Santa Teresa é um dos bairros de maior apelo turístico do Rio de Janeiro. Tal apelo decorre por um lado de suas características naturais, como a formação topográfica em encosta revestida de linda floresta tropical, e de sua privilegiada situação geográfica em elevada cota de altura, ao longo da extensa crista do Morro de Santa Teresa, que corta a cidade do Rio de Janeiro, dividindo-a em seus territórios geográficos, históricos e culturais.
Tal situação oferece vistas panorâmicas deslumbrantes do centro e das zonas norte e sul da cidade, a partir das quais se desdobram a Baía de Guanabara, o Oceano Atlântico e as montanhas da Serra do Mar, que nele mergulham em composições paisagísticas carregadas de dramaticidade.
Por outro lado, e em forte contraste escalar com esse fundo paisagístico, uma ocupação urbanística e arquitetônica em escala miúda e espaços acolhedores e envolventes, sempre cobertos por copas de árvores tão frondosas quanto antigas. Caminhando pelo bairro, passa-se da ágora para o claustro e vice-versa a cada poucos passos.
Tal ocupação se desdobrou sobre o território em um longo processo histórico, iniciado poucos anos após a fundação da cidade em 1565. Tão longo período produziu uma grande variedade tipológica e estilística, com inúmeros e muito variados exemplos de obras arquitetônicas e composições urbanísticas e paisagísticas que se associam entre si em uma poética de delicado ecletismo.
O bairro sempre abrigou uma população um tanto quanto excêntrica e cheia de contrastes. Lá habitavam, além de quilombolas, beatos e beatas, importantes personagens da história e atores da vida cultural.
Tal população agitava a vida social do Rio, com seus saraus que reuniam grandes nomes da literatura, da música e das artes. Tornou-se, por isso, reduto de intelectuais, escritores, músicos e artistas desde meados do século 19. Atualmente, ocorre nas primaveras o evento anual “Ateliês de Portas Abertas”, quando artistas do bairro recebem visitantes. Também um forte pólo gastronômico desenvolveu-se no lugar, agitando sua intensa vida noturna.
Nas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio Azevedo e muitos outros escritores, são inúmeros os personagens de ficção que moram em Santa Teresa. É o caso de Iaiá Garcia, do romance homônimo; de Sofia, de Quincas Borba; de Aurélia, de Senhora; de Amâncio, de Casa de Pensão (1).
Santa Teresa se desenvolveu ao longo do caminho das tubulações do antigo Aqueduto da Carioca, que chegava ao atual centro da cidade pelos Arcos da Lapa. No início do século 17, já era lugar de festas populares e procissões religiosas, que ocorriam no entorno da Capela de Nossa Senhora do Desterro, que atraía devotos, romeiros e peregrinos.
A capela ficava onde hoje fica a Ladeira de Santa Teresa. Foi fundada por volta de 1620 por Antônio Gomes do Desterro, que ali mantinha uma quinta. A ele, tanto a capela quanto o Morro do Desterro devem seus nomes. Já nessa época, há registros de escravos fugidos que se escondiam nas matas do Desterro. Por mais de dois séculos, a presença de quilombolas conferiu ao morro a fama de lugar perigoso (2).
Em 1715, no dia do bicentenário da santa espanhola Teresa d'Dávila, fundadora da ordem das Carmelitas Descalças, nasceu Jacinta Pereira Alves, personagem central dos fatos que deram origem ao bairro e determinaram seu nome. Sua família morava no caminho que começava em Mata-Cavalos, a atual Rua do Riachuelo e ia até a capela do Desterro, onde cinco anos antes se deram batalhas importantes, durante a resistência à segunda invasão francesa (3).
Talvez por isso, Jacinta, mudou-se junto com a irmã, para uma chácara abandonada, em um local mais alto e distante, na encosta do Morro do Desterro, a Chácara da Bica. Lá, passou a viver uma vida monástica em memória da santa. Em 1742, as irmãs construíram, uma pequena capela consagrada ao Menino Jesus, que posteriormente viria a ser o centro do convento das Carmelitas (4).
O convento foi construído com o apoio do capitão-general da cidade do Rio de Janeiro e das Minas Gerais, o conde de Bobadela e vice-rei do Brasil, Gomes Freire de Andrade que, na época, conduzia a construção do Aqueduto da Carioca. O convento, cujas obras foram concluídas em 1751, foi posteriormente denominado Convento de Santa Teresa, e acabou por denominar todo o bairro (5).
Em 1850 um surto de Febre Amarela provocou um intenso e acelerado processo de desenvolvimento do bairro, resultado da primeira expansão urbana para fora do núcleo inicial de povoamento português. A população da época, que dispunha dos meios para isso, abandonou a cidade baixa e subiu o morro para fugir dos mosquitos que transmitiam a doença (6).
Essa ocupação, inicialmente aristocrática, é responsável pelos muitos casarões e mansões em estilos influenciados pela vinda ao Brasil da Missão Francesa em 1816 e pelos emigrantes europeus, que em sua maioria preferiam habitar este bairro, no qual era possível refugiar-se do torvelinho e das ameaças sanitárias da cidade baixa, com suas amplas áreas de alagadiço (7).
Em 1872 foi implantado o bondinho que hoje é a marca do bairro. Inicialmente tracionado por mulas, só foi convertido para motorização elétrica em 1892. Tal revolução tecnológica criou significativas facilidades de transporte e reduziu o tempo de deslocamento, aproximando muito Santa Teresa do centro da cidade e acelerando o processo de ocupação. As grandes chácaras foram substituídas inicialmente pelas mansões e casarões em lotes urbanos e posteriormente por casas de menor porte, da ascendente burguesia urbana que emergia nas décadas finais do império.
Próximo à linha no morro de Santo Antônio, foram instaladas as oficinas e a garagem da Cia. Ferro-Carril Carioca. A velha garagem prestou serviços até o desmonte final do morro, aproximadamente em 1965. Com o desmonte do morro de Santo Antônio, a oficina e garagem dos bondes de Santa Teresa passou a funcionar nas instalações da estação do antigo plano inclinado, no final da rua Carlos Brandt, onde funciona até hoje (8).
Inicialmente, dois vetores determinaram a ocupação. O primeiro se deu pelas franjas do Morro do Desterro a partir da Lapa por tortuosas ladeiras e belas escadarias e pela rua Monte Alegre, rota usual das diligências. A partir de 1877, também pelo Plano Inclinado, cujo embarque ficava na rua do Riachuelo junto à Ladeira do Castro. O Plano Inclinado levava os passageiros até próximo ao Largo do Guimarães. De lá embarcava-se em bondes de tração animal para ir a Paula Matos ou em direção ao Largo do França (9).
O segundo vetor se desenvolveu ao longo da rua Almirante Alexandrino, que atravessa o bairro desde o Largo do Curvelo até o Silvestre, onde ficavam as nascentes que abasteciam o aqueduto. Em leve caimento e traçado docemente sinuoso esta via acolheu os trilhos da linha do bonde que se originava no Largo da Carioca e chegava inicialmente ao Largo do França, passando por sobre o Morro de Santo Antônio, os Arcos da Lapa, a rua Joaquim Murtinho, o Largo do Curvelo e o Largo do Guimarães. Atualmente, chega até o Largo de acesso ao Morro dos Prazeres.
A rua Almirante Alexandrino sobe ao longo da crista e da encosta noroeste do morro de Santa Teresa, através da quase imperceptível rampa necessária para o escoamento das águas que vem da nascente pelo aqueduto. Tal implantação, quase em paralelo à curva de nível topográfico, determinou uma seção transversal mais ou menos típica, que acompanha grande parte de seu traçado. No lado de sudeste é quase sempre delimitada por muros de arrimo em pedras ou alvenaria que sustentam os terrenos ao montante, sucedidos por grandes mansões implantadas em cota bem mais elevada do que a da rua, a maior parte do século 19, ou por zonas de floresta que se esparramam até a crista e o outro lado do morro em vegetação tropical exuberante.
No lado noroeste, os muros de arrimo sustentam a própria via e fazem a testada dos terrenos à jusante. Destes, e da própria via, nos largos trechos em que este lado da encosta não tem construções, se desdobram perspectivas panorâmicas, primeiro das montanhas da Serra do Mar – incluso o Corcovado – ao oeste, e depois, ao longo de um arco em direção ao leste, do Andaraí, do Grajaú, de Vila Isabel, do Maracanã, de São Cristóvão, da Penha, da Maré, do Caju, da Portuária e do Centro nos primeiros e segundos planos.
Nos planos subseqüentes, se desdobram, em direção ao norte e ao nordeste, os fundos da Baía de Guanabara, as ilhas do Governador e do Fundão, Duque de Caxias e trechos de São Gonçalo e Niterói. No último plano a cordilheira da Serra do Mar, na qual à noite se avistam as luzes de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo e o fogo nas chaminés da Reduc. A vista noturna destes trechos da cidade, cobertos por um manto de infinitos pontos de luz é como um céu na terra cheio de estrelas a piscar.
Os lotes à jusante da via foram ocupados ao longo do período que transcorreu entre o fim do século 18 e os anos sessenta do século 20. Encontram-se ali desde pequenas casas, anteriores à missão francesa, até edifícios multifamiliares de cinco ou seis andares, com dois ou três acima do nível da rua e os demais abaixo. É uma implantação bem característica deste tipo de situação, com um prisma de ventilação e iluminação que se forma entre o muro e a fachada do edifício, que dele se afasta alguns metros.
Esta configuração espacial, que se dá entre os altos muros e palacetes e mansões por um lado e as vistas panorâmicas e pequenos edifícios de outro, quase sempre sob a sombra de frondosas árvores da exuberante floresta tropical, é um dos traços característico da poética da rua Almirante Alexandrino, principalmente acima do ponto em que faz esquina com a rua Aarão Reis.
Os outros são o bonde e o desenho sinuoso dos trilhos sobre o piso, ora calçado com paralelepípedos, ora com asfalto, e o emaranhado formado pelos cabos das redes elétricas e telefônicas que cortam e recortam a vista da paisagem e do céu em múltiplas direções.
Também as favelas fazem parte desta poética. Elas são o testemunho da tristemente iníqua situação social do Rio de Janeiro moderno e contemporâneo. São o sucedâneo das ocupações quilombolas dos séculos 17, 18 e 19. Como os quilombos anteriormente, abrigam os excluídos da vida formal e são agora a causa da fama de perigo do bairro (10). Carregam uma beleza multicolorida quase trágica e fazem um fundo fortemente contrastante a muitas paisagens que se descortinam a partir desse trecho da Almirante Alexandrino.
Ao contrário do secular processo de ocupação das franjas do Morro que são adjacentes à Lapa e à Gloria, a ocupação das franjas e das partes baixas da encosta, adjacentes ao Catumbi e ao Rio Comprido, se realizou em poucas décadas, a partir do fim da Guerra dos Canudos em 1897. Contribuíram para isso os intensos processos de migração da população nordestina, atraída pelo processo de industrialização da região sudeste no século 20.
Como a implantação da Almirante Alexandrino na parte alta da encosta se deu muito antes destas ocupações, nela se dá o incomum fato de oferecer vista a cavaleiro por sobre as favelas que se derramam morro abaixo. Ao longo e abaixo desta rua, se sucedem as comunidades que habitam os morros da Coroa, do Falet, do Fogueteiro, de São Carlos, da Mineira, do Zinco e dos Prazeres. Esta última, nascendo do divisor de águas com o Morro de São Carlos, formado pela rua Itapiru, sobe o íngreme morro do mesmo nome até bem mais acima da cota da Almirante Alexandrino.
Santa Teresa é paisagística, cultural e socialmente o mosaico resultante da sobreposição destas múltiplas camadas históricas sobre o seu território geográfico. Tal processo legou uma rica coleção de obras arquitetônicas de singular qualidade estética, que se relacionam, entre si e com a paisagem formando espaços urbanos muito característicos e carregados de intensa força poética. É também um mirante, à vista do qual se desdobram a passagem dos séculos e magníficas paisagens de uma cidade conhecida por sua beleza natural.
notas
1
PIMENTEL, Márcia. Santa Teresa das mil e uma histórias e outros carnavais. Bairros Cariocas, Rio de Janeiro, MultiRio, 24 fev. 2014 <https://bit.ly/2klAztH>.
2
Idem, ibidem.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem.
5
Idem, ibidem.
6
AFN NOTÍCIAS. Uma breve história da febre amarela. Agência Fiocruz de Notícias, Rio de Janeiro, 11 jan. 2008 <https://bit.ly/2N1VyTb>.
7
LUCENA, Felipe. História do bairro de Santa Teresa. Diário do Rio, Rio de Janeiro, 2016 <https://bit.ly/2FmoqPY>.
8
PACINI, Paulo. A garagem de Santo Antônio. Sempre Rio, Rio Antigo: passado e presente de uma grande cidade, Rio de Janeiro <https://bit.ly/2WWsrjQ>.
9
Idem, ibidem.
10
Tal fama não corresponde aos fatos; ver: Onde Fui Roubado. Rio de Janeiro, Cidadania 2.0 <https://bit.ly/2Rrk9PG>; IPEA. Atlas Violência. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro <https://bit.ly/2FyviMf>.
sobre o autor
Luiz Felipe da Cunha e Silva é arquiteto (Universidade Santa Úrsula), mestre em saúde pública – (ENSP Fiocruz), doutor em psicologia (PUC-Rio), doutor em urbanismo (ProUrb FAU UFRJ) e professor associado (DPA / FAU / UFRJ)