Qualquer viajante sabe, esteja ele em trânsito de uma pequena cidade vizinha a outra, ou de um continente a outro no mais distante percurso do globo; seja esta viagem por exílio, prazer, curiosidade, fuga, busca de si ou qualquer razão: o sonho do deslocamento é povoado de vozes internas, de imagens captadas por olhos que as dimensionam no espaço vasto e exíguo da reconstrução traiçoeira da memória. E na literatura não ocorre de modo diverso: as escritas nascidas dos viajantes são ambições de liberdade; são cantos de melancolia e saudade; são procuras nas quais tanto se encontra quanto se perde de vista o que se buscava. E são tantas as camadas envolvidas, evocadas e revolvidas pelas imagens do trânsito, da movência, do olhar que se vai configurando estranho/ estrangeiro a cada novo pouso.
Na outra ponta deste mapa o discurso poético: a paixão pelo narrar em forma de imagens condensadas. No signo desfechar toda a potência insuspeita dos símbolos. A poesia é um gesto da memória, é uma construção que deseja, que ambiciona, que pulsa até a frustração reconhecida de suprir a ausência, de estender o olhar ao mundo, de criar mundos possíveis e de esbravejar o que se cala fundo em um eu que olha atônito, perplexo, capaz de se indignar, de se reconhecer voz estranha ambulando entre estranhos mundos nos quais tenta escavar sentidos, sensações, bálsamos, unguentos, ruínas de afetos. O poeta escreve para adiar esquecimentos, para inventar memórias, lugares, paisagens: para (sobre)viver. Poesia é da ordem da urgência que se tece “na tensa perfeição da morte de uma tarde”, na condensada imagem que nos abisma a escritura de Sonia Marques (1).
As viagens de versos, olhos, (des)encantos vêm em conversa intersemiótica com as iluminuras de Eliane Lordello, cujos traços e cores incorporam signos verbais: adverte-se, não pretendem ilustrar tão somente, mas se revelam paisagens outras a proliferar o que a palavra escrita instaura. Os poemas são espantos, revolta, com atmosfera sépia, de fim de tarde, de voz madura de quem transita o mundo sem se pretender enunciar solidez e acabados vereditos, mas destilar uma fina perspicácia, uma ironia que recobre uma humanidade atenta aos desvãos do que constitui esse tecido de espécie animal tão cruel e falida, em meio a tanta estranha beleza e dor criadas por ela mesma. Sim, nos sopra, Sonia: “eu qualifico e construo hipóteses/ deixando para o tempo o veredito/ e sobre as dúvidas ponho um adjetivo/ pro ínterim em que o tempo não resolve”, porque sabe ser o tempo um perverso e por vezes mau juiz, invenção opressiva desta mesma humanidade.
Uma consciência do passar do tempo faz as viagens serem a obsessão e tema destes poemas, em um exercício poético de deambulação, de flanagem no espaço além do geográfico. A geografia externa é redesenhada pelo deslocamento da voz poética e inscreve Sonia e Eliane como parceiras de uma aventura que convoca o leitor a também se permitir mergulhar no mapa recosido em uma cartografia muito particular, mas ao mesmo tempo capaz de ecoar nossas próprias partidas, chegadas, imaginações e escutas. Línguas tantas que ecoam das terras de onde se saiu para aquelas por onde se passa: travessia babélica. Embarquemos, pois, com os sentidos alertas. Mas os que ainda adormecidos estiverem serão, sim, acordados: não se viaja impunemente. Não tardemos mais, é hora de partir e imergir nessas Viagens.
nota
1
O presente texto é prefácio do seguinte livro: MARQUES, Sonia; LORDELLO, Eliane. Viagens. São Paulo, Trevo, 2020.
sobre a autora
Renata Pimentel, professora de literatura na Universidade Federal Rural de Pernambuco, escritora, trabalha com dança, teatro, artes visuais, e é viajante recifense e estrangeira em si mesma.