Sete manhãs seguidas andei pela medina de Marrakesh e sete vezes me perdi no labirinto quase milenar. Na última andança, ia adquirir um pequeno alaúde com cabo de madrepérola, feito por um dos três músicos cegos da praça Jemaa El-Fna.
Escutei a chamada à reza do muezim da mesquita Koutoubia, almocei na praça, esperei até às duas da tarde, mas os músicos e o alaúde não apareceram. Visitei uma escola religiosa, uma das mais antigas madraças marroquinas. Depois entrei pela última vez no emaranhado de ruas estreitas e encurvadas. A sensação de estar perdido não era desagradável. Fui atraído por uma pequena vitrine cheia de livros, e entrei num corredor com uns dois metros de largura. Lá do fundo, um velho perguntou em árabe, e depois em francês, qual livro eu procurava.
Respondi que naquela tarde não procurava livros, e sim três músicos da praça.
“Os cegos”, ele assentiu, com familiaridade. “Vamos descer, talvez você se esqueça dos músicos e se interesse por algum livro.”
A escada era escura e sinuosa. Lá embaixo, uma sala espaçosa e entapetada contrastava com o corredor de cima. Era uma casa-biblioteca no subsolo, protegida do vozerio e da azáfama da medina. Um moço veio de um pátio interno e me ofereceu uma taça de chá de hortelã e uma travessa com tâmaras graúdas recheadas de nozes. O livreiro sussurrou umas palavras para o moço e mandou-o sair.
“Livros em nove línguas, nenhuma desconhecida”, ele disse, sem modéstia, mas sem afetação. Perguntou quanto tempo eu ia ficar na cidade. Disse que na manhã seguinte viajaria ao deserto, depois a Fez e a Tânger.
“Tânger”, ele sorriu, com prazer. Retirou cinco volumes grossos da estante e colocou-os com cuidado sobre uma mesa circular. Era o livro de Ibn Battuta, traduzido do árabe para o russo, italiano, inglês, espanhol e francês.
“É o relato de viagem do tangerino Ibn Battuta. O Rihla é um gênero da literatura árabe inaugurado no século xi por Abu Hamid, de Granada”.
Falou de muçulmanos andaluzes e marroquinos que viajaram pelo mundo. Eram sábios, aventureiros, comerciantes, mas todos, de algum modo, eram geógrafos. Explicou que naquela época a geografia abarcava tudo e tinha vários nomes: Ciência das longitudes e latitudes, Ciência dos itinerários e dos Estados, Ciência das maravilhas do mundo...
“A matemática, a etnografia, o poder e a fábula”, sorriu o livreiro. “Ibn Batutta foi um dos maiores peregrinos do mundo. Viajou a pé, de barco e montado num camelo. Em mais de duas décadas foi ao Egito, à Palestina, Síria, Pérsia, Rússia, Índia, Ceilão, Mali, e talvez China...”
O livreiro era fascinado por Ibn Batutta e Marco Polo, viajantes que se aventuravam para conhecer e registrar outras culturas e paisagens, ao contrário do personagem Robinson, o náufrago que colonizou e explorou uma ilha.
Intuiu que eu era brasileiro e perguntou de qual região.
Do Amazonas, respondi.
“Já andei por lá. Conhece o Amapá? Mazagão?”
A cidade fundada pelos portugueses?
“Pelos portugueses do Marrocos”, corrigiu. “No século XVIII foram expulsos de El Jadida, antiga Mazagão. Não receberam ajuda da coroa portuguesa e se sentiram traídos. Não queriam ir embora, e talvez já se considerassem marroquinos. Para um espírito aberto, o sentimento da pátria é volúvel. Em todo caso, destruíram a cidade, foram conduzidos a Portugal, e depois fizeram uma longa viagem à região amazônica. É curioso: viajaram de Belém, em Portugal, para Belém do Pará, e finalmente para o norte do Norte, onde fundaram Mazagão, no atual Amapá.”
Como sabia disso?
“A história”, ele riu. “A história me levou a sua região. Venha”.
Passamos por um pátio com colunas da cor de romã; no centro, um fio grosso de água jorrava de uma pequena fonte de pedra. À nossa direita, uma galeria exibia uma biblioteca menor. Retirou da estante dois livros em português, e só então soube que minha língua materna era uma das nove que o modesto livreiro lia. Os dois livros contavam a história dos portugueses em Mazagão. Ele me ofereceu ambos. Escolhi o mais fino e li o nome do autor.
“Foi embaixador do Marrocos em seu país. Nas viagens à Amazônia e ao Rio de Janeiro conheceu judeus brasileiros de origem marroquina.”
Agradeci e disse: antes de ir embora, gostaria de pagar pelo livro.
“Você me paga com uma nova visita a Marrakesh.”
Seguimos pela galeria, passamos por uma sala menor e subimos uma escada de pedra. Lá de fora vinham vozes de cantores, sons de alaúde e de algum instrumento que lembrava o tamborim.
“Garnati”, ele disse. “Um estilo árabe-andaluz, cantado e tocado por três ou quatro músicos.”
A gente se despediu com um abraço, depois da minha promessa de voltar a Marrakesh.
Quando ele sumiu no subsolo, percebi que estava em outra rua e, mais uma vez, perdido. O sol declinava, o volume dos sons do “garnati” cresceu, e os três músicos cegos vieram na minha direção. Sorriam, cantavam, tocavam. Um deles parou de tocar e me entregou o alaúde. Sem entender essa magia, paguei ao músico artesão e disse que não sabia como voltar a Jemaa El-Fna.
“Vamos para lá.”
Eles me guiaram até a praça, um imenso teatro a céu aberto: um céu azulado, agora escurecido, iluminado pelo minarete da Koutoubia.
nota
NE – Publicação original do texto: HATOUM, Milton. Um livreiro em Marrakesh. Caderno 2. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 16 out. 2020.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.