto Charles Luckeman, que foi capa da revista Times com o título de “Boy Wonder”, mas por ter concordado em ceder o andar térreo para o público foi demitido pela matriz holandesa, antes mesmo da inauguração do edifício.
– Como você conseguiu realizar suas obras depois da queda de Capanema, como a Pampulha, e não tendo um Rockefeller ou um Lekerman no Brasil?
– Estou impressionado como vocês conhecem a história da arquitetura brasileira. Eu responderia que, mais que tudo, tive sorte. Eu fazia parte de um grupo de arquitetos e artistas modernistas ligado ao ministro Capanena e sua equipe formada por muitos mineiros como ele. Um de seus companheiros na chamada Revolução de 1930 era Juscelino Kubitschek, que foi nomeado governador de Minas Gerais. Ele queria dotar a capital de seu estado, Belo Horizonte, de um bairro moderno. Já havia um lago artificial e um projeto de um hotel-casino estilo normando. Quando um outro mineiro amigo de Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade, viu o projeto, desaconselhou Kubitschek a construí-lo e sugeriu meu nome para projetá-lo. Encontrei-me com o governador numa sexta-feira e ele me explicou que queria fazer um bairro moderno, a Pampulha, em volta do lago, com cassino, capela, sala de baile para o povão e iate clube. Queria tudo para a segunda-feira. Não disse nada, voltei para o hotel e fiz os croquis dos quatro edifícios. Na segunda feira quando lhe mostrei os desenhos ele adorou. Essa foi a minha grande oportunidade.
– Modéstia sua, arquiteto, a sorte pode ajudar, mas ninguém vence se não tiver muita criatividade. Ao meu ver, um dos grandes méritos da arquitetura moderna é essa diversidade. Aqui temos dois ícones da arquitetura moderna, Mies um classicista e racionalista, de linhas e ângulos retos e proporções áureas e Niemeyer numa linha mais sensorial, que poderíamos chamar de barroca, ambos fazendo parte do mesmo movimento, como nunca ocorreu no passado, sintetizou Ada Louise.
– Acho que a questão não é ser ou não ser cartesiano. A maioria dos palácios de Brasília, que visitei em companhia de você e de Lúcio Costa, são cartesianos em plantas. Eu projetei algumas torres de vidro para Berlim, no período de 1919-1921, que não têm nada de cartesianas. Infelizmente elas não foram construídas. Uma delas tem uma planta em forma de ameba parecida com a de um edifício seu, Niemeyer, em Belo Horizonte, que vi em uma revista. A questão arquitetônica de fundo é a adequação da forma ao material. Niemeyer é um grande arquiteto porque sabe trabalhar a plasticidade do concreto. Eu optei pela industrialização e infelizmente a indústria siderúrgica só produz perfilados retos. No Seagram procurei compensar a rigidez dos perfis de aço com a diversidade dos materiais: o bronze das esquadrias, o cristal âmbar belgas e os mármores italianos.
– Niemeyer, eu nunca entendi porque você aceitou fundir o seu projeto com o de Corbu, já que o seu projeto foi o eleito por unanimidade por seus colegas de todo o mundo, todos desejosos de fazer o projeto. Fui eu quem o convidou a fazer parte daquela comissão e mandei lhe buscar no hotel para você participar, contrariando Corbu, que lhe convenceu a não apresentar nenhuma proposta. Seu projeto organizava o espaço urbanístico muito melhor que o de Le Corbusier e criava uma praça para onde se abriam todos os edifícios do conjunto. Como presidente da comissão poderia ter dito que aquele não era o projeto vencedor e que, ou você voltava ao projeto original ou não haveria vencedor, o que seria um fiasco, como foi o concurso da sede da Liga das Nações, em 1927.
– Eu tinha um grande respeito e gratidão a Le Corbusier, por ele ter me destacado quando eu era apenas um trainee da equipe de Lúcio Costa, por ocasião dos estudos preliminares do Ministério de Educação e Saúde no Rio. Em 1947, eu era o vencedor e ele, o mestre de todos nós, me pedia uma oportunidade de afirmação. Eu achei que deveria retribuir o seu gesto. Obrigado, mais uma vez, Harrison, pela sua compreensão e atitude. Talvez o respeito a hierarquia tenha sido uma herança do Partidão. Ser coautor do projeto com ele era uma honra, só lamento não ter podido realizar a praça, se abrindo para o East River.
– Aquela foi uma experiência muito gratificante, mas sob forte pressão da mídia e de algumas associações e colegas americanos. Dentro do grupo só tive problemas com Le Corbusier, que chegou dois meses antes e queria, porque queria, que eu desse o projeto para ele, por notório saber, pois havia perdido o concurso para a sede da Liga das Nações em Genebra e participado da comissão que ratificou o local da sede. Como não dei a ele o projeto, me acusou de ter roubado uma caderneta moleskine com seus croquis, que foi depois encontrada por uma faxineira atrás de um móvel. Peter Blake relata as trapalhadas que Corbu criou em seu livro The Master Builders: Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright.
– Mas logo a seguir você teve outra grande oportunidade, que nenhum de nós tivemos, a construção de Brasília, como foi isso? perguntou Mies.
– Sim, Kubitschek se elegeu presidente do Brasil em 1959 e decidiu fazer uma nova capital no centro do Brasil e me convidou para projetar a cidade. Agradeci e disse que existia no país muitos profissionais capacitados e que o mais democrático seria fazer um concurso. Eu apenas ajudaria projetando os edifícios da administração federal para que a Capital pudesse ser transferida ainda no seu governo. Lúcio Costa ganhou o concurso e a comissão, com membras internacionais, e eu fomos muito criticados. Serenados os ânimos, pudemos voltar a trabalhar juntos, como nos velhos tempos. Fechei o escritório no Rio de Janeiro e fui trabalhar como funcionário público no meio do cerrado, em companhia de candangos, que eram retirantes do Nordeste, a região mais pobre do país.
– O senhor tem sido acusado de nunca ter feito um conjunto de habitação popular, apesar de ser comunista. Gostaria de saber como o senhor encara a relação entre a arquitetura e os movimentos sociais?
– Eu vivo em um país com grandes desníveis sociais. Desde que me entendo só vejo esse desnível aumentar. Eu acredito que esta situação só pode mudar com numa revolução social e por isso entrei para o Partido Comunista. Mas não se faz revolução na prancheta, senão na militância política e nas ruas. E isso eu tenho feito a vida toda. Em 1947, a revista Time estampou uma fotografia minha distribuindo o jornal de meu partido, que estava na legalidade, numa rua do Rio, me chamando de extremista e dizendo que eu não poderia participar da comissão responsável pela elaboração do projeto da sede da ONU. Não se pode misturar a política com a arte. O realismo social soviético foi uma bobagem e não contribuiu em nada para a liberação da classe operária. A arquitetura monumentalista oficial soviética idem e eu disse isso a eles, em 1993, quando recebi o prêmio Lenine. Conjuntos habitacionais devem ser pré-fabricados, para serem econômicos, e esta não é a minha praia. Mesmo trabalhando para o estado burguês do Brasil e da França, ou para o setor privado no meu país e na Itália, me conforta ver um operário parar para admirar uma obra minha e abrir um sorriso. Acho que vocês também já passaram por essa experiência.
– Eu gostaria de ver este edifício por fora. Vamos todos!!
– Você está louco? Logo reconheceriam a mim, a Mies, a Bunshaft e a Ada Louise, nos fotografariam e perguntariam quem era aquele acompanhante. Aqui estamos protegidos pelos vidros Ray Ban. Eu tenho um compromisso com Dag Hammarksjold, e não posso faltar. Impossível!
– Então vou só, serei apenas mais um “chicano” procurando emprego ou fazendo turismo em Nova York. Ninguém vai me reconhecer, vocês concordam? (todos riram).
Enquanto Niemeyer descia para a Park Avenue, os colegas e Ada Louise continuaram a conversa.
– Quando eu visitei Brasília, ainda em construção, com a terra vermelha por toda a parte, mas já com a Esplanada dos Ministérios e os principais palácios, fiquei deslumbrado e confesso que não consigo me esquecer daquela experiência, disse Harrison.
– Realmente se nota a influência da Esplanada de Brasília na sua Empire State Plaza, de Albany, e do Palácio dos Arcos na Metropolitam Opera House, no Lincoln Center, aqui em Nova York. Brasília para mim é a obra de Niemeyer. Não gosto do seu urbanismo decalcado da Carta de Atenas, escrita por Le Corbusier, com seu zoneamento rígido. Niemeyer se libertou de Le Corbusier já no pavilhão do Brasil na feira de 1939, ao contrário de Lúcio Costa, que como urbanista nunca conseguiu se libertar de Corbu. Curiosamente é Le Corbusier que tenta imitar o discípulo, nos palácios de Chandigarh e na capela de Ronchamp, mas com construções pesadíssima, observa Ada Louise.
Nesse instante chega de volta Niemeyer, depois de visitar o pilotis do Lever House e a “plaza” do Seagram Building.
– O que mais gosto nesses dois projetos são os remansos espaciais que foram criados nesta larga avenida. As calçadas são largas, mas as pessoas não param de caminhar. Nesses dois espaços as pessoas param para ver as obras de arte e sentir a avenida com seus prédios e automóveis passando. Elas deixam de ser uma massa que caminha mecanicamente para voltarem a ser crianças, mais espectadoras do que figurantes do cenário urbano. O que invejo nos seus edifícios são as proporções, os detalhes e o bom uso de materiais nobres, como o bronze, o travertino italiano, os cristais âmbar e o Ray Ban verde. Só lamento a perda do céu no fundo da avenida com este edifício gigantesco da PanAm que acabou com o perfil elegante do New York Central Building. De quem é esse projeto de merda?
– Se eu lhe disser, o senhor não vai acreditar. É de Walter Gropius, com Pietro Belluschi e Emery Roth & Sons, dois chefões da máfia imobiliária. Este edifício, chamado de monstrengo pelo público, foi considerado em uma enquete de um jornal como o edifício que os nova-iorquinos mais desejavam demolir. Gropius realizou o que Le Corbusier sempre desejou e nunca conseguiu, que empresários norte-americanos o contratasse para realizar projetos megalomaníacos.
– Eu briguei com ele desde que fomos estagiários do estúdio de Peter Behrens, na Alemanha, disse Mies.
– “Gropius esteve em minha casa em Canoas, no Rio. Ela foi projetada com uma sequência de curvas naturais para fluir com a paisagem local. Ele disse: “muito bonita sua casa, mas não é multiplicável”. Como se eu fosse querer uma coisa dessas! Veja que idiota !” (todos riram).
– Neste final da Park Avenue só faltou a obra de Frank Lloyd Wright, que foi um grande arquiteto, mas como sempre se isolou, preferindo a paisagem natural do Central Park, comentou Ada Louise.
Tenho que voltar à sede da ONU para me despedir do Secretário Dag Hammarksjold e embarcar esta noite. Para mim esta tarde será inesquecível, foi um grande prazer rever Mies, Harrison e Bunshaft, conhecer pessoalmente Ada, e constatar que de formas diversas todos nós perseguimos a mesma coisa, criar espaços e estruturas que surpreendam e parem transeuntes que passam preocupadas e tristes em cidades caóticas como as nossas, já que não temos o poder do capital para ordená-las e embelezá-las.
– É uma pena, mas não podemos fazer nenhuma foto ou registro deste encontro, para não comprometer Dag Hammarksjold, ficará somente em nossas lembranças, disse Wallace Harrison.
– Uma boa viagem e lembranças a sua Cidade Maravilhosa, By, By !
Numa sala VIP no aeroporto John F. Kennedy, acompanhado de Harrison e de dois policiais à paisano, antes de embarcar de volta para o Brasil, Niemeyer deu uma entrevista aos jornalistas de plantão:
– Visitei todo o conjunto da sede da ONU a convite do Secretário Geral e posso afiançar que a nova biblioteca é tão pequena e discreta que não compete, nem com a esbelta lâmina do Secretariado, nem com o volume em cunha da Assembleia, só lamento que não tenha sido feita a praça do meu projeto original.
– Como era essa praça e porque não foi feita? Perguntou um repórter.
– Desculpe, mas meu voo está chamando. Meu colega Wallace Harrison pode explicar melhor isto para vocês...
nota
1
O Lever House foi vendido em 1998 e o novo dono refez a cortain wall que estava muito estragada e fechou o andar térreo com vidros para transformá-lo em uma galeria de arte.
sobre o autor
Paulo Ormindo de Azevedo, arquiteto, Doutor pela Universidade de Roma, Prof. Titular da Universidade Federal da Bahia.