O projeto de intervenção no mercado de São Braz é uma apologia da gourmetizacão, a ser entregue à iniciativa privada: boulangerie, pub, empório etc. Está na contramão das recentes propostas (Londres, Barcelona), que buscam redirecionar os mercados às suas funções originais de abastecimento alimentício nos bairros onde estão instalados.
Essa ideia de que nas “capitais do primeiro mundo” a tendência são esses mercados “gourmets” como o da Boqueria em Barcelona, o São Miguel em Madrid e o da Ribeira em Lisboa, é uma falácia que está sendo totalmente questionada pelos moradores dos bairros, e por suas reivindicações, estão sendo adotadas novas estratégias pelo poder público.
Em Barcelona, uma cidade com experiência modelo em intervenções em mercados públicos, está se realizando uma revisão do que vem sendo feito nas últimas décadas, recuperando os mercados para os cidadãos e cidadãs dos bairros, por meio da introdução de novas práticas como o comércio de proximidade e ecológico. Isso se deve a que, apesar de ter sido uma experiência que manteve os mercados em atividade, recuperou sua importância na cidade, e em grande parte manteve sua concepção original e preservou os edifícios históricos, não deixou de contribuir para uma certa “gentrificação” como no caso do recém reformado mercado de Santo Antoni.
Alguns mercados da Espanha – em Madrid, Barcelona, Valência e Terrassa – foram reformados e modernizados sem que tenham passado por um processo de negação de suas funções. Modernizaram-se, atendendo as novas demandas de consumo alimentar, não precisando para isso serem “gourmetizados”. Continuaram servindo aos bairros, oferecendo alimentos frescos, ainda que em alguns deles se encontre boxes de venda de alimentos processados, de comida pronta.
Portanto, não existe apenas um modelo de recuperação desses espaços como o que se propõe para o mercado de São Braz. É possível uma proposta que contemple permissionários, as exigências de consumo atuais, a vocação de comércio e serviços da área, o respeito ao edifício, que embora bastante alterado, ainda é um patrimônio e elemento de identidade histórica, e sobretudo sua permanência como mercado público.
Portanto, o que se quer implementar em Belém com essa proposta para o Mercado de São Braz, desvirtuando a função do mercado, e acima de tudo, expulsando os permissionários e vendedores de seus locais de trabalho, será um desastre, pois é necessário muito mais que um “retrofit” no edifício com uma “leitura diferente onde transforma-se em um novo e verdadeiro espaço de serviços, compras, gastronomia e convivência social”, como descreve o projeto elaborado pela prefeitura.
Uma intervenção deve ser articulada com as atividades de vocação comercial e serviços, e às outras obras de relevância na área, como a escola moderna Benvinda de França Messias, a caixa d’água e o edifício da instituição Lar de Maria, estabelecendo eixos de atividades, articulando o antigo e o moderno entre si e à paisagem circundante, e recuperando áreas degradadas do entorno do mercado.
sobre a autora
Celma Chaves é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do PPGAU da UFPA. Fez doutorado pela ETSAB/UPC de Barcelona, onde realizou estudo pós doutoral sobre os mercados públicos. Coordena o Laboratório de Historiografia e Cultura Arquitetônica – Lahca.