O pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516) viveu em momento crucial da transformação do mundo, quando os estertores da idade média foram varridos pela voga poderosa da modernidade. Seu famoso tríptico “O jardim das delícias terrenas” – datado de 1504 e exposto no Museu do Prado em Madri –, é composto por três peças em madeira, que se fecham articuladas por dobradiças. Aberto, o móvel abriga em seu interior três pinturas, que formam o mencionado tríptico – um quadro central retangular, com dois outros menores laterais, com a metade do tamanho do maior. Fechado, o objeto forma uma nova pintura com as costas dos dois suportes laterais menores. Esse quadro que encerra o conjunto tem o nome de “A criação do mundo”, aponta para a potência divina, origem e fim de todas as coisas.
Bosch guardou nas telas internas do móvel a história da humanidade, alegoricamente contida em três atos. Na aba esquerda, o casal original languidamente deitado no locus paradisíaco, onde não faz nem frio, nem calor; ao centro, os corpos amontoados das novas gerações gozam o pecado desenfreado da luxuria; na aba direita, o inferno escuro, abandonado pela luz da providência, os corpos dos pecadores sofrem punições possíveis e imaginárias. Nas pinturas exuberantes de Bosch, a teleologia do destino humano, em processo contínuo de queda inelutável, da criação à perdição. A inocência conferida pela criação ao casal original, Adão e Eva, se esvai na descendência, quando se multiplicam os seres que vivem o prazer sensual e sexual sem travas, o que os leva à depravação moral e à punição eterna da própria humanidade. O fim de tudo, para remissão dos pecados, ocorre com o fechamento do móvel, o livro da vida. A salvação nada mais é do que acabar com o sofrimento coletivo.
Ao adentrar o espaço expositivo do quinto andar no edifício do Sesc Avenida Paulista e me deparar com as cenas do garimpo de Serra Pelada registradas por Sebastião Salgado em sua exposição Gold – Mina de Ouro Serra Pelada (1), o tríptico de Bosch me veio imediatamente à memória. Acredito que a obra me foi sugerida pela multidão de pessoas com os corpos expostos em grande parte, os contatos físicos inevitáveis em uma aglomeração tão densa, a dissolução da individualidade reforçada pelo amontoamento, a movimentação exaltada e incessante, o estado febril de toda aquela gente, movidas não só pela expectativa da luxuria, mas também pelo pecado da cobiça. Contudo, na versão contemporânea de Salgado, os fios sutis que nos unem à divindade parecem ausentes, e o destino da história foi confiado ao acaso.
Segundo se lê no texto afixado na parede e assinado por Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, “em 1986, o fotógrafo visitou a região localizada na Amazônia paraense e, ao longo de um mês, registrou o formigueiro humano, em que a profunda depressão, antes colina, havia se transformado. Um aglomerado bruto de músculos, suor e sonhos de prosperidade, constituído por 50 mil garimpeiros, lançados a condições de trabalho extenuantes”. Segundo a curadora da exposição, Lélia Wanick Salgado, estes “50 mil homens estavam apostando suas vidas pela chance de ficarem ricos” e para isso não hesitaram em “deixar suas famílias, vender seus pertences e assumir grandes riscos, que assim fosse. Para alguns, valeu a pena, mas muitos voltaram tão pobres quanto no dia em que chegaram lá”.
O formigueiro humano é uma boa evocação; no caos parece existir uma compulsão misteriosa, os indivíduos, secretamente tomados por ímpetos coletivos comuns, manejam instrumentos no mesmo ritmo, rumam para o mesmo lugar, carregam “sacos de 40 quilos de terra” encosta acima, encosta muito íngreme, em filas indianas, escalando escadas inclinadíssimas. “No topo” – como nos ensina a curadora – “a terra recolhida era peneirada em busca do metal precioso sob os olhos vigilantes do proprietário do lote”. Uma boa evocação, mas imprecisa, está ausente a leveza presente nos gestos dos insetos elegantes e esbeltos, que carregam sem grande dificuldade pesos muito maiores do que o próprio corpo. Nos corpos sem gordura dos garimpeiros sobram músculos rijos, suas peles se fundem às roupas enlameadas, seus dorsos melados de terra argilosa, encurvados, carregam pesados sacos de terra, corpos que se fundem às encostas – algumas cenas parecem baixos relevos em bronze, com os corpos encravados nos barrancos, fusão extrapolada pelas fotografias em preto e branco.
O anonimato e a ausência de individualidade são, contudo, subvertidos em várias das fotos, quando pessoas de verdade surgem em meio à balburdia e frenesi reinante. Alguns descansam, outros parecem despertar do torpor, um abre espaço para sofrer, outro deixa-se invadir pela saudade do que deixou para trás, aquele chega a esboçar uma indagação enigmática para o fotógrafo, quase todo tempo desapercebido pela turba. Todos homens, nenhum sorri, cada qual tem expressão particular que se individualiza na mescla de sentimentos que o habitam – esperança no futuro, desejo de estancar a faina intolerável do cotidiano, ambição diante da busca incessante pelo metal precioso. Mas a tensão latente explode aqui e acolá em confronto, como exceção dentro de um quadro social de enorme subserviência.
As condições de trabalho eram desumanas. Se a cobiça era o combustível que movia aquela gente, é justo pensar que a estrutura social profundamente injusta no país daquele momento, vivendo os anos finais da ditadura militar, era a faísca que fazia a máquina social de exploração funcionar. Serra Pelada tornou-se formalmente distrito de Curionópolis, cidade nova cujo nome homenageava Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o “Major Curió”, interventor da área em 1980, logo após a descoberta do ouro. Sua experiência no combate à Guerrilha do Araguaia na Amazônia entre 1972 e 1974 o habilitou a estabelecer uma ordem social baseada no medo e na violência do Estado, autoridade suprema que lhe conferiu o apelido “Imperador da Amazônia”.
O texto anônimo afixado na parede nos avisa sobre o ódio armazenado contra o controle policial-militar, que às vezes fugia de controle:
“A ganância febril que move uma corrida do ouro rapidamente pode se transformar em violência. Surpreendentemente, dada a concentração de homens vivendo em condições estressantes, as brigas entre os mineiros de Serra Pelada eram raras. No entanto, a tensão provinha de seu ódio pela policia enviada pelo governo do Pará para manter a paz. Os garimpeiros eram cautelosos em desafiá-los, pois apenas a polícia podia portar armas, mas ainda assim os confrontos ocorriam. Mais de uma vez, policiais abusivos foram espancados e arrastados até o posto policial mais próximo para serem denunciados. Em outra ocasião, um policial que atirou em um garimpeiro foi apedrejado quase até a morte por uma multidão. Os mineiros tinham um consolo: a crença de que um dia eles seriam mais ricos que qualquer guarda armada”.
O abandono dos homens por Deus a sua própria sorte liberou as forças demoníacas que habitam os porões da humanidade destituída de luz. Em Serra Pelada, nada resta da história divina previamente arranjada, preside o destino inelutável da exploração do homem pela lógica inclemente da acumulação capitalista. O demônio e seu território foi desalojado da transcendência e passou a habitar a imanência da vida comezinha.
Coincidindo com o fim da ditadura, o ouro começou a escassear em Serra Pelada, que a partir de 1985 começou a presenciar o êxodo crescente de garimpeiros, para no início dos anos 1990, já no governo de Fernando Collor de Mello, ver desativada suas atividades de garimpo. Em sua lógica igualmente destituída de felicidade possível na terra, as energias produtivas da modernidade são deslocadas para outras atividades, restando no meio da Amazônia a sangria no território como vestígio da infâmia.
Devolvemos a palavra para a curadora Lélia Wanick Salgado fechar esta breve resenha da bela e angustiante exposição do fotografo Sebastião Salgado:
“Por volta de 1992, com a elevação da água tornando a mineração cada vez mais perigosa, muitos garimpeiros mudaram-se para outras áreas da floresta Amazônica. Hoje, Serra Pelada é um lago, com apenas sonhos perdidos escondidos sob sua superfície plácida”.
nota
1
“Gold – Mina de Ouro Serra Pelada”, exposição de fotografias de Sebastião Salgado, curadoria e design de Lélia Wanick Salgado, Sesc Avenida Paulista, de 17 de julho a 3 de novembro de 2019.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.