Koolhaas e a circulação em arquitetura
A ideia de se investigar o tema da circulação não é novidade. Importantes pesquisas são conhecidas envolvendo esse amplo tema, com diferentes abordagens e objetivos. Intuitivamente, esse tema pertence ao universo de pesquisa do arquiteto e podemos observar que está mais fortemente relacionado ao período moderno com espaços fluidos e contínuos.
Na contemporaneidade Rem Koolhaas é o arquiteto que expressa bem, em seus escritos e em seus projetos, indagações sobre a questão da circulação em arquitetura. O elevador, por exemplo, que fragmenta a e interfere na percepção e relação dos espaços, e a escada rolante, que conduz a um movimento contínuo e lento pelo espaço, são elementos de investigação conceitual para o arquiteto, que de certa maneira tem relação com a vida e cidade contemporânea.
Este texto está vinculado a uma pesquisa que investiga projetos de Rem Koolhaas a partir da abordagem a respeito do sistema e elementos de circulação, em suas várias dimensões. A ideia é relacionar teoria e prática, ou seja, a relação entre seus escritos e sua obra arquitetônica. Assim, a partir de visitas, desenhos de observação e análise, levantamentos a partir de fontes primárias, são analisados os projetos.
Apresentamos um breve relato e reflexão da visita realizada em 2018 ao Museu Stedelijk em Amsterdam, particularmente a galeria BASE, concebida por Rem Koolhaas, Federico Martelli (AMO) e Margriet Schavemaker (Stedelijk), focando nas suas ideias sobre percurso e circulação no espaço expositivo na contemporaneidade.
Uma circulação não óbvia para o acervo permanente de arte moderna e contemporânea
Cinco anos após a inauguração da extensão do Museu Stedelijk ocorrida em dezembro de 2017, foi aberta a Stedelijk BASE, uma nova instalação com curadoria e concepção de Rem Koolhaas, Federico Martelli (AMO) e Margriet Schavemaker (Stedelijk). Cerca de 700 peças de obras de arte moderna e contemporânea do acervo permanente do Museu Stedelijk de Amsterdam passaram pelo estudo cuidadoso dos curadores para que, desta maneira, este conhecimento pudesse ser organizado e espacializado.
Na extensão do Museu Stedelijk a instalação foi organizada a partir de duas lógicas de percurso: uma cronológica, com início em 1880 e segue o perímetro do ambiente; e a outra está organizada no centro do ambiente por temas históricos, sociais, autorais e icônicos, espacializados por meio de planos verticais expositores concebidos por Rem Koolhaas e Federico Martelli, configurando caminhos e percursos, ambientes de permanência e transição, que estabelecem uma metáfora com a cidade.
A disposição das obras por temas foi planejada a partir da história individual e coletiva de cada obra de arte, oferecendo ao visitante a possibilidade de criar conexões e inter-relações, de modo não habitual, diferente da organização linear tradicional do espaço expositivo.
A conexão entre os dois pavimentos da exposição ocorre por meio de escadas rolantes, elemento de circulação tão presente nas obras de Koolhaas. Um ambiente de transição entre o pavimento inferior e superior insere o visitante num choque de cores e mensagens, e uma imersão em palavras e frases de efeito. Além de muitas escadas como de costume nas obras de Koolhaas. A instalação é de Barbara Kruger.
Rem Koolhaas explica o projeto pelo áudio guia do museu, e afirma que "o percurso criado deveria ser uma metáfora da cidade, com espaços de circulação e surpresas, lugares interessantes, extraordinários e alguns nem tanto, normais”. A instalação é descrita pelo museu como “an open-ended parcours”, e Koolhaas observa a experiência da visita como a de circular pela cidade, com ruas, praças, avenidas, e a possibilidade de encontros inesperados. A intenção foi promover um percurso com fluidez para o movimento, apropriado ao mundo contemporâneo, diferente do museu tradicional, considerado opressor pelo arquiteto.
Martelli observa que o mundo contemporâneo apresenta múltiplas camadas de informação e esta multiplicidade estimula curiosidade. A narrativa não linear e as múltiplas camadas de possibilidades visuais e informações oferecidas, está alinhada ao modo de vida contemporâneo das pessoas. O visitante pode criar atalhos e circular livremente pelo espaço a partir do que chamar mais sua atenção, criando conexões e associações com diferentes artes de modo inusitado e inesperado, fazendo com que a curiosidade guie sua visitação.
O percurso proposto rompe com o modo tradicional de circulação em espaço expositivo, quebrando dogmas e oferecendo liberdade na experiência do espaço e na rede de relações possíveis. As possibilidades de percursos geradas pela espacialização criada reforça a possibilidade de relações cruzadas e conexões entre obras de arte, e compartilhar narrativas, sem direcionar caminhos.
A ideia inicial é que esta instalação seja dinâmica e efêmera, e dentro de cinco anos seja reconfigurada e transformada para anteder as novas demandas dos visitantes.
A mostra oferece arte em diferentes expressões como pintura, escultura, colagens, arquitetura, mobiliário e design. Cézanne, Van Gogh, Picasso, Malevich, Rothko, De Kooning e Pollock. Uma réplica do dormitório Harrenstein de Gerrit Rietveld and Truus Schröder-Schräder’s de 1926 foi construída. O visitante é naturalmente convidado a subir um lance de escadas para poder continuar o trajeto e sua apreciação de obras de design do arquiteto holandês. O percurso pela estreita escada conduz ao balcão superior que tem uma vista cuidadosamente planejada, reveladora e surpreendente, onde o visitante pode observar toda a exposição do BASE e sua organização a partir de um ponto de vista superior.
O sistema com planos verticais expositores de aço desenvolvido de modo inovador e usufruindo mais alta tecnologia permitem que os visitantes percorram os caminhos livremente e tenham visuais importantes da exposição a partir de cada ponto de localização. Portanto, a ideia de salas ou galerias fragmentadas é excluída desta concepção que privilegia o domínio visual do todo pelo visitante.
Os planos verticais são de aço com 15mm de espessura, cortados a laser e desenhados de modo a oferecer estabilidade ao que se suporta, produzidos em parceria com Stedelijk, Arup e Tata Steel. Os planos são tão finos como telas, e promovem a fluidez, leveza e flexibilidade pretendida para o espaço. São posicionados em diagonais e ângulos oblíquos entre eles, criando ambientes estreitos e amplos, oferecendo percursos não óbvios aos visitantes, além de visuais e perspectivas convidativas, inusitadas e surpreendentes. O uso do preto e branco também contribui para o dinamismo e contraste entre os planos.
O visitante pode escolher livremente seu percurso e criar conexões inesperadas entre arte, arquitetura, design, moderno e contemporâneo. Todos os elementos remetem ao movimento e fluidez do espaço, inclusive o desenho do forro e da iluminação.
O modo tradicional de organização do espaço expositivo torna-se, portanto, algo a se revisar. O mundo contemporâneo demanda uma nova abordagem e a proposta oferece uma experiência de espaço como na cidade, onde a cada esquina há uma descoberta, um percurso, um ambiente mais amplo ou mais acolhedor, com visuais amplas, fluidas e também sugestivas.
O espaço encoraja o visitante a optar por diferentes percursos no espaço, para descobrir com liberdade.
O material utilizado nos painéis revela outra ruptura com relação ao material normalmente adotado em exposições, reconhecido por Koolhaas em 2014 na Bienal de Veneza e no seu conhecido texto Junkspace, onde o arquiteto trata de alguns imperativos modernos como a verdade dos materiais e as divisórias em drywall que pretendiam flexibilidade e eficiência.
O projeto da BASE está alinhado com o a tradição do Museu Stedelijk na experimentação e inovação em suas exposições. Koolhaas afirma que quando adolescente costumava visitar o Stedelijk quase que diariamente, e que fez parte de sua formação. As exposições que ele visitou certamente fazem parte deste repertório importante que contribuiu para esta concepção. O arquiteto menciona particularmente uma exposição de 1962 chamada Dylaby (Dynamic Labyrinth).
Esta nova maneira de espacialização e circulação proposta promove maior uma rica conexão entre as obras de arte num só espaço único e fluido.
Apesar de apresentar ideias interessantes, a instalação não agradou a todos. Aaron Betsky publicou críticas à concepção de Koolhaas e AMO, deixando claro que considera o espaço um caos, algo extremamente caro e um desserviço à arquitetura e a arte. Por outro lado, muitos críticos elogiaram a proposta e a experiência do espaço.
Neste contexto, envolvendo arte, conhecimento, percurso e múltiplas conexões, cabe recordar dois projetos excepcionais. O primeiro é o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg da década de 1920.
Entre 1924 a 1929, num projeto radical e inovador, Warburg realiza o Atlas Mnemosyne, uma história da arte centrada e contada apenas por imagens e sem o recurso textual. Atlas Mnemosyne é formado por 2000 mil fotografias extraídas da imensa coleção reunida por Warburg, dispostas em 63 grandes suportes de telas negras esticadas sobre painéis de 1,50m por 2,00m. O espaço ocupado para a exposição foi a sala de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg – um espaço elíptico, que sugere um saber cíclico e sem fim. George Didi-Huberman procura dissecar e explicar de forma clara e detalhada o Atlas Mnemosyne e identifica quatro conceitos que estruturam o Atlas Mnemosyne: painéis, fusões, detalhes, intervalos. Conceitos que parecem ir de encontro com a proposta do Stedelijk Base.
O segundo projeto de inestimável importância que cabe recordar é a proposta inovadora e revolucionária de Lina Bo Bardi para o espaço expositivo do Masp em 1968, de expor as obras de arte em cavaletes de cristal desenhados pela arquiteta, criando um espaço fluido e sem limites definidos. As obras de arte parecem flutuar num espaço transparente, integrado visualmente com a cidade, assim como o próprio museu flutua na Avenida Paulista.
A proposta de Lina rompe com a lógica museológica tradicional, onde o percurso do visitante é guiado pela organização do curador. A ideia de Lina foi, e ainda é transgressora, inovadora e muito criativa.
Trata-se de diferentes modos de propor percursos.
nota
1
Stedelijk Base, Museumplein 10 - 1071 DJ Amsterdam. Aberto todos os dias das 10h às 18h. Sexta-feira das 10h às 22h. Adultos 18,50 euros/ Estudantes 10 euros/ Crianças e jovens até 18 anos gratuito.
sobre os autores
Ana Tagliari é arquiteta (FAU Mackenzie), docente e pesquisadora da Unicamp.
Wilson Florio é arquiteto (FAU Mackenzie), docente e pesquisador na Universidade Mackenzie e Unicamp.