Quase três meses nos Estados Unidos, minha esposa e eu, visitando as famílias de dois de nossos três filhos (quatro netos) e viajando um pouco. Lembrança dos anos 1970, quando moramos em Cambridge, Massachussets, com dois filhos; o terceiro nasceu depois, em Brasília. Por coincidência ou não, os dois primeiros filhos hoje residem nos Estados Unidos e o mais novo em São Paulo. Em Houston, tenho uma prima brasileira, engenheira aposentada, que trabalhou na Shell e uma amiga equatoriana na Exxon, especialista em procedimentos no campo de recursos humanos. Juntos conversamos sobre as transformações do conceito de shopping center, desde o modelo tradicional das lojas em um grande prédio rodeado por estacionamento à céu aberto ocupando um terreno enorme. A primeira modificação significativa foi das lojas maiores se posicionarem como prédios destacados, mantendo conexão com as galerias de circulação onde se encontram as lojas menores. Ficam separados apenas os prédios para restaurantes grandes (McDonald...), hotel ou clínicas. Hoje ainda existem centros comerciais nesta configuração!
O espaço físico
A gleba de 19ha destinada ao CityCentre se localiza ao lado Oeste do município de Houston, no distrito chamado ‘Memorial’ que abrange a superfície de 2780ha. Hoje possui cerca de 44.000 moradores e uma expressiva população flutuante. Esta área é designada pela prefeitura de Houston como Memorial Super Neighborhood. Aí se encontram partes do Energy Corridor, caracterizando uma faixa que abriga escritórios de empresas de energia elétrica e de algumas das maiores empresas de petróleo do mundo: a Shell onde trabalhou minha prima hoje aposentada e a Exxon onde está a amiga do Equador. Existem espaços verdes públicos e outros residências, de comércio e serviços o que faz o distrito Memorial ser significativo para a cidade de Houston fundada em 1836. Vou chamar a super neighborhood de distrito, pois, ela é uma subdivisão do município e seguir a nomenclatura usual aqui do Brasil chamando suas subdivisões de distritos, setores e subsetores. Assim, o CityCentre (19ha) se encaixa como um ‘setor’, pois ele é parte de um distrito, o Memorial.
A iniciativa para realizar este projeto urbano foi de um grupo de empreendedores encabeçados pela Midway Investors, sediada em Houston e com cerca de cinquenta anos de trabalho no mercado imobiliário. O advogado Jonathan Brinsden, tem sido o CEO desde 2013 e apresenta a Midway como uma empresa de investimento, desenvolvimento, locação e administração imobiliária focada em reinventar, reimaginar e redefinir lugares com ideias ousadas e inovadoras. Apontando para o Citycentre Brinsden afirma ‘nós nunca realizamos um projeto tão grande, com tantas modalidades diferentes de apropriação do solo’. Nesta iniciativa a Midway coordenou a ação de outros grandes investidores. Descobri depois ser o Brinsden um empresário destacado por sua participação em programas sociais e presidente do Comitê Executivo do Urban Land Institute Americas – ULI. Brinsden vez que outra ministra palestras na Texas A&M University e Rice University. Trago estas referências no sentido de identificar no projeto urbano CityCentre pessoas de elevado nível cultural, atuantes no mercado imobiliário. Gente, à frente de ideias sobre espaços que resultam em interessantes programas de arquitetura da cidade. Tudo veio de encontro a minha curiosidade por alinhavar o que deu suporte ao programa de necessidades para o projeto do CityCentre. Consultei pela Internet a plataforma do ULI, Urban Land Institute e encontrei um estudo desenvolvido por Allen Matkins, um advogado e bom conhecedor do mercado imobiliário. Ele trata da articulação entre os interessados, os ‘actors’ como dizem os urbanistas norte-americanos, e da evolução das fases do empreendimento. O terreno foi adquirido em 2004 e o CityCentre foi entregue ao público em 2015.
Com a curiosidade de arquiteto-desenhador procurei entender como foram dispostos os elementos urbanos, as glebas projetadas por diferentes escritórios de arquitetura e os espaços que hoje são lugares interessantes no CityCentre. Veio a certeza de que a boa qualidade encontrada tem tudo a ver com a experiência e escolhas certas feitas pelos empreendedores através de equipes qualificadas de projeto. Foi um processo que resultou na concepção dos tantos espaços físicos que se tornaram lugares quando ocupados pelas pessoas. Particularmente, chamo atenção de meus colegas arquitetos que o plano para a gleba de 19ha não foi da responsabilidade de um único escritório de projetos, mas, das empresas parceiras coordenadas pela Midway. Nos EUA isto é comum e faz este arquiteto brasileiro refletir sobre a questão do projeto de autoria única. Faço lembrar cá no Brasil o caso associado à um grande trecho de terra, sob a jurisdição da Operação Urbana Água Branca, no município de São Paulo, objeto de concurso nacional de arquitetura, que escolhido e premiado o vencedor, o projeto se mostrou impossível de ser implementado; não houve a adesão dos possíveis investidores!
Nas imagens pode-se observar a localização do distrito CityCentre no município. Na primeira, aparece sua posição relativa à área metropolitana de Houston e, na segunda, sua relação com o distrito Memorial. Nesta verifica-se também o contraste de dimensões entre os 19ha do CityCentre – retângulo vermelho – e os 2.780ha do Memorial Super Neighborhood, destacado em verde. O distrito Memorial não deveria ser chamado de neighborhood (área de vizinhança), que é um termo aplicado para trechos por volta de 60ha. Como conceito de urbanismo, área de vizinhança é tema muito discutido nos Estados Unidos, desde a publicação do livro de Clarence Perry (1), em 1929, até recentemente, quando Douglas Farr publica o livro Sustainable Urbanism, em 2008 (2).
A posição do CityCentre é estratégica na confluência das duas vias expressas, a E1 (Sam Houston Toll Road e, E2 (Katy Freeway) que cruzam a cidade de Houston. O acesso ao Citycentre se faz pela via subsidiária que corre paralelo as expressas, aqui denominada via que atravessa A1, e as que cruzam a área A2 e A3. Assim, ao longo de suas divisas o CityCentre fica com acesso seguro desde as vias expressas. O trânsito é direcionado para as vias que distribuem D1, D2, D3, que serão as responsáveis por distribuir a circulação para as vias locais. Utilizo esta classificação, como um procedimento de urban design, desapegado dos preceitos técnicos da Engenharia de Tráfego; uma maneira de entender a cidade voltada para o projeto urbano. Quem se interessar em aprofundar este assunto poderá consultar o e-book, publicado pela editora Anap, Corredores e subáreas: como estudar a forma e projetar a cidade (3).
É possível ver no mapa do empreendimento acima as vias expressas E1 e E2 e as que atravessam A1, A2 e A3, responsáveis pelo acesso interno. Observe-se que é relativamente densa a ocupação do solo, por prédios não muito altos e de média altura. Houston como muitas outras cidades americanas segue a regra que prevê uma maior verticalização no Centro (downtown). Ainda no mapa acima, observa-se nas áreas vizinhas às divisas Leste e Oeste a presença de prédios grandes e um condomínio residencial com muita área vegetada. Espaços onde a densidade de ocupação é bem menor do que acontece no CityCentre.
O lugar
Interessou-me o projeto do CityCentre como um exemplo de empreendimento idealizado para reviver as qualidades da cidade tradicional. Este foi o motivo que inspirou os empreendedores para o projeto: criar um tecido urbano fugindo do clássico shopping center norte americano criado nos anos 1960. Espaços para atender ao comércio de varejo e alguns poucos tipos de serviço. A tendencia atual, como acontece no CityCentre, parte de o projeto experimentar espaços do tipo pedestres na rua. Reviver espaços tradicionais como preconizado pela Carta do Novo Urbanismo de 1996 e pela tendência do urbanismo internacional.
O CityCentre, não é novidade e sim mais um lugar significativo que tive a oportunidade de conhecer, pois, hoje já existem empreendimento deste tipo. Interessou-me o CityCentre pela maneira contemporânea de entender os espaços da cidade e por ser um empreendimento de diversos participantes, coordenados pela empresa que lhe deu origem. Nele destaca-se o estacionamento em garagens como construções subsidiárias discretamente implantadas, sem eliminar vagas oferecidas nas vias públicas. Endosso o princípio projetual, pois, de certa maneira tira partido e valoriza a complexidade do tecido tradicional, particularmente, ser gentil com os pedestres. Fazendo parte de uma cidade, o CityCentre oferece espaços para escritórios, serviços diversos, residências fixas e temporárias associada a hotelaria e pontos de encontro a céu aberto. A mistura dos tipos de uso se associa aos espaços intermediários das calçadas e foram aproveitadas parcialmente vias e quadras existentes, o que possibilitou o ressurgimento de espaços abertos para estar.
Verifiquei tudo isto com o olhar interessado do arquiteto-desenhador, alguém chegado ao projeto em si e aprendi com este lugar. Devido ao seu resultado e a capacidade do fazer voltado para as pessoas, como se vê nas fotografias, que apresentam exemplos de percursos desde o espaço central, mais denso em edificações, até os locais para moradia. No trajeto existem árvores que foram preservadas e alguns cantos agradáveis como lugares para estar.
Pátios, calçadas e a integração dos espaços interior-exterior foram explorados pelo projeto segundo as prerrogativas de bem acolher as pessoas. Uma vez almoçamos em um restaurante aberto para uma pracinha, depois caminhamos por uma calçada parcialmente coberta por uma pérgula que serve para proteger a fachada de uma loja, que é um tipo inspirado nas calçadas cobertas das cidades antigas norte-americanas.
A transição dos espaços se faz de maneira gradual nos 78ha do CityCenter. Passeando as pessoas encontram lugares onde os prédios não são de gabarito alto e tem um tipo de edificação com beirais grandes, apoiados em ‘mãos francesas’. Destacam-se os recantos com parte da vegetação preservada, como critério deste projeto. Nas fotos aparecem exemplos destes tipos construtivos, que remetem a arquitetura das cidades tradicionais.
O passeio chega a pontos onde a densidade de ocupação dos espaços é maior e tem aspecto de cidade grande. Ai é explorada a utilização de tipos onde a relação entre público e privado é mais complexa, mas, mantem-se uma boa articulação entre elas. Continuando a caminhar encontra-se boas calçadas, galerias e conexões entre diferentes construções. Sem haver barreiras para controle você estaciona, vai para os pavimentos de seu interesse através de escadas convencionais, rolantes e elevadores. As fotos abaixo foram tiradas de lados opostos de um conjunto híbrido – atividades diversas – incluindo salas de cinema. Observem o cartaz do filme ‘Ticket to paradise’, estreldo por Julia Roberts e George Clooney. Paineis de boa qualidade anunciando assuntos diversos existem com frequencia pelas passagens para pedestres através do CityCentre.
Os painéis promocionais se espalham pelas ruas e praças, há floreiras nas calçadas bem cuidadas, como coisa comuns nas cidades americanas e em especial neste lugar de pessoas com de elevado padrão socioeconômico. Observar na foto, além dos painéis na praça, a cobertura do prédio. Na outra foto, a qualidade da calçada e o autor deste texto com sua filha dando um aceno para você.
Não existe o fechamento dos terrenos, as vias, calçadas e as pequenas praças se conectam formando um sistema de áreas livres e verdes de boa qualidade. Há logradouros que permitem visuais em profundidade, alcançando os prédios mais altos modo geral localizados no contorno da gleba. Existem pátios e praças, junto a edificações do CityCentre, como aquele defronte ao Hotel Moran, onde o pátio retangular é definido pela via que distribui a circulação paralela ao hotel e as laterais ocupadas por comércio e serviços.
Prédios altos foram implantados principalmente junto as vias E1 e E2 que definem os limites Oeste e Sul da área do CityCentre. Eles se misturam visualmente com as outras edificações do distrito Memorial.
Para finalizar
O artigo se refere a um subsetor da cidade com 19ha de área, cuja dimensão equivale a menos de um terço da área considerada boa para uma vizinhança como sugerido por Clarence Perry (1929). Este é o tipo de paralelismo que costumo fazer para dar a ordem de grandeza da dimensão de um espaço, pois, o CityCentre não tem nada a haver com a neighborhood, na medida que se trata de um projeto para uso diversificado e atividades centrais. Seu objetivo foi atingir um espectro grande da população, da escala do município à internacional atraída pelos negócios ligados ao petróleo e derivados. O projeto tem mais haver com aqueles do tipo híbrido, hoje bem divulgados na esfera internacional.
Esta apresentação do Citycentre foi feita em decorrencia da visita,de conversas com os amigos de Houston e do material consultado depois. Penso que neste momento valem as impressões aprensentadas para vocês pelos apontamentos e através das fotos. O importante é que o espaço se tornou um lugar agradável para se visitar e para quem puder morar e trabalhar perto de casa. Conhecer estes tipos de projeto nos faz lembrar do Brasil, onde deveríamos considerar como se faz projeto urbano em outros países e rompermos com a barreira existente entre a iniciativa privada e o ‘poder público’.
notas
NA – agradeço ao amigo Gastão Santos Sales, pela troca de ideias sobre projetos urbanos, parceria em vários trabalhos e trato das imagens inseridas nos textos que escrevo.
1
PERRY, Clarence (1929). The neighbourhood unit: a scheme of arrangement for the family-life community. Série “The regional plan of New York and its environs”, volume 7. New York, Arno Press, 1974.
2
FARR, Douglas. Sustainable urbanism: urban design with nature. Haboken, John Wiley & Sons, 2008.
3
MACEDO, Adilson Costa. Corredores e subáreas: como estudar a forma e projetar a cidade. São Paulo, Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista, 2021. Disponível gratuitamente no link <https://encurtador.com.br/mxRX9>.
sobre o autor
Adilson Costa Macedo é arquiteto e urbanista (FAU USP, 1964), mestre pela Universidade de Harvard (Graduate School of Architecture and Design – GSD, 1977), bolsa de pesquisa do CNPq para a Bartlett School of Architecture, em Londres, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde atualmente é professor. Trabalha como arquiteto e publicou o e-book Corredores e Subáreas, como estudar e projetar a cidade.