À beira do Rio das Mortes, localizado entre as pequenas cidades mineiras de Bom Sucesso e Ibituruna, existe um peculiar edifício. Para acessá-lo é necessário se afastar da rodovia MG-332 e percorrer uma estrada de terra com cerca de 6 km de extensão. Após o curto percurso, onde predominam formas típicas de uma paisagem rural do sul de minas, avista-se um elemento que destoa do entorno: uma enorme cobertura de formato triangular côncavo, sustentada por uma sequência de colunas, surge em meio à mata.
Embora existam algumas outras edificações à sua volta, a atenção é rapidamente direcionada para a singularidade da construção principal. O edifício aparenta estar em situação de abandono. À primeira vista, ressoam elementos de um déco tardio, mas a forma e estrutura anunciam o moderno. No recôndito de uma zona rural, esconde-se uma arquitetura moderna anônima, conhecida e guardada na memória daqueles que um dia já a usufruíram como baldeação para seus destinos. Encontramo-nos na antiga estação ferroviária de Aureliano Mourão.
No local da bilheteria, fechada agora por tábuas, depara-se com algumas poucas informações que, cravejadas à pregos em uma pequena moldura, revelam sobre o histórico do lugar. Inaugurada em 1887, pela companhia ferroviária “Estrada de Ferro Oeste de Minas” – EFOM, a estação era o local de entroncamento do trecho que ligava a cidade mineira de São João del-Rei a outras duas cidades. À direita da estação, o caminho conduzia à Divinópolis (MG) e, à esquerda, seguia-se para Lavras (MG). Devido ao expressivo movimento de passageiros e de cargas que por ali passavam, em 1940, um novo edifício de formato triangular ergueu-se local da primeira estação. Este que permanece até o presente momento.
As informações ainda revelam soturnamente o fim da estação ou, a meu ver, seu aparente fim. Lê-se, no curto documento:
“Em dezembro de 1984 apitou e passou por ali o último trem, recolhendo os trilhos em meio ao mato alto e seguindo para São João Del Rei, sob o comando do ferroviário Francisco Marques Sobrinho, maquinista Carlos Alberto e Luis Henrique (Mamão). Não mais passaria por ali as belas locomotivas da EFOM e a Estação Aureliano Mourão tornou-se condenada ao isolamento.”
Digo “aparente fim”, pois, embora isolada, a estação permanece viva na memória e nas histórias da população local. As narrativas não só rememoram a beleza e eficiência da estação, mas agregam outros elementos do entorno como, por exemplo, contos relacionados ao Rio das Mortes e uma de suas respectivas pontes: a ponte do Inferno.
Conta-se que a “bitolinha” – nome dado a uma das linhas que possuía trilhos em bitola de 76 centímetros – chegava sincronicamente com as outras linhas na estação, fazendo com que o tempo de espera dos passageiros fosse inexistente. Ainda se conta sobre um suposto acidente sobre a pavorosa ponte, na qual vagões e passageiros nunca foram encontrados. No entanto, o imaginário coletivo é apenas um dos fatores que mantém a existência da estação de Aureliano Mourão. Possivelmente, dois outros retardam seu processo de arruinamento: a própria arquitetura e uma figura humana atrelada ao espaço.
Sobre a arquitetura em si, há nítidas semelhanças entre o seu projeto com a antiga estação ferroviária de General Carneiro, em Sabará, demolida na década de 1960. Resgato a estação de Sabará, pois poderia cometer o equívoco em afirmar que a estação de Aureliano fosse a única de formato triangular em Minas Gerais. Contudo, suponho que ela seja o único exemplar remanescente. É possível que o projetista responsável pela estação de Aureliano Mourão tenha se inspirado ou utilizado o mesmo projeto de Sabará. A conformação de ambas parte de um espaço central hexagonal, do qual três estruturas retangulares faceiam, em intervalos regulares, três das arestas desse volume principal. A cobertura do conjunto, em formato triangular côncavo, orienta-se de modo que seus vértices alinham as arestas remanescentes.
Apesar das semelhanças na matriz projetual, as diferenças entre as estações são marcantes. Em Sabará, têm-se uma arquitetura eclética. As laterais da edificação são vedadas, nas quais numerosos portais fazem a conexão entre o espaço interno e externo. Observa-se ainda o emprego de matérias como madeira e ferro no elaborado telhado que possuí como elementos de destaque uma cúpula e um pináculo.
Em oposição, a estação de Aureliano Mourão busca um senso de modernidade. A grande cobertura de concreto é sustentada por uma estrutura superior e colunas de seção quadrada que permitem a existência de uma laje em balanço, ao longo de toda a edificação. Ainda em relação à cobertura, destacam-se três aberturas triangulares, próximas ao hexágono, sob as quais se encontram pequenos canteiros.
Somente a estrutura central é parcialmente vedada, permitindo uma continuidade espacial entre a arquitetura e a paisagem ao redor. Ao adentrar o recinto, observam-se alguns mobiliários disparatados e um belíssimo piso de ladrilho hidráulico com padronagem geométrica que compõem o espaço central com um tablado de madeira. Nas aberturas dessa área e na conclusão das colunas exteriores é que manifesta um rudimentar decorativismo déco.
O edifício não se encontra no melhor estado de conservação. Notam-se trincas, áreas com umidade e improvisos em relação à infraestrutura. Porém, não se deve presumir que o espaço esteja abandonado. Há sutis vestígios que denunciam a presença humana no local. Nos canteiros, ora cercados, encontram-se hortas, algumas galinhas e uma caixa d’água. As poucas portas encontram-se trancadas e, no ponto mais baixo da estação que permite o acesso à edificação, há uma modesta porteira. A impressão é de estar adentrando um espaço privado. E estamos.
O responsável pela manutenção é o senhor Germano que, por autorização da prefeitura, faz da antiga estação a sua residência há algumas décadas. Cada um dos espaços retangulares na estrutura central é um cômodo de sua morada. Num dos cantos encontra-se a cozinha. No outro, o quarto com os antigos banheiros que serviam à estação. Por fim, um espaço de depósito. A grande cobertura se tornou uma garagem. Os canteiros, seu quintal. O receptivo embora discreto morador apresenta sua casa. Ainda assim, é curioso reparar que a área central do hexágono, ao mesmo tempo que se torna uma espécie de hall de seu domicílio, permanece inalterada e aberta a qualquer um que por ali passe.
Próximo ao senhor Germano, um pequeno grupo de homens reside, de maneira fixa, em construções adjacentes a estação. Digo fixa, pois Aureliano Mourão continua sendo um ponto de encontro aos finais de semana de visitantes esporádicos que buscam uma atividade de lazer ou descanso na “prainha” formada pelo encontro do rio das Mortes e do rio Piratingape. Os moradores relatam que, em determinado momento, a área contava com cerca de 300 pessoas formando ali uma pequena comunidade. Havia alguns estabelecimentos, uma escola e uma capela. Equipamentos que surgiram com o intuito de auxiliar a vida ao redor da estação.
As histórias contadas pelo grupo de homens são saudosas e espirituosas. Todavia, uma das histórias revela um certo incomodo por parte daqueles que permaneceram. Foi dito que o esquecimento era tamanho que nem o padre teria voltado à comunidade para rezar a última missa. Acreditam-se que houve um descuido em relação à área pelo poder público. Percepção evidenciada pela demora no reconhecimento da antiga estação como patrimônio cultural. Somente em 2007, a estação foi tombada a nível municipal. Segundo o próprio dossiê de tombamento era previsto que o local se tornasse um ponto turístico a fim de promover o patrimônio cultural da região. Atualmente, com recursos do Fundo Municipal do Patrimônio Cultural – Fumpac de Bom Sucesso, determinadas ações de recuperação da edificação começaram a ser realizadas.
Não há dúvida sobre o valor histórico da estação como patrimônio cultural para a região. Mas o valor arquitetônico da estação extrapola os limites do município. Suponho que, em uma situação distinta, a estação pudesse não mais existir ou não fomentasse tanta curiosidade por parte daqueles que a conhecem. Penso que é o campo, pessoas como o senhor Germano e as memórias vividas que salvaguardam a arquitetura. A estação de Aureliano Mourão não foi esquecida, mas segue escondida, à espera de que novos passageiros a encontrem e prossigam sua viagem.
sobre a autora
Julia Paglis é arquiteta e urbanista (Universidade Federal de Juiz de Fora, 2020). Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP), vinculada à Área de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo.