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SUBIRATS, Eduardo. O último artista. Arte popular e cultura digital. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 056.00, Vitruvius, jan. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/508/pt>.

1

Nos recebeu quase desnudo. Empapado de lodo. Agitado. Chegava de um vale próximo, aonde havia encontrado uma fonte d’água depois de várias jornadas de trabalho desesperado. Muito econômico em palavras. Falava de uma terra ressecada e crestada pela interminável seca. “Terra estragada”, dizia. E nessas palavras ressoava uma consciência cósmica. “Antes tínhamos tudo. Tudo estava aqui no monte. Agora tudo está destruído e custa muito trabalho cultivar a terra. Os homens a sujeitaram a um poder falso…”

Deixaram-me impressionado a elegância de sua figura, a textura enxuta e vibrante de sua pele negra, a inflamada energia de seu olhar envelhecido e profundo. Fascinaram-me suas cerâmicas. Animais metamorfoseados, figuras imaginárias, rostos. Encontravam-se um pouco por todas as partes. Presas em estacas, pelos caminhos, escondidas em buracos profundos na terra, quebradas e dispersas na vegetação cheia de ervas daninhas que rodeava sua horta. Em uma choupana, que era seu ateliê, guardava suas melhores peças.

Ulisses Pereira Chaves chamava suas esculturas feitas de terra cozida de “natureza viva”. As concebia como matéria iluminada por uma energia espiritual própria. “Elas nos estão vendo. O que esculpo são suas visões e suas vozes...” Cerâmicas que são metáforas. Mas que, por sua vez, participam do mesmo ser que simbolizam. Nessa unidade de suas figuras de barro e de uma natureza cósmica que as integra, reside seu valor artístico. Nesta unidade se encontra o diálogo dessas cerâmicas com os humanos e com as coisas. Nela se funda sua realidade única e irrepetível. Seu significado espiritual.

Naquele primeiro encontro, me chamou a atenção a insistência de Ulisses no valor educativo e comunitário de seu trabalho artístico. “É necessário criar uma escola de cerâmica para as crianças desta região”, dizia, com gesto de sonhador desesperado. Em sua visão, este objetivo formativo não se restringia à aprendizagem de técnicas. O propósito que formulava era mais a transmissão das memórias culturais através de uma formação artística que compreendia o conhecimento de meios e materiais, mas também uma forma específica de percepção e compreensão da realidade. Ulisses expressava a urgência de recriar estas memórias no meio destas comunidades como uma condição de sobrevivência. Memória como direito ao existir.

Em todas as aldeias que visitávamos, com suas famílias de artistas, que já foram pequenas ou grandes, sentíamos esta mesma presença espiritual. Quero mencionar uma experiência em especial: a “Aldeia Grande” que, na Serra do Cipó, não muito longe da cidade de Belo Horizonte, reúne as nações indígenas da diáspora pós-colonial brasileira, sob a liderança espiritual de Ailton Krenak. É um modelo de restauração de memórias e comunidades históricas. Em torno do canto e da dança, e dos rituais religiosos ligados a essas expressões artísticas milenares, se restituem hoje os vínculos da memória que o colonialismo moderno destruiu em um processo que não parece ter fim (1).

Esta visão profunda que tinha Ulisses da obra de arte, de seu significado misterioso e mágico como “natureza viva”, e de sua função recriadora das memórias culturais, nos levou a uma outra viagem. Em março de 2002, um ano depois de nosso primeiro encontro, atravessamos novamente as serras de Diamantina e o vale do rio Jequitinhonha, no estado brasileiro de Minas Gerais, até chegar à remota aldeia mineira de Caraí, em cujo distrito vive Ulisses. Os protagonistas desta nova aventura eram Lélia Coelho Frotta, a antropóloga que guiava nossa expedição, e Beth Formaggini, uma documentarista dedicada especialmente a temas sociais e educativos, ambas do Rio de Janeiro. Maria Lira Marques, uma artista popular do mesmo vale do rio Jequitinhonha, se juntou também a nossa expedição. E, por último, eu mesmo, um professor mais ou menos conhecido da Universidade de Nova York. Nosso objetivo final, como já mencionei, era o mistério poético de um pássaro azul. Procurávamos por um ceramista que habitava em uma paragem remota e selvagem. E que esculpia em barro os espíritos que povoam o cerrado. Um último artista em um penúltimo paraíso.

A viagem atravessava alguns obstáculos. A vasta região, culturalmente diversa e biologicamente rica em tempos pré-colonais e coloniais, havia sofrido uma dessas secas atrozes, que perduram anos, que assinalam na escala regional os efeitos do aquecimento pós-industrial global. Agravado pelas estratégias locais de desflorestamento, a plantação massiva de eucaliptos, e a conseqüente liquidação terminal da fauna e das fontes hidrográficas da região. O vale do Jequitinhonha atravessava um grave processo de degradação ecológica, com fome e epidemias como suas posteriores conseqüências. Oficialmente havia sido declarada zona de calamidade. Repentinas chuvas torrenciais, só algumas semanas antes de nossa partida, haviam levado de rompante vidas e caminhos.

Mas nosso propósito era uma missão impossível por diferentes razões. Íamos apetrechados com um arsenal de gravadores, máquinas fotográficas e câmaras digitais. Pretendíamos fazer um documentário sobre Ulisses, registrar imagens de suas peças e digitalizar sua memória. Queríamos arquivar o conseqüente vídeo na rede. Um projeto academicamente inatacável. Registrado administrativamente como uma operação de restauração eletrônica de memórias culturais em extinção. Mas sabíamos que nossa empresa se depararia com imponderáveis.

Éramos perfeitamente conscientes de que a conversão digital de memórias culturais significa a eliminação de suas dimensões artísticas primárias. Sabíamos que significava sua subtração comunitária. Era transplantar um mundo de experiências, conhecimentos e símbolos inextricavelmente vinculados a formas de vida milenares, para o sistema de informação eletrônica e para a cultura acadêmica que o sustenta. Pior ainda. Planejávamos uma reprodução digital que levava consigo a conversão de uma cultura oral, e das formas específicas de contato humano e de relação com a natureza que lhe é peculiar, às normas epistemológicas de uma civilização chamada a devastá-las. E sabíamos que tudo isso supunha a desativação de seu sentido espiritual. Nem mais nem menos do que o dilema dos missionários coloniais que, com uma mão destruíam de roldão símbolos, conhecimentos e formas de vida milenares, e, com a outra, transcreviam os restos de suas alquebradas memórias a formatos escriturais, para modificá-las e controlá-las com sistemas de representação e de poder.

Nossa viagem era singular. Atravessava serras e vales remotos ao encontro de um personagem fabuloso. E perseguia um objetivo paradoxal. Queríamos documentar uma concepção artística cujas dimensões espirituais e cognitivas não podiam reduzir-se ao software da indústria acadêmica, nem aos valores da cultura digital. Pretendíamos filmar o que não podia ser filmado. Para tornar as coisas ainda mais inquietantes, eu havia prometido produzir nosso vídeo para o Hemispheric Institute da Universidade de Nova York. Deveria incluir o documentário em seu arquivo digital de performances populares da América Latina. Mil dólares. Metade para fitas da Sony, o resto para o artista.

2

Ao longo de nosso caminho, Maria Lira, a artista popular, nos detinha uma vez ou outra. Descia do automóvel, desaparecia na mata, subia por terraplenos. Logo a víamos longe, remexendo a terra, em busca de grãos e texturas, escavando as diferentes tonalidades das areias, removendo argilas. A seguir, recolhia pigmentos vegetais e os distribuía, junto com essas terras, em diferentes frascos. E repetia este ritual tal como uma possuída. Como se sua coleção, e a conseqüente mistura e transformação dos materiais, fechasse alquimicamente um ciclo cósmico.

Enquanto a observava, recordei minhas próprias rotinas de professor de estética na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Naqueles seminários havia insistido na ocorrência de uma inovação central das vanguardas artísticas do século 20, que as contemporâneas linguagens digitais haviam eliminado sem maiores contemplações. As collages de Schwitters ou as frottages de Max Ernst colocaram em evidência a importância expressiva de materiais naturais e suas características sensíveis imediatas. Significaram uma revalorização espiritual das matérias e de suas propriedades sensíveis. Na Bauhaus de Dessau, Johannes Itten, Paul Klee e Oskar Schlemmer também enfatizaram o caráter simbólico das matérias consideradas em sua imediatez tátil e textural.

Esta valorização expressiva e formal de texturas ou manufaturas, cores e densidades materiais pela arte abstrato moderna estava intimamente associada a uma restituição dos significados criadores e ativos de uma natureza que a civilização tecnocientífica havia subordinado a uma categoria negativa e ontologicamente nulificada. E que a civilização pós-industrial rebaixou à categoria terminal de dejeto biológica e espiritualmente irrecuperável. Para aqueles artistas, sem dúvida, criar significava repetir e estender o próprio processo gerador de uma natureza ativa e da existência humana presente nela. Klee refutou a concepção epistemologicamente sancionada da natureza como realidade objetiva, separada de uma existência humana e reduzida à dimensão discursiva de um sujeito racional tecnocientífico. A obra de arte constituía portanto o meio de realização ou de restauração daquela unidade cósmica primordial que a ciência newtoniana havia eliminado, mas que se manifestava nas expressões da arte chamada primitiva, da chamada arte popular, assim como de algumas formas artísticas tecnicamente rotuladas como psicopáticas ou infantis.

O anti-humanismo pós-estruturalista descartou estas dimensões profundas da experiência artística como um impenetrável reino do irracional, de obscuras raízes místicas não-ocidentais, inteiramente alheio à tradição cartesiana-newtoniana e ao subseqüente conceito plano de modernidade. Em nome deste parti pris se tem deixado de lado uma ampla série de expressões artísticas e cognitivas contemporâneas não necessariamente assimiláveis pelos valores globais do conceito tecno-econômico e financeiro de modernidade. Os pintores associados ao grupo Die Brücke, por exemplo, não se aproximaram à escultura africana porque formalmente se adaptaram melhor ao funcionalismo abstrato da era da máquina do que pudera fazê-lo o naturalismo acadêmico do momento. Contudo, buscavam nesta tradição uma dimensão profunda da existência humana que escapava inteiramente aos paradigmas morais e estéticos do classicismo europeu. De Gauguin a Tarsila do Amaral, a reflexão artística sobre o “primitivo” ou o “popular” se abria como uma válvula de escape de uma cultura ocidental cuja desumanização e autodestruição não cessaram de advertir esses artistas, nem deixou de se aprofundar ao longo de seu desenvolvimento. As dimensões transcendentes da obra de arte africana e oriental, seus significados espirituais ligados à sexualidade, a geração e a morte foram os elementos que precisamente buscavam Picasso ou Bruno Taut, Mário de Andrade ou Antonin Artaud na pintura, na arquitetura, na literatura ou nas artes performáticas. Em seus experimentos e expressões habitava uma mesma vontade de restabelecer um vínculo simbólico entre o humano, a natureza e o sagrado.

O uso habitual e corrente da etiqueta “arte popular” não significa, necessariamente, que exista algo assim como uma definição. Arte popular é mais um fato cultural do que um conceito. No mundo latino-americano, o que a distingue da chamada arte culta, da arte considerada erudita ou da arte tout court não são características estéticas intrínsecas às obras designadas sob este nome. Ao contrário. Antonin Dvorák, Igor Stravinsky ou Manuel de Falla, na música, Federico García Lorca, José Maria Arguedas ou João Guimarães Rosa na literatura, não cessaram de transitar por esse “território proibido”. Da abstração cubista ao teatro surrealista e da Land Art até a Pop Art, as vanguardas, neovanguardas e pós-vanguardas do século 20 não cessaram de repetir e reiterar, freqüentemente com resultados medíocres, aspectos elementares da chamada arte popular, da arte catalogada como indígena ou de uma suposta arte etnológica. As fronteiras estéticas entre o “popular” e o “moderno” têm sido porosas, e seus significados se mesclaram em ambas direções: o erudito com o popular, mas também o popular com o erudito. A música popular brasileira e suas festas de Carnaval demonstram extensos exemplos de incorporação de expressões poéticas, plásticas e arquitetônicas por parte das vanguardas literárias.

A classificação e desqualificação de um gênero específico de obras e expressões artísticas como “populares” não se baseia em categorias estéticas. O que antes de tudo distingue o popular é seu lugar social de origem. Seus objetos procedem de um meio social politicamente colonizado e economicamente depauperado. Não é preciso recordar, por outro lado, que em nossa galáxia democrática a extrema pobreza e a marginalidade são categorias globalmente confinadas sob intransponíveis fronteiras étnicas. A arte popular não é branca. Tampouco cristã. Ou não é suficientemente cristã. Sua secreta relação com uma compreensão mística da natureza, com os cultos de deuses perseguidos e com comunidades economicamente espoliadas a associa, desde o começo do colonialismo ocidental, com a categoria inquisitorial, e mais tarde epistemológica, de superstição. Seu nulo valor mercantil é uma conseqüência de sua sub-valorização artística e intelectual. Como se tudo isso não fosse ainda suficiente, estas obras chamadas populares se inserem em economias não monetárias de subsistência. Museográfica e institucionalmente não se equiparam com a arte propriamente dita. Seus artefatos são normalmente catalogados como instrumentos de cultura material nos campos fechados da antropologia e da história natural. Em concursos artísticos nacionais e internacionais as obras chamadas populares são descartadas ou segregadas em uma categoria subalterna. Sua diferença culturalmente sancionada é negativa. Não se lhes atribui uma dimensão estética propriamente dita. Tampouco se lhes reconhece uma dimensão subjetiva e espiritual autônoma. No melhor dos casos, se aprisiona a arte popular dentro de uma subcategoria de arts & crafts.

Com uma só uma exceção. Sob uma única condição elementar se levantou o status ontológico subalterno da arte popular e se tem aberto as portas do museu: sob os códigos lingüísticos, acadêmicos e comerciais da Pop Art. Um incidente, do qual fui testemunha, talvez esclareça esta ambígua relação.

O caso em questão ocorreu em 1985, no Museu de Arte de Brasília. Neste marco institucional se vinha celebrando anualmente um prêmio nacional de artes plásticas. Mas naquela ocasião o jurado havia descartado uma obra em particular. Era uma escultura em madeira policromada, de dimensões médias, que representava a figura de um animal imaginário através de uma linguagem abstrata. Era notável sua composição colorista, que rompia com os cânones tradicionais da harmonia, herdados do impressionismo, resultando em efeito de grande expressividade. O dinamismo espacial de suas formas era outra de suas poderosas características estéticas. Em suma, era uma obra que chamava a atenção por sua originalidade e por algo que me cativou, ainda que não saiba muito bem como explicá-lo. Era uma obra que contrastava claramente com a anódina uniformidade lingüística dos demais concorrentes, e, ao mesmo tempo, se valia de um repertório formal similar às correntes do neo-expressionismo europeu e americano que naquele momento estavam em voga.

Sem dúvida, havia sido desclassificada e desqualificada. Não custa dizer que nessas situações ninguém explica de maneira aberta as razões que estão por detrás desses vereditos. São dados como inevitáveis e nunca ninguém sabe muito bem como. Contudo, havia a casualidade de que seu autor pertencia a uma tribo amazônica, e em tempos coloniais e pós-coloniais o “índio” carece por definição de história e de individualidade. E, em conseqüência, não é reconhecido como sujeito no sentido transcendente da palavra. Tampouco pode ser autor. É l’autre, empregando outra metáfora do nominalismo racista contemporâneo. E os “outros”, por serem diferentes, não são artistas. Nem aquela obra de arte era uma obra de arte. Ainda que ninguém pudesse dizer que outra coisa poderia ser.

O episódio, sem dúvida, não acabou neste ponto. Após dar seu parecer, um dos membros do jurado, que havia desclassificado a obra em questão, a comprou de seu autor em particular. Nem é preciso dizer que a adquiriu a preço baixo. Mas, além disso, casualmente esse juiz era também um artista. E não só era um artista, mas pintava bananas segundo os códigos sancionados do Pop norte-americano. Suas obras, que se encontravam, lingüisticamente falando, em algum lugar indeterminado entre as latas de tomate de Andy Warhol e as caixas de Kleenex de Tom Wesselmann, haviam sido vendidas abundantemente em uma galeria do Soho de Nova York. Esse êxito comercial lhe proporcionou um nome. E o bom nome lhe havia elevado à condição de juiz. E o círculo mágico se fecha assim.

Certamente, a definição de arte popular é obscura. Confunde-se com artesanato. É prisioneira da categoria de folclore. Foi degradada a um valor ornamental. E as complicações tampouco terminam aqui. Arte e cultura populares têm sido conceitos politicamente problemáticos no contexto da crise civilizatória que a implosão do industrialismo promoveu na Europa do começo do século 20. Sua idealização nostálgica, nos finais do século 19, esteve fatalmente vinculada com um progresso da sociedade industrial que arrasou as memórias populares européias e eliminou as formas de vida tradicionais. Foi esta nostalgia romântica que conduziu os pintores impressionistas dos povoados rurais da Bretagne ou do Languedoc às mais remotas ilhas oceânicas, nostalgia que alimentou um pouco mais tarde o fascínio expressionista pelas culturas orientais e africanas. Mas este mesmo idealismo romântico se precipitou também em uma ontologia vitalista e em uma filosofia de redenção nacional, que deságua nos populismos autoritários do século 20.

A distintiva proximidade da arte popular em relação à natureza, sua fusão com valores religiosos e o arraigamento a um passado que se confundia com a noite dos tempos elevaram as categorias de Volkskunst ou de Alma popular a fundamento de uma identidade nacional opaca e absoluta. Unamuno reivindicou nos últimos anos do século 19 uma arcaica identidade popular hispano-cristã, naturalizada na paisagem. Spengler fundava pouco depois a cultura popular nos laços indissolúveis do sangue e da terra, manifestos nas festas populares, no artesanato ou na arquitetura campesinos. Vasconcelos exaltou um conceito biológico do popular representado por uma raça híbrida hispano-americana chamada a configurar um futuro cósmico das nações latinas. Rapidamente a cosmologia inca, os aparatos tradicionais centros-europeus de influência oriental ou os castelos árabes de Al-Andalus se transformaram em carburante para a confecção e falsificação industriais de novas identidades lingüísticas, raciais e religiosas nacionais, e suas conseqüentes exclusões lingüísticas e sociais.

Esta história negativa do conceito moderno de cultura popular não reside, sem dúvida, nas coloridas danças tirolesas, no canto profundo cigano, ou nos cultos pré-colonais ou pós-colonais à Mãe Terra. A história negativa do moderno conceito populista de cultura reside na sua substantivação e na sua instauração como bandeiras de identidade nacional, como postulados de exclusão lingüística, étnica e religiosa, e como ícones do fanatismo político. Reside no essencialismo nacional-estatal que o atravessou, como já foi dito muitas vezes (2). E reside, sobretudo, em dois aspectos fundamentais que geralmente se deixam de lado. Primeiro, sua codificação como estereótipos que as elites intelectuais e acadêmicas difundiram como as identidades essencialistas dos nacionalismos do século XIX, ou como as diferenças subalternas do conservadorismo pós-moderno de finais do século 20. Mas a história negativa dos Pop-cults se instaura sobretudo a partir dos poderosos meios eletrônicos e institucionais que têm permitido difundir e instaurar estes estereótipos de identidade popular sob a perspectiva expansionista imposta primeiro pelos fascismos europeus e mais tarde pelo neoliberalismo transnacional.

O culto arcaico do Blut und Boden, os vínculos raciais do sangue e da terra, e a idealização de identidades tribais fundadoras da consciência nacional, no sentido em que o defenderam Spengler e Ortega y Gasset, foram algumas das expressões arcaicas desta identidade popular substancial (3). Mas a moderna mediação tecnológica e industrial que permitia implementá-las como efetivo valor absoluto e universal são centrais neste conceito de cultura popular, com suas retóricas de sacrifício, guerra e patriotismo. Goebbels postulou os valores da autêntica alma popular nacional precisamente no contexto de uma discussão sobre as funções dos novos meios industriais de reprodução e comunicação audiovisual: o rádio e o cinema. A autêntica cultura dos autênticos valores do povo definia a autêntica finalidade dos meios técnicos de vanguarda e sua indução global “até a última aldeia campesina” (4). No mesmo sentido, os ícones híbridos da cultura comercial latina, esgrimidos durante as décadas do Postmodernism norte-americano como panacéia ilusória, traçaram uma frágil linha divisória entre a ameaçada sobrevivência política e social das culturas latinas das Américas, e as estratégias do “multiculturalismo hegemônico corporativo ou governamental” (5).

A síntese de um historicismo essencialista, fundamental e fundamentalisticamente simulador, por um lado, e os simulacros da indústria cultural, por outro, fecha um círculo mágico. E no centro deste círculo se levanta o kitsch como a forma expressiva de sua falsidade histórica. Certamente, o conceito de kitsch é complexo. No contexto da Pop culture e do Postmodernism tem sido novamente legitimado em nome de uma dupla redução. Tem sido contemplado formalisticamente sob a perspectiva esteticista da montagem semiótica, do hibridismo lingüístico ou do pastiche simbólico, e sob o complementar princípio populista segundo o qual tudo o que se consome de forma massiva é popular e, portanto, democrático. Ou seja, se legitimou o kitsch porque é a manifestação acabada de um design lingüístico altamente formalizado e completamente vazio de referentes e de experiência, pois já são paraísos híbridos da Coca-Cola ou dos slogans fundamentalistas da Guerra contra o Mal. O kitsch é a autêntica expressão estética da cultura democrática na era de sua desconstrução performática como evento eletrônico e como espetáculo acomodado.

A crítica ao esteticismo fascista feita por Walter Benjamin coloca uma visão interessante sobre este fenômeno moderno e pós-moderno. Kitsch é a representação virtual da individualidade irredutível do objeto artístico através daqueles mesmos meios de sua produção e reprodução técnicas que a suprimem no final das contas. Este caráter fictício e falso da individualidade tecnicamente performatizada se reverte em duas características elementares, de acordo com essa mesma crítica: a “pobreza da experiência” que pressupõe e induz, e o predomínio do “aparato”, ou seja, das superestruturas técnicas e organizativas que intervém na performatização da obra de arte e de suas linguagens estereotipadas (o que compreende desde os softswares até a administração acadêmica ou mercantil da crítica, sob qualquer de suas especialidades).

O meio no qual Benjamin expôs esta crítica da banalização da experiência na sociedade industrial foi o filme (6). O caráter singular e irrepetível da interpretação e do intérprete teatrais é substituído no filme pela montagem, ou seja, pelo aparato, no duplo sentido de um deus ex machina e do sistema técnico de produção do real, como foi definido pelo cinema soviético de vanguarda de Eisenstein ou Vertov (7). Com isso a reprodução técnica anula aquela unidade intelectual e expressiva da interpretação através da individualidade única e irrepetível do ator, fato que definia o significado artístico elementar do teatro. Só que esta supressão técnica da aura individual da obra de arte tem sido precisamente o ponto de partida da indústria do cinema, que a recupera ato contínuo como performance virtual do heróico, como ficção do sagrado, enfim, como aquele espetáculo global que confere à indústria cultural moderna e pós-moderna a imagem de uma “fábrica de sonhos”, para usar a delicada metáfora de Ilja Ehrenburg (8).

Mas Benjamin não utilizou apenas a comparação entre o teatro tradicional e o filme moderno para reconstruir a pobreza da experiência como categoria estética central da cultura industrial. Esta crítica da pobreza estética está programaticamente ligada aos manifestos do funcionalismo e do Movimento mudança política e civilizatória. Colocava à luz a transformação do poder político em um fenômeno estético e virtual através dos meios técnicos de sua reprodução e difusão técnicas. Cultura industrial, racionalização técnica e comercial das linguagens, e empobrecimento da experiência fechavam um círculo maldito. E a este círculo Benjamin definiu como o fascismo moderno. Não tenho que recordar que este momento central e explicitamente formulado como programático no famoso ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica foi amplamente escamoteado pela crítica pós-moderna, dadas suas implicações conflitivas com as novas formas de poder totalitário que atrapalhavam seus sonhos narcisistas de paraísos eletrônicos. A partir do horizonte delineado pela crítica estética de Benjamin, o fascismo é um novo sistema totalitário de dominação surgido a partir da implosão dos meios técnicos de comunicação; mas um sistema esteticamente perfomatizado precisamente como cultura popular, seja sob os valores essencialistas do sangue e da terra, seja sob as linguagens populistas do kitsch industrial.

Esta crítica política do kitsch não era nova. Schinkel e Schiller a haviam adiantado em outras palavras: como a visão negativa de uma futura civilização que eliminaria a experiência artística em nome de uma racionalização estética da organização industrial da existência humana. Morris introduziu a mesma crítica do empobrecimento estético da sociedade industrial em uma perspectiva socialista e humanista. Nietzsche viu na bravata e na trivialização da tragédia grega, presentes nas últimas óperas de Wagner, uma antecipação da síntese do mau gosto e dos genocídios industriais que caracterizam a história européia do século 20, e não somente a européia, e não somente a do século 20.

Mas nem tudo é sombrio nas expressões da arte popular da sociedade industrial e pós-industrial. Alguns aspectos elementares colocam em evidência contrastes iluminadores entre os valores da Pop Art, as estratégias da Volkskultur nazista ou do populismo do realismo social. De Mickey Mouse a Ronald McDonald, o kitsch industrial se implantou como um novo realismo estético e eixo configurador da vida cotidiana (9). De acordo com um juízo amplamente compartilhado nos círculos acadêmicos pós-modernistas, as latas de tomate e o sexappeal das banheiras do Pop haviam emancipado a sociedade capitalista tardia das coerções de uma cultura superior já muito degradada em derivados comerciais de óperas e concertos clássicos, que funcionam como entertainment e relax. Esta efetiva função, que poderíamos chamar de socializante e emancipadora, a faz compartilhar amplamente da galáxia Pop com as promessas de redenção da decadência burguesa através do kitsch soviético e nacional-socialista. Os ícones nacionalistas foram outra constante na produção cultural dos totalitarismos europeus do século 20. Sem dúvida, de Tom Wolfe a Jasper Johns, estes símbolos patrióticos constituem também um motivo fundamental do Pop. A “ilimitada distribuição” dos cânones do desenho comercial se elevou igualmente a demonstração final da popularidade do Pop (10). Mas este era precisamente a velha máxima nacional-socialista e comunista segundo o qual somente suas antenas de rádio e seus símbolos poderiam chegar efetivamente até a última aldeia campesina.

Contudo, é preciso considerar uma diferença: a ironia que atravessa a todas as manifestações da Pop Art, sem exceção, desde as máquinas de guerra de Jean Tinguely às representações da felicidade doméstica de Richard Hamilton, passando pelo manifesto antiarquitetônico de Robert Venturi. Essa ironia lhe distingue ostensivamente da rigidez militar e da seriedade monacal de fascistas e social-realistas. Claro que não se pode ignorar que essa celebrada ironia acobertou o absurdo de representar uma caixa de detergentes como um objeto mágico ou de elevar uma bandeira nacional de acrílico a uma patética categoria do sublime. E de legitimar com isso sua devastadora proliferação como princípio único formador das expressões estéticas em todos os malls e suburbios de um recolonizado Terceiro Mundo. Tampouco é imprescindível lembrar que no final das contas esta ironia não cumpriu mais o objetivo precisamente oposto que perseguia a estética do shock do Dadaísmo. Se este tentou desmistificar os ícones e os mitos do poder com atos vulgares de violência artística, o Postmoderntratou logo de ressacralizá-los nos salões de uma cultura integralmente acomodada, entre suspiros de tédio e cínicos sorrisos.

Outros aspectos distinguem ainda o Pop. Sua pose iconoclasta é um deles, como o é também seu ecletismo estético, o seu credo anti-essencialista, e seu espetáculo multiculturalista, enfim, sua gesticulação neovanguardista. O Pop deve ser entendido neste sentido como uma renovação sui generis da revolução estética das vanguardas européias e americanas anteriores a 1945. Transformou a revolutión surrealiste na retórica do espetáculo (Andy Warhol), reduziu o anarquismo estético dos dadaístas berlinenses a uma técnica de reclame comercial (Roy Lichtenstein), reintroduziu a experimentação formal das vanguardas históricas européias através de um bazar de linguagens mediáticas recicladas (Robert Rauschenberg), e trocou a crítica revolucionária da arte como reino separado da beleza em um culto do “folksy” e do trivial, sob o princípio realista do consumo, e sua transcendência espiritual sob a unidade acabada do fetichismo mercantil e pornográfico (Tom Wesselmann, Eduardo Paolozzi, Allen Jones, etc., etc.) (11).

O Pop elevou um conceito de popular ao mesmo tempo despojado de suas memórias e de suas formas de vida, e o esvaziou daquelas dimensões profundas da experiência artística não redutíveis às modernas epistemologias hiper-tecnológicas ou às ontologias deconstrucionistas dos simulacros mediáticos. E o fez inclusive ali aonde roçava as fronteiras das culturas chicanas, latinas ou afro-americanas, ou seja, nos borderlands do colonialismo pós-industrial. Subtraiu as formas de vida e as memórias ligadas ao popular com recicladas categorias coloniais de mestiçagem ou hibridismo, cujo denominador comum tem sido invariavelmente a redução da experiência estética a uma sintaxe formalista e a exclusão programática de qualquer dimensão espiritual. O Pop é a transição da cultura artística moderna, definida por artistas como Picasso, Schoenberg ou Guimarães Rosa, à trivialidade eletrônica da cultura digital.

Nenhuma destas categorias correntes do popular assume seu caráter de legado e de sobrevivência de conhecimentos, técnicas e formas de vida muitas vezes milenares. Poucas vezes as aproximações estéticas ao popular assinalaram o significado civilizatório de seu prolongado choque com a expansão colonizadora da sociedade industrial e pós-industrial. Não se insiste suficientemente no papel central que as diferentes expressões do popular desempenharam na crítica da modernidade, veiculadas por artistas e intelectuais tão distantes entre si, mas tão centrais no pensamento moderno, como é o caso de Ernst Bloch e Mário de Andrade, passando por uma infinidade de pintores dos três continentes, pela música de vanguarda, ou pela teoria crítica da civilização industrial.

Muitos devem ser os caminhos que permitam reposicionar a autonomia cultural e política destas culturas populares, e resgatar seus significados tanto estéticos como comunitários. Um deles, no qual quero me deter brevemente, assinala as filosofias hermenêuticas da Ilustração, e de uma maneira particular, alguns motivos da filosofia da cultura de Johann Gottfried Herder ou de Giambattista Vico.

Vico descobriu que as fábulas e os mitos se encontravam nas origens históricas do que as filosofias da Ilustração entenderam como civilização. E afirmou que só a partir destas tradições antigas, que se confundiam de forma precisa com as memórias e conhecimentos poéticos, poderia se compreender histórica ou hermeneuticamente a nossa própria cultura moderna. Um dos motivos centrais da argumentação de Vico contém, além disso, um interesse imediato no contexto de nossa discussão em torno da estética do popular. Trata-se de sua teoria da metáfora. Ao contrário da retórica escolástica, que definia formalisticamente a metáfora a partir de uma estrutura lógica da linguagem, Vico recordava sua origem na “natureza simpatética” inerente aos saberes mitológicos antigos. A metáfora, considerada como a forma mais elementar da expressão artística, manifestava, em primeiro lugar, a origem mimética da linguagem como expressão de uma relação animada do humano com as coisas (12).

Herder escreveu a partir de uma perspectiva similar. As memórias das culturas antigas, suas lendas e conhecimentos, “tem se refugiado voluntariamente, ao longo do tempo, nas poesias de pastores, camponeses e pescadores, ou seja, naquelas sociedades nas quais a natureza inocente podia reinar sem necessidade de uma arte política” (13). Esta “natureza inocente” (um sugestivo conceito quando se é considerada da perspectiva contemporânea da destruição completa do ecossistema planetário) é o mundo animado dos mitos antigos e das lendas orais. E o valor da filosofia da cultura de Herder reside não somente no reconhecimento destas formas de conhecimento da natureza e da existência humana, mas também em mostrar que constituíam os fundamentos poéticos nas quais se assentavam as culturas européias. A partir de seus legados se havia originado a gaia ciência dos gregos e dos árabes, segundo descreve em suas Briefe zur Beförderung der Humanität [Cartas sobre o desenvolvimento da humanidade]. E foi a partir destas formas sofisticadas de expressão e de pensamento radicadas na Grécia antiga ou no Al-Andalus medieval que os povos bárbaros da Europa evoluíram até as formas de civilização artística e filosófica do Renascimento.

Esta valorização das tradições culturais, que o racionalismo ilustrado em um primeiro momento e o positivismo mais tarde desprezaram como insignificantes, não deve ser compreendida de modo algum de uma perspectiva evolucionista ou progressista que esta mesma tradição racionalista e tecnocientífica herdou do provindencialismo apocalíptico cristão. A revelação feita por Vico das culturas, dos cultos e dos conhecimentos da humanidade antiga estava atravessada por uma veemente crítica desta construção linear do tempo histórico. E Herder falou expressamente da idéia de progresso da humanidade como um engano. Ao contrário dos enciclopedistas franceses, chamava de perfeição humana e cultural ao cumprimento não de uma ordem temporal virtual, resultado da progressiva domesticação da natureza humana, mas àquilo que um indivíduo humano ou uma cultura deveriam e poderiam ser por si mesmos, de acordo com um radical princípio de autonomia das diferentes culturas e de seus respectivos meios de expressão e reprodução (14).

Este reconhecimento da pluralidade das culturas como formas de vida históricas existentes por direito próprio não é equiparável, contudo, ao conceito ilustrado de tolerância. Desde o colonialismo europeu do século 18, o princípio jurídico de tolerância significou a equiparação de todas as culturas a um mesmo padrão racionalista como condição de sobrevivência de seus membros, reduzidos à categoria abstrata de sujeitos lógicos e indivíduos econômicos. Tampouco significa um multiculturalismo aberto às diferenças entre as civilizações históricas a ponto de reduzi-las a sistemas lingüísticos, ícones e textos, e, ao mesmo tempo, fechado às condições ecológicas, às formas de vida e às formas materiais de produção subjacentes a estas diferenças simbólicas. O conceito de cultura de Herder compreende, pelo contrário, as memórias dos povos e suas expressões artísticas como um momento indissolúvel de suas formas de vida e de sua sobrevivência. É importante recordar que tanto Herder como Vico compreenderam a fundamental interação entre a memória cultural e a constituição do ser histórico dos povos. Ambos construíram um conceito de cultura que não se deixa reduzir a uma estrutura formal de representações segregadas da comunidade humana, de suas práticas políticas, ou de seus meios de produção e sobrevivência. É uma compreensão cultural ou civilizatória que integra os aspectos produtivos e reprodutivos da vida cotidiana, com os cultos religiosos e as linguagens metafóricas, e une os conhecimentos técnicos e produtivos com os valores expressivos, como um todo integrado e indissolúvel. E que nesta mesma medida permite inserir a criação artística como elemento central e inseparável dos saberes, técnicas e formas de vida de uma comunidade histórica determinada (15).

3

Em algum momento nossa viagem chegou a seu destino. Ulisses nos recebeu solenemente. Nos ofereceu sua casa. Respondeu a nossas perguntas. Mostrou suas cerâmicas. Mas ao inquirir sobre seu processo criador nos espetou brutalmente: “Vocês não acreditam em deus!”

Segundo o testemunho de Lélia, que ao longo de uns vinte e cinco anos assistiu às suas agruras e às de sua família, e catalogou e promoveu seu trabalho artístico, Ulisses havia sido vítima durante quase um ano dessas missões evangelizadoras corporativamente patrocinadas com o propósito de fragmentar religiosamente as comunidades africanas e indígenas da América Latina, e facilitar sua colonização pelos valores éticos do capitalismo global. “Não me fariam essas perguntas se acreditassem em deus”, repetiu para nossa consternação. Sem dúvida, não sentíamos que esse nome de deus tivesse sido invocado como uma instância dogmática e punitiva, ou como um princípio autoritário e excludente de identidade ligado a qualquer tipo de privilégio metafísico ou social. O deus de Ulisses parecia estar mais próximo da substância de Spinoza do que do “Único e Verdadeiro” dos catecismos da propaganda cristã. Deus como o ser que subjaz e sustenta aos existentes, sejam eles humanos, animais ou coisas, sob a indissolúvel unidade do sagrado, cuja expressão mais autêntica é precisamente a obra de arte. “Se acreditassem em deus – nos acabou exortando Ulisses – vocês não  estariam aqui, me perguntando se podem ou não podem reproduzir estas peças ou minhas palavras. Se realmente acreditassem, caminhariam mato adentro e escutariam às árvores, aos sapos e às pedras, e lhes falariam, como eu lhes falo. E aprenderiam a escutar a estas figuras vivas que eu faço com o barro e com minhas mãos”. E em duas palavras resumiu o processo criador da obra de arte como o ato que fechava a criação divina do universo na unidade harmoniosa do cosmos.

Ulisses nos mostrou uma escultura que constava de três patas de mamífero, o tronco e a cabeça de uma rã, e outras duas cabeças, de pássaro e de serpente respectivamente, que emergiam de suas costas. “É a Metamorfose”, esclareceu. De fato, um híbrido, a metade pássaro ou réptil, e a outra metade um vegetal. Era um imaginário animal protéico com rostos antropomórficos. “Estão vivas e falam” – acrescentou, aludindo às múltiplas cabeças. “Suas vozes são as dos animais e das plantas que me falam, e a recordação que tenho dessas vozes em meus sonhos”.

Nas palavras de Ulisses, a forma destas esculturas está animada por uma vida espiritual própria. Mas esta percepção animista da obra artística não deve ser considerada nem como uma projeção subjetiva, no sentido em que o imaginava a psicologia positivista, nem tampouco ser reduzida às categorias de dinamismo espacial e transformação formal do que constitui a expressão popular por antonomásia da indústria cultural moderna: os animated cartoons de Disney. Representação sobrenatural tampouco é um conceito apropriado. Ulisses não parte de uma natureza objetivada com obediência às categorias mecânicas da física newtoniana, e por decorrência é completamente alheio à concepção complementar de uma natureza segregada como realidade transcendente. Suas esculturas devem ser mais bem compreendidas como expressões daquela “força” ao mesmo tempo física e espiritual que as filosofias tecnocientíficas recusaram da experiência cognitiva a partir da teoria do conhecimento de Bacon e da física mecanicista de Newton. São expressões daquele princípio energético e misterioso que constitui o centro da experiência chamânica do real, dos rituais religiosos antigos e da contemplação estética em um sentido rigoroso. Por outro lado, esta compreensão animada da realidade remete à estrutura de uma experiência profunda que envolve ao mesmo tempo os extremos da observação objetiva e a experiência religiosa. “São palavras invisíveis”, dizia Ulisses a propósito de suas esculturas. Sua reiterada insistência no secreto, no imaterial e no invisível tem que ser vista como alusões a uma experiência contemplativa que esbarrava na visão mística.

Poderia-se dizer que suas figuras de barro são ídolos. Mas correríamos o risco de devolver a esta palavra os significados que lhe foram incutidos pelos tribunais da Inquisição, e que o positivismo científico vetou um pouco mais tarde. Suas figuras são ídolos porque seu significado não reside em sua forma imediatamente perceptível pelos sentidos, nem tampouco em sua estrutura lingüística ou em sua realidade performática, como pretendia Platão em seu mito ilustrado da caverna idolátrica e em sua teoria do eidolon. E como o nominalismo mediático do espetáculo e do consumo pós-modernos assumem sem maiores sutilezas. O valor artístico destas figuras se encontra do outro lado do formalismo esteticista e do nominalismo lingüístico inerentes a nossa civilização mediática. Ulisses dizia que suas esculturas falavam. Seu significado profundo não reside em seu aspecto visível, mas em suas vozes. E as vozes que pronunciam os seres que não falam nunca podem ser somente sons. Constituem uma imagem intelectual e nas tradições da mística oriental ela tem sido definido com uma série de metáforas que aludem ao transcendente. Remete-se a uma intensidade espiritual e emocional secreta. Pertence à esfera do sagrado.

A propósito da abstração formal das esculturas da arte tradicional africana, o poeta e crítico expressionista Carl Einstein formulava em 1915: “o que aparece como abstração é natureza imediatamente dada”, é “o mais intenso realismo”. Só para completar, seguindo a fórmula, diríamos que esta abstração realista ou o realismo abstrato desta arte chamada primitiva não procurava em nenhum momento um efeito plástico, muito menos uma dimensão representativa ou performática. Sua eficácia emocional e existencial residia em uma percepção intuitiva, espiritual e interiorizada. Por isso Einstein recordava: “os ídolos só deveriam ser adorados na obscuridade” (16).

Esses ídolos não são representações “separadas” de uma natureza “mágica”. Não são construções de uma realidade lingüística autônoma. Não são ícones. Sua matéria e sua forma são em si mesmas uma experiência profunda da vida e da morte, dos ciclos cósmicos e da experiência do sagrado. Sua força expressiva não é uma dimensão agregada à sua realidade material tangível. É imediata. Se sente e se apalpa como algo anterior na ordem temporal e da experiência à constituição discursiva da representação. Isso foi entendido precisamente pelos artistas modernos como Kandinsky e Schoenberg, para quem a tonalidade colorística possuía em sua materialidade artesanalmente criada uma dimensão espiritual própria que a nova arte devia resgatar. E também compreenderam artistas como Itten ou Dubuffet, que na imediata materialidade das cores e texturas descobriram o meio de uma intensidade cognitiva e expressiva desconhecidas pelas correntes naturalistas e impressionistas que lhes precederam. Nessa unidade dos elementos materiais mais simples e em suas dimensões expressivas e espirituais repousam precisamente o conceito moderno de abstração. Uma abstração que não se reduz a uma fórmula matemática. Mas sim um conceito de abstração que, tanto para o artista chamânico como para a estética do expressionismo do século 20, não se opõe à realidade mais concreta de nossa experiência cotidiana das coisas, mas à sua trivialização esteticista, que o século 19 celebrava sob o academicismo naturalista e nas últimas décadas do século 20 se tem aplaudido em nome do hiperrealismo digital.

Ulisses nos mostrou em certo momento uma cabeça antropomórfica. Disse que era o Apocalipse porque em seus sonhos via este rosto quando pensava no fim do mundo. Chamou-me a atenção a semelhança dessa peça com algumas máscaras africanas que guardava em minha memória. Certamente os materiais e as linguagens eram diferentes. Mas as esculturas de Ulisses respondiam a uma mesma pureza de meios, a uma intensidade formal similar, com idêntico rigor compositivo e uma mesma concentração expressiva. Apesar de seu realismo, a figura daquele “Apocalipse” era abstrata. E isso é também o que queria dizer Einstein sobre a arte africana e sua centralidade na estética dos expressionismos europeus modernos. Seus traços mais sensuais e tangíveis, como pode ser o erotismo das formas ou a vibrante rugosidade das texturas, são, ao mesmo tempo, abstratos porque transmitem uma intensidade emocional e espiritual imediatas e, portanto, puras. Ou, para dizer de forma mais exata, são expressões não mediadas por uma função performática. Por isso são ídolos. Porque são objetos dotados de uma força por definição invisível.

Em seus ritos de iniciação, os chamãs são obrigados a aprender a linguagem dos animais. A “descida dos espíritos” acontece precisamente como um canto em público no qual o futuro chamã emite os uivos ou rugidos, gemidos e bufos de diferentes animais, para consternação da audiência. Esta linguagem sagrada dos animais possui também um caráter oracular (17). E também as lendas de animais que falam como humanos e de humanos metamorfoseados que se expressam na linguagem dos animais se reiteram profusamente na literatura oral e nas tradições populares de América Latina. O artista brasileiro Joel Borges é o autor de um esplêndido livro de gravuras e poemas cujo título se refere a essa idade de ouro: No tempo em que os animais falavam, segundo relatam as lendas populares da região do Ceará. O pintor Francisco Toledo representou este mesmo intercâmbio entre uma natureza animista e uma humanidade espiritualizada, em uma série de gravuras e ilustrações de contos tradicionais zapotecos. Outros muitos exemplos podem ser citados neste sentido.

Em nossa última visita, Ulisses nos mostrou uma peça de porte impressionante. Contava com um braço alargado que descrevia uma forma oval sobre uma base esférica e em cujas extremidades afloravam uma série de pequenas cabeças antropomórficas. Iconograficamente era uma variação do motivo da árvore da vida, um motivo que se repete profusamente nas culturas antigas e populares de América Latina até a dia de hoje. Lélia me sugeriu serem vestígios rituais das culturas africanas ou mais especificamente da lenda da árvore sagrada Iroco, considerada como um orixá nos cultos afro-brasileiros, e que possui poderes mágicos e propicia desejos, mas que, contrariado, pode causar grandes danos aos humanos (18). A base desta escultura tinha forma de cabaça, que na tradição indígena é o receptáculo do sagrado. Desta base se desprendia um ramo arqueado, e dela, as cabecinhas ou máscaras antropomórficas. “Não ouvem suas vozes? E o quê eles estão dizendo?”, nos perguntava Ulisses.

Com estas observações não pretendo defender um vitalismo estético o um misticismo sui generis. Entre outras coisas porque o vitalismo e o misticismo foram amplamente estereotipados nas culturas mediáticas do século 20 como complemento dos processos de racionalização industrial e banalização comunicativa, e condicionados ao empobrecimento sensorial, intelectual e espiritual que acompanha o processo. Não quero tampouco me aproximar nostalgicamente de um último artista da selva para radicalizar ainda mais a viciosa construção acadêmica do popular como alteridade imaginária das orgias de cinismo burocrático que define institucionalmente a produção artística classificada como pós-moderna. O que me parece importante é assinalar uma forma específica e profunda da experiência artística. E de fazê-lo através de uma obra que não é nem mais nem menos popular do que a de Juan Gris ou Käthe Kollwitz. Além disso, me parece importante chamar a atenção sobre os nexos entre uma arte como a que realiza Ulisses, e determinados artistas e correntes modernos marginalizados pelas predominantes epistemes tecnocêntricas, assim como pelos populismos comerciais das neo-vanguardas e pós-vanguardas do século 20. Não destaco estes pontos de encontro como coincidências conjunturais, mas os considero como uma comunhão programática de princípios filosóficos ou cosmológicos.

Um breve parêntese sobre a experiência mimética talvez possa nos aproximar de uma maneira mais precisa desta dimensão “viva” e “invisível” que as esculturas de Ulisses pretendem. Mimese se confunde com a categoria de imitação. Ela tem sido definida como reprodução naturalista da natureza ou do real. Dentre os equívocos que rodeiam as definições modernas da experiência mimética, o mais comum consiste precisamente em subordiná-la a um conceito de objetividade que na realidade é constitutiva da física newtoniana e da epistemologia kantiana, mas não do “realismo” artístico em um sentido suficientemente amplo da palavra, que serve para compreender a escultura japonesa do período Heiam ou a pintura do Renascimento italiano. Sem dúvida, é sob este princípio de objetividade naturalista e mecânica que Apollinaire e a crítica cubista e pós-cubista condenaram programaticamente a “mimese”. Mais ainda. Grande parte do racionalismo estético identificado com o Movimento Moderno, o funcionalismo e o construtivismo do século 20, se desenvolve precisamente desta interpretação insípida da mimese como reprodução naturalista.

A experiência mimética não pode ser definida como uma cópia, uma duplicação ou uma simples imitação da natureza. Mimese não significa uma reprodução intelectual, manual ou técnica do real. E não pode sê-lo porque histórica e cognitivamente a palavra mimese designa uma experiência anterior à constituição desta natureza como realidade objetiva e portanto separada de nossa própria existência. A experiência mimética se remonta necessariamente a uma relação com a “natureza” anterior à separação discursiva entre sujeito e objeto; e anterior ao desencantamento da “natureza”, primeiro sob os auspícios da filosofia agostiniana da culpa, e mais tarde sob a construção mecanicista do universo newtoniano.

Devemos à teoria da linguagem humana no paraíso, de Walter Benjamin, uma definição desta mimese. A filosofia da experiência artística da natureza de Dewey aborda a mimese sob uma dimensão semelhante (19). Os ensaios de Paul Klee oferecem uma explicação dos caminhos da percepção da natureza sob esta mesma orientação. Mas é a Farbenlehre (Teoria das cores) de Goethe a que arroja uma construção epistemológica mais sistemática e mais ampla para a compreensão desta experiência mimética. Quero destacar a este propósito um aspecto muito simples: a compreensão do sujeito da percepção, o ato de perceber e seu objeto, ou seja, a luz e a cor, como três momentos dinâmicos de um processo interativo, não como instâncias lógica, epistemológica e fisicamente separadas do processo constituinte do conhecimento objetivo. “O olho tem que agradecer sua existência à luz. A partir de indiferenciados órgãos auxiliares animais, a luz acabou gerando um órgão próprio que não tem outro igual...” (20). As cores existem para o olho, porque o olho humano se desenvolveu no meio da luz e da cor, e este enunciado de Goethe evidencia que a percepção mais simples do mundo que nos rodeia, que é um mundo de luzes e cores, entranha necessariamente uma comunidade ontológica de todos os seres. Mimese é a experiência humana do existente no meio desta unidade ontológica que compreende a ambos. Mas expressa também a dimensão espiritual que atravessa esta continuidade ontológica.

Nesta sumária revisão conceitual desejo mencionar um dos cumes da cultura européia: a obra de Ibn ‘Arabi. De fato, a explicação mais precisa de uma experiência criadora como a que nos relatou Ulisses só podemos encontrar na obra deste filósofo e místico. Tratarei de resumi-la brevemente. Para Ibn ‘Arabi, a criação artística (takwín) é uma experiência na qual se manifesta uma dimensão arquetípica do ser. Sem dúvida, esta experiência arquetípica não é uma construção lógica originária no sentido do idealismo transcendental. Não pressupõe a atividade constituída ex nihilo de um demiurgo, gênio criador, o sujeito artístico ou intelectual equipado com poderes constituintes mais ou menos absolutos, no sentido em que foi concebido pela arte moderna de El Lissitzky a Andre Breton. Ao contrário, Ibn’Arabi concebia o mundo físico como uma realidade dinâmica animada por um princípio espiritual autônomo. Sua teoria da criação partia de um artista que não estava talhado sob o padrão do demiurgo cristão-platônico, ou seja, sob o princípio originário que manipula o real sob seu poder divino, artístico ou lógico. Na concepção filosófica de Ibn’ Arabi, este artista assumia melhor o papel “passivo” da contemplação do ser que se revela nas coisas. E o ato criador significava para ele uma experiência contemplativa na qual se manifesta a possibilidade do ser inerente ao existente. Esta experiência reveladora se encontra próxima de um nada originário, mas entendido em um sentido afirmativo como reconhecimento da possibilidade invisível e oculta deste ser das coisas (21).

O enunciado de Klee, segundo o qual a arte não representa o visível mas que faz visível a realidade invisível e profunda do ser, se encontra muito próxima desta concepção mística (22). Nas artes performáticas do Japão, a mimese (modoki) é considerada em um sentido próximo, como compreensão hermenêutica da origem, e se relaciona com as funções do intérprete e do demônio (23). Esta categoria também se aproxima mais à compreensão da experiência criadora de Ulisses do que aos conceitos modernos de imitação como reprodução fotográfica ou digital do real.

O barro é o material que Ulisses utiliza em suas esculturas. Mas este barro é a mesma terra que lhe dá sustento. “Utilizar” não é a palavra adequada, uma vez que essa terra não é apenas um fato utilitário. Não é um instrumento. É terra fértil. É o fundamento material de seu ser. É o princípio inerente a todos os seres, animais ou vegetais que o rodeiam. Em suas obra o artista revela uma parte das potencialidades dessa terra. Por isso o processo formal que se cristaliza no objeto artístico não pode descolar-se de uma “natureza” externa, muito menos se opor a ela. Por isso o processo criador presente nesta experiência artística não pode assumir um conceito objetivo do real. Por isso o conceito estético de representação não se aplica a este processo criador. E por isso tampouco se aplicam as categorias interinas de realismo ou abstração. A criação da obra de arte é antes de tudo uma extensão do próprio ciclo de criação da terra, da matéria ou da natureza. Não a reproduz em uma segunda realidade sui generis: um reino transcendente da beleza ou da realidade prenhe de simulacros. É uma extensão dos ciclos de criação da natureza, que ao mesmo tempo lhes dá um significado espiritual compreensível a nossa experiência. Ciclos nos quais não se podem traçar-se limites precisos entre geração material da terra e criação artística propriamente dita, entre natureza e espírito, nem entre a obra de arte e a existência humana. Esta continuidade indefinida que vincula a natureza e a obra de arte é o processo criador.

Ulisses contudo nos fazia ver algo mais. Nos mostrava suas esculturas não como um produto acabado; não como um objeto no sentido epistemológico, técnico e mercantil da palavra. Suas cerâmicas, pelo contrário, se acham imersas em um processo perpétuo de mudança, onde as mesmas formas fixadas no barro metamorfoseavam seu significado, e os próprios significados mutantes transformavam virtualmente suas formas. É justamente a esse processo indefinido de diálogo e de mútua transformação que se referia o artista quando chamava a suas obras de “natureza viva”.

4

Magia, animismo, contemplação mística, mimese... com estas categorias só pretendo me aproximar, tateando, da experiência que Ulisses nos transmitia direta e indiretamente ao longo de nossas sucessivas entrevistas. Com elas trato de estabelecer um marco para um possível diálogo com sua obra a partir das concepções artísticas mais sensíveis dos séculos 19 e 20, e de nossa própria condição de sujeitos perdidos no horizonte de uma irrevogável crise civilizatória. Quero chamar a atenção para uma dimensão profunda desta experiência artística confinada no campo do “popular”. E quero destacar seu valor comunitário em um sentido diametralmente oposto ao que lhe atribuiu o logocentrismo colonial, tanto em suas formas teocráticas de ontem, como em suas expressões digitais de hoje.

Para a concepção cultural dominante do mundo ocidental, que em primeiro lugar se evidencia nas instituições acadêmicas e museológicas, a arte assim chamada popular é a manifestação estrutural de um sistema coletivo de valores, carentes de uma dimensão propriamente individual, de uma vontade expressiva própria e de um valor espiritual transcendente. Por isso as obras de arte popular e étnica se confinam em museus e departamentos de antropologia e folklore. Não são expostas em museus ou departamentos de arte. Esta crônica tenta explodir pelos ares tão ridícula perspectiva logocêntrica. De um lado, procurei evidenciar a dimensão individual profunda da experiência artística de uma obra como a de Ulisses. De outro, assinalei seu significado espiritual capaz de ser fator de integração das comunidades populares: ou seja, esses povos latino-americanos e do Terceiro Mundo compartilham uma memória e um espaço geográfico comuns, e se encontram expostos a um processo persistente de colonização, que compreende desde a subtração contínua de suas memórias até a destruição sistemática de seus habitats naturais e formas de vida.

Esta dimensão espiritual e comunitária explica o último e o mais importante motivo desta crônica. Explica a recusa de Ulisses em ser filmado, sua negação a toda forma de reprodução digital de sua pessoa, de sua família e de sua arte. Explica de forma convincente sua recusa de qualquer outra forma de comunicação que não se articulasse diretamente com a presença espiritual de seus objetos. Mais ainda, é a partir desta dimensão transcendente que pode se compreender o seu repudio pela reprodução técnica, um último ato de resistência à volatilização eletrônica de sua própria vida e da sobrevivência das comunidades populares em um sentido geral.

Quando insistimos em gravar nossas entrevistas, Ulisses nos replicou: “O que digo aqui quer dizer uma coisa. Escrito e impresso significa algo diferente”. Tão logo pronunciou estas palavras, saiu de seu quarto e dirigiu-se até um velho baú oculto debaixo de algumas mantas, de onde retirou um periódico local, desgastado pelo tempo. Próximo da luz que entrava pela janela e, assinalando com o dedo um determinado parágrafo, pediu à sua filha que o lesse em voz alta. A crônica em questão era uma das poucas, talvez a única entrevista que Ulisses havia oferecido aos jornalistas, antropólogos ou marchants que lhe haviam visitado. Nela se dizia, em resumidas palavras, que Ulisses era um artista muito original, que falava com os animais e plantas, e fazia cerâmicas surrealistas. “É falso!”, gritou com ira.

A falsidade da crônica residia na correção gramatical e sintática das próprias palavras de Ulisses. Enraizava-se no processo interpretativo que mediava sua edição para a um público leitor inespecífico. E enraizava-se também na própria simplicidade do jornalista. Mas o protesto de Ulisses aludia a algo mais elementar. Não se tratava somente da literalidade do texto. A questão principal era a conversão da palavra em escritura. Conversão escritural marcada por deslocamentos sintáticos e semânticos, pela eliminação de momentos expressivos e pela abstração da presença das coisas e dos humanos que se encontram inextricavelmente unidos na comunicação falada. A falsidade da reprodução não era somente o resultado da manipulação mediática dos signos da escritura, mas, em primeiro lugar, do esvaziamento da experiência cristalizada nesses signos. “Arte é experiência”, repetia Ulisses várias vezes. “É a experiência do invisível”. E logo completou: “Não quero entrevistas porque minhas palavras são invisíveis”.

As “palavras invisíveis” são as vozes imediatamente ligadas à presença do existente. São ao mesmo tempo as “visões” associadas a estas palavras e à experiência profunda das coisas. Assinalam a dimensão misteriosa inerente a toda autêntica obra de arte. Ao mesmo tempo, estas palavras invisíveis são as palavras compartilhadas pela comunidade que as escuta e as compreende. As “palavras invisíveis” são a expressão ao mesmo tempo individual e comunitária de uma linguagem poética de formas, palavras, sons ou gestos não redutíveis à escritura. Não conformam um texto. E não podem se submeter a um sistema de códigos e representações porque são presenças irredutíveis em sua singularidade no espaço e no tempo.

Não posso resistir à tentação de duas citações. Dois testemunhos que se encontram significativamente nas margens da cultura ocidental moderna. Uma delas é a poética do Duende de Federico García Lorca. Esta categoria, um tanto aleatória, quis se relacionar com o idealismo irracionalista presente na teoria surrealista e pós-modernista dos simulacros. Outro erro. O Duende lorquiano é uma intuição estética formulada sobre a base de uma tradição mística sufista, profundamente arraigada na cultura religiosa espanhola até o século 16, e que ante as perseguições inquisitoriais da idade imperial se agregaram na cultura popular cigana como seu último refúgio espiritual. Lorca explicava em nome do Duende a manifestação misteriosa do transe espiritual no instante irrepetível da palavra poética, do movimento musical e do passo da dança flamengos. O Duende está ligado, além disso, a uma memória histórica comunitariamente compartilhada. E é também uma “palavra invisível”, ou seja, a dimensão invisível da linguagem poética ligada a uma experiência reveladora do ser na música e na dança (24).

A segunda referência não é menos importante: Paul Klee. Também Klee enraizava a experiência artística nas fronteiras entre o visível e o invisível. Em nenhum caso a obra de arte podia ser definida, de acordo com este artista, como uma simples réplica do real em um reino separado de representações. Sua famosa declaração de que a pintura não era uma reprodução do visível mas a visualização de uma realidade invisível pressupõe uma comunidade pré-lingüística entre a existência humana que vê, sente e concebe, e essa natureza das coisas percebidas. Uma mesma realidade subjaz ao humano e ao ser do existente. A obra de arte é antes de tudo, de acordo com a compreensão de Klee, a expressão sensível e espiritual deste fundamento ontológico comum.

Esta mesma comunidade ontológica do ser e sua expressão invisível explicam a resistência de Ulisses a qualquer forma de reprodução fotográfica ou digital. Já é hora de formular: desde a primeira até a última de nossas visitas, sua postura manteve a este respeito uma firmeza com convicção religiosa, no mais profundo, e portanto não-dogmático, sentido desta palavra. Ulisses não via na reprodução mecânica e digital um meio de conservação ou de preservação do existente, nem de sua pessoa ou de sua visão espiritual do ser. Ao contrário, sentia intuitivamente seu significado como meio de sua volatilização. A reprodução técnica significa a supressão da aura. Elimina a alma. Asfixia o princípio energético do vivente. Esse mesmo princípio que designavam categorias antigas como Brahma, Energeia, Ruah, Pneuma, Geist...

Associamos, é certo, esta mistura de receio e apreensão pela reprodução fotográfica ou fílmica a atitudes supersticiosas. Para sermos mais exatos, condenamos automaticamente esta classe de prevenções como uma categoria de superstição que de fato está arraigada nas antigas proibições inquisitoriais da experiência mística e na disciplina epistemológica do tecnocentrismo moderno que historicamente lhe sucedeu. Não deveríamos esquecer, sem dúvida, a violência colonial, cristã e ilustrada, que subjaz a esta categoria negativa de superstição. Também é importante recordar, por outro lado, que na cultura latina pré-cristã a palavra superstitio designava a mistura de temor e assombro diante do existente que distingue a toda experiência propriamente religiosa. Superstitio e religio eram conceitos precisamente sinônimos (25). O que a classificação da experiência do misterioso, do santificado e do sagrado sob a denominação negativa de ídolos e superstições deixa muito evidente é a história obscura de intolerância e violência que acompanha o processo civilizador. É o rosto oculto do conceito teológico e epistemológico de racionalização.

Tampouco quero deixar de mencionar que este temor à réplica fotográfica é inseparável da larga memória da perseguição sangrenta das quais estas formas antigas de conhecimento e de vida foram e continuam sendo objeto nos mais variados recantos do chamado Terceiro Mundo. No contexto das tradições místicas e chamânicas dos povos africanos e das civilizações indígenas de América, o medo à malversação das presenças sagradas, o horror à violação da energia espiritual humana e, não em último lugar, o temor à perseguição das experiências religiosas ou artísticas ligadas a estas tradições possui demasiados fundamentos.

Mas, contudo, é preciso assinalar algo mais. Provavelmente, o aspecto mais importante. A perseverante insistência de Ulisses na irredutibilidade da obra de arte individual como presença viva, que pode descrever-se a partir de categorias como mimese, animismo e magia, a falta de uma reconstrução mais precisa, desnudava alguns lugares comuns da comunicação digital pós-moderna. Descontextualização textual da experiência artística, o congelamento visual daquela “palavra invisível” que constituía seu centro nevrálgico poderiam ser os temas em questão. Mas há algo ainda mais elementar. Do seu ponto de vista, a cópia digital da obra de arte é uma fraude, na medida em que suprime suas qualidades sensitivas ligadas ao tato, à textura, aos odores, enfim, à presença física do existente. É uma fraude pois mutila sua realidade individual presente no conjunto dos sentidos da experiência individual, em um tempo e espaço irrepetíveis. É uma fraude porque, além de tudo, retira a obra de arte da comunidade na qual é criada, compartilhada e compreendida. Porque elimina aquelas características mais íntimas dessa memória comunitária, ligada às qualidades intrínsecas dos objetos, à presença humana em meio deles, e a suas dimensões expressivas compartilhadas. É uma fraude porque rapta da obra de arte seu significado espiritual mais profundo.

Tecnicamente falando, a tradução digital de um objeto é uma falsificação porque desloca e suplanta as condições sensoriais e espirituais de sua experiência individual por códigos, esquemas e modelos perceptivos predefinidos pelo software. Em segundo lugar, a reprodução e difusão digitais eliminam as dimensões individuais e comunitárias que cristalizam no meio desta experiência artística compartilhada. Assim como a obra de arte é reintroduzida na comunicação digital pelo objeto semiótico, predefinido e pré-desenhado como realidade virtual, também a comunidade que compartilha de sua experiência é substituída pela massa eletrônica. Uma massa fragmentada, hibridizada, despossuída de memórias e formas de vida compartilhadas. Massa estatisticamente definida e digitalmente volatilizada. Uma massa epistemologicamente degradada por esse mesmo software à condição de um voyeurismo sensorial e espiritualmente empobrecido.

Mas há um último aspecto da criação artística que a digitalização anula e descarta. Ulisses explicava seu trabalho criador como a revelação das vozes misteriosas do existente. O centro de sua experiência artística é a contemplação de uma terra criadora, uma natureza viva e uma realidade dinâmica que se oferecem como tais à experiência imediata. Esta relação criadora com as coisas é uma revelação espiritual do ser. A reprodução digital inverte seu sentido. A relação entre o humano e o cosmos se inverte diametralmente ali aonde a percepção artística é constituída pelo aparato administrativo e técnico inerente à reprodução digital. O lugar da apreensão artística do ser e da comunidade presencial que celebra sua revelação coletiva é subtraído pelo computador como mediação absoluta de toda forma, de todo objeto, de toda expressão, de toda existência viva. A tela do computador agora só nos põe em contato com a estrutura modular da reprodução digital, o que se tem chamado de “estrutura fractal das novas mídias” (26). O que ela nos abre ante nosso olhar é a epifania do espetáculo, a revelação de uma segunda natureza eletrônica.

Em nossa primeira visita, Ulisses falava com pesar da solidão e da incompreensão que rodeavam suas cerâmicas. Seu lamento se somava à dor diante da destruição dos legados culturais africanos e indígenas daquela vasta região. Falava de extermínio. Falava do silêncio. Este silêncio, os limites do visível e da palavra, as fronteiras obscuras da significação é o lugar da criação artística. É o último segredo do artista. O imperativo mediático do visual, seu caráter acomodatício e espetacular, e sua proliferação indefinida, o cancela.

5

Quando regressei a Nova York sentia na boca um sabor agridoce. Nossa despedida de Ulisses havia sido violenta. Mas seu triunfo contra nós, agora o experimentávamos como nossa própria vitória contra uma civilização eletrônica convocada para colonizar o coração desta cultura popular com a miséria de suas imagens triviais e sua onipresente proliferação. Sob o signo destes sentimentos encontrados redigi finalmente o relatório para meus sponsors: “The last artist is a paradox video because of its goal: it reproduces what it can not be reproduced, it performs images and sounds of natural landscapes, and interviews on a ‘subject matter’ which resists being reduced to performance. This vídeo is also paradox because it intends to be incorporated in a global project of digital culture: the Hemispheric Institute.”

Era uma provocação. Digitalizar uma imagem que não existia, traduzir performaticamente uma voz invisível. Enquanto redigia a mensagem administrativa, recordava a última cena na casa de Ulisses. Era realmente um último assalto para provar a nós mesmos que havíamos usado todas as armas ao nosso alcance para gravar uma entrevista com o artista. Usamos a intimidação de um dinheiro que relativamente devia significar muito para ele. Entramos em sua casa com uma câmara. Esgrimimos todas as persuasões que fomos capazes de improvisar. Ulisses repetiu uma vez mais seus argumentos. Insistiu de novo em sua linguagem secreta com os animais e plantas, na urgência de criar escolas artísticas para as crianças, e na crença em deus. Logo, repentinamente, saltou no meio da sala e aos gritos disse que nos mostraria como falava aos animais e à selva. E enquanto saltava e bailava enlouquecidamente, e de sua garganta brotavam incompreensíveis sons guturais, como se houvesse entrado em estado de transe e os gorjeios de um pássaro monstruoso houvessem se apoderado de seu peito, parecia no dizer com uma grande gargalhada que a experiência artística, afinal de contas, era uma emoção, não um espetáculo.

A resposta do Institute foi delicada. “I'm not sure how to handle this… I had understood … to support part of the costs if the materials you developed ended up on our website … I would not be ável to justify the expense to Ford. So please make sure that you give me a full and detailed report of what the project cost… We would definitely ask you to work with our designer”. Minha reação foi violenta: “I am perfectly aware of the intellectually challenging character of this video and research project. It explicitly challenges the postmodern constrution of “Pop Art.” It questions the reductive aesthetic category of “Art as performance.” It also exposes the prejudices, misconceptions and social misery surrounding so-called “popular art” in Latin America”. Protesto de meu departamento de línguas e literaturas: “I must tell you that it greatly disturbs me that you would send a message of this type, aggressively attacking a department colleague… in a way that goes well beyond the bounds of collegial discourse…” Minha réplica: “I can’t but consider this reaction as am administrative retaliation against beauty as the invisível…”

Mas interiormente estava arrasado. Minha provocação havia sido ofensiva e ineficaz. Meu projeto carecia de sentido dentro dos reduzidos limites da discussão estética e política academicamente admissível. E tudo o que havíamos experimentado juntos em nossas reiteradas visitas à chácara de Ulisses era irrelevante ante o ambiente de irrespirável banalidade que a mobilização mediática da guerra global havia desencadeado no campus. Deixei passar o tempo. Tentei esquecer o projeto. Só meses depois enviei um documento a Diana Taylor, a diretora do HemisphericInstitute, uma confissão, mas que nunca obteve resposta.

“É custoso me justificar como me custaria justificar um suicídio. Quando recebi tua resposta confusa ao meu provocativo relatório sobre The Last Artist, me dirigi ao website de teu Institute. De fato, nunca antes lhe havia prestado suficiente atenção. Encontrei facilmente seus textos teóricos e programáticos. Mas me deparei de imediato com uma categoria estética e politicamente problemática de performance. Logo encontrei um conceito de espetáculo que me parecia retirado da Behavior Psychology. Enfim, vi um projeto de restauração de memórias que implicava em um processo social e hermeneuticamente duvidoso de tradução e conversão digitais, insensível aos seus efeitos colonizadores sobre as memórias orais. E me encontrei com uma perspectiva teórica sobre a colonização de América que ignorava programaticamente sua racionalidade constitutiva, para logo se instalar confortavelmente em sua mesma lógica barroca do espetáculo como definição dos novos poderes e agentes da globalização. Em suma, me dei conta de que havia batido à porta equivocada”.

“Mas eu já a havia transpassado e já era demasiado tarde. Desde o começo havia assumido o projeto de digitalizar o documentário sobre Ulisses Pereira Chaves para a web. E agora percebia, com certo embotamento na mente, que a resistência deste artista contra a reprodução eletrônica de sua pessoa, de suas palavras e de suas obras, enfurnado em sua remota aldeia em Minas Gerais, estava talhada aos moldes dos postulados programáticos de colonização e colonização digitais do Hemispheric Institute, que ele, certamente, não conhecia”.

“Em outras palavras, reconstruir criticamente a experiência artística e seu significado cósmico e comunitário, tal como o formula Ulisses, significava pôr em questão a legitimidade teórica dos mesmos pressupostos epistemológicos que define o projeto do Institute, para o qual, sem dúvida, havia prometido contribuir com este vídeo. Este conflito é irreconciliável. Por isso me irritava”.

“Se essa história terminasse aqui, só teria que me desculpar pelo tom certamente agressivo de meus emails anteriores. Mas enquanto redigia o informe para a academia Popular Art&Digital Culture:The Last Artist, se apoderava de mim uma sensação de insegurança, como se o solo estivesse tremendo sob meus pés. Pouco a pouco me dava conta de que minha aproximação a este drama estético e humano estava equivocada desde o começo. Pior ainda. Percebia que meu ponto de partida era o vazio. Tentarei me explicar melhor”.

“De um lado, me era muito fácil criticar a categoria de espetáculo, tão central nas web pages do Institute, e, como se diz por aí, botar a boca no mundo... Em 1968 estava com os Situacionistas em Paris. Sua crítica do espetáculo havia colocado em ebulição os jovens mais sensíveis da capital, com a célebre ocupação do Teatro Odeon e sua transformação em improvisado parlamento popular como fim provisório. Alguns anos mais tarde eu estava em Berlim, trabalhando as estratégias espetaculares constitutivas do aparato estatal nacional-socialista, e suas raízes no barroco e no classicismo europeus. Nos anos noventa dediquei um livro às estratégias barrocas e pós-modernas de falsificação da memória e inversão ontológica da experiência. Só me faltava fechar este círculo com uma crítica à função colonizadora da cultura digital”.

“De outro lado, ao reconstruir nossa expedição em busca do último artista, e após nossa inflamada discussão com Ulisses sobre a natureza do processo criador e as considerações sobre a legitimidade ou não de sua resistência a ser gravado, me dei conta de que eu mesmo havia adotado esse olhar frio e imperativo que intelectualmente colocava em questão. Lentamente comecei a me reconhecer como uma superfície vazia que registrava o real, a agonia final de um último artista, ou os espetáculos de destruição financeira e militar do planeta, como a irrealidade de um efeito digital na tela de computador e de sua classificação e falsificação nominalistas. Rapidamente me vi no interior do meu olhar espectral no qual os códigos do espetáculo volatilizam a realidade no mesmo momento em que a designam”.

“Isso me permitiu compreender algo sobre o qual não havia prestado até então maior atenção. Em todas nossas visitas e ao longo de nossas conversações, Ulisses se abstinha de se dirigir a mim, de olhar-me o rosto ou nos meus olhos. Respondia a Lélia, se dirigia a Beth, falava com sua amiga Lira e com sua família. Mas me ignorava redondamente. E eu me via em seu olhar como uma presença ausente, como uma entidade fantasmática, como a espectral superfície de registro de um mundo de conhecimentos, dor e violência do qual eu, o observador digital e acadêmico, não podia participar, nem tampouco compreender”.

“Daí minha exasperação. Queria romper esta inversão ontológica do espetáculo mediático e acadêmico. Queria sar de minha própria pele. E queria fazê-lo de um só golpe. Acabar o assunto com um ataque furioso à função colonizadora da representação eletrônica, herdeira e sucedânea da função colonizadora do espetáculo sacramental do barroco vice-reinal. Sair brutalmente deste dilema que tenta experimentar a exuberância ontológica de um olhar artístico como o de Ulisses, e, ao mesmo tempo, reconhecê-lo sitiada pelo olhar vazio de uma cultura acadêmica e digitalizada, ou pelos valores e poderes que representa”.

“Por isso minha compulsiva, minha imperdoável agressividade. Com este gesto provocador pretendia me esquecer que eu mesmo formava parte desse espetáculo. Queria ocultar aquele meu rosto que via diluindo-se nos reflexos translúcidos das telas de computador. Queria cegar a visão de minha própria consciência morta”.

Post Scriptum

O vídeo The Last Artist, dirigido por Beth Formaggini e produzido com Lélia C. Frotta e Eduardo Subirats, é um documentário sobre a vida e a obra de Ulisses Pereira Chaves, um ceramista que não tem fama, vende suas peças pelo preço que custa o barro com o qual são feitas, vive pobremente de seus animais e de sua horta, é objeto da degradação de sua obra à categoria de artesanato, e, como todos os artistas da região, e quiçá também do continente, de origem indígena, africana ou cabocla, tem sido enganado pelos traficantes de arte popular para o mercado informal de souvenirs destinado ao turismo global.

Mas este documentário é algo mais. É o testemunho de uma irônica aventura. “Já saímos de casa sabendo que não violaríamos a recusa de Ulisses em ser filmado – me escreveu Beth no seu regresso –. E que esta era a questão principal. Sabíamos que viajaríamos milhares de quilômetros para nos defrontarmos com esta recusa... Foi uma experiência violenta. No momento de maior furor, quando Ulisses foi tomado pelos deuses e parecia querer exorcizar-nos, eu fiquei transtornada, tremendo e chorando como se me houvessem açoitado. E todos nós fomos açoitados... Por isso o olhar da câmara se voltou para o que estava ao redor de Ulisses: suas peças, os caminhos que nos levavam até ele, seus fornos que pareciam templos, sua casa, a água, a geografia, seus vizinhos, sua família e seus objetos, os animais, tudo o que não era ele mas que lhe afetava, ou havia sido afetado por ele. E tudo isso transpira sua presença, transpira seus vestígios, embebidos de seu mundo espiritual, aonde se encontram gravadas as cicatrizes da espoliação da qual tem sido objeto”.

The Last Artist é um documentário sobre um artista que rechaçou até suas últimas conseqüências a violência da conversão digital de sua visão artística do mundo e a volatilização eletrônica de sua obra em performances vazias de experiência. E este é o desafio que suas imagens assumem: captar através do aparato digital a relação intangível entre o humano, a natureza e o sagrado; e expressar artisticamente, através da edição digital da luz, do movimento, um concerto de três mil rãs que nos deparamos inesperadamente na selva ou as expressões filmadas do rosto humano, os brilhos daquela espiritualidade que nos ensinou Ulisses. Todo isso está conservado pela notável coleção de suas obras que se encontra na coleção privada de Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro.

Este vídeo foi apresentado em março de 2003, sob uma forma inacabada. A falta de patrocinadores impediu sua edição final. Por isso sua diretora só permite sua divulgação em meios restritos e com fins didáticos. Pessoalmente considero este estado inacabado como a expressão mais adequada ao seu significado mais radical. The Last Artist é a crônica de um projeto acadêmico e digital voluntariamente abortado. E é a expressão dos limites da reprodução digital e de sua cumplicidade arquivista com os processos de destruição tardo-industrial de memórias culturais na escala global.

Last but not least, este documentário foi concebido originalmente como uma contribuição à digitalização de tradições populares da América Latina no Hemispheric Institute da Ford Foundation e Nova York University. Uma contribuição paradoxal, porque seu motivo central, a recusa da reprodução digital da experiência artística, colocava em questão os objetivos políticos desta instituição eletrônica: a conversão digital das memórias culturais e a difusão performática de suas expressões artísticas.

The Last Artist quer chamar a atenção para a riqueza espiritual das comunidades populares da América. Mas é também uma denuncia do empobrecimento letal, econômico e mediático, ao qual estão submetidas. Seus autores consideram firmemente que a solução para este dilema não reside na digitalização de suas representações performáticas. Que o fundamental é apoiar intelectual e politicamente a sobrevivência destas comunidades populares, nas quais estas obras constituem o meio de preservação e desenvolvimento de formas de vida e conhecimento milenares.

Agradecimentos

Tenho uma grande dívida para com Lélia Coelho Frotta por ter me apresentado ao artista mineiro Ulisses Pereira Chaves, por seus ensinamentos sobre as tradições populares brasileiras, e por sua imensa generosidade. Agradeço a Erna von der Walde as cuidadosas críticas conceituais e sugestões formais que tornaram possível o ensaio sobre arte popular e cultura digital. A Beth Formaggini, por seus comentários sobre a outra face do problema: as possibilidades da arte digital no contexto das culturas populares. Carla Milano me ajudou a cristalizar o conjunto destes ensaios sob o título brasileiro de um nunca acabado Paraíso (primeira edição brasileira, de 2001, com uma parte dos ensaios deste livro, com o título de uma “Penúltima Visão do Paraíso”). A Nadia Benavid agradeço a devoção poética de sua versão inglesa destes ensaios. Não em último lugar, quero agradecer a Diana Taylor seu generoso, ainda que abortado, apoio ao projeto de um vídeo documental sobre “O último artista”. Também quero expressar meu agradecimento a Consolo Saízar por publicar este livro, “na velocidade de um raio”, em minha querida cidade do México. E a Richard Foley, diretor da Faculty of Arts and Sciences de Nova York University, por seu apoio acadêmico.

notas

1
KRENAK, Ailton. O lugar onde a terra descansa. Rio de Janeiro, Eco Rio, 2000.

2
FAYE, Jean-Pierre. Os linguagens totalitários. Madrid, Taurus, 1974, p. 567 e seguintes. Capitulo Die Reihe, a série.

3
SCHELTEMA, Frederik Adama van. Die deutsche Volkskunst und ihre Beziehungen zur germanischen Vorzeit. Leipzig, Bibliographisches Institut, 1938, p.14 e seguintes; ORTEGA E GASSET, José. Espanha invertebrada (1921). Madrid, Alianza, 1983, p. 94-97.

4
HEIBER, Helmut (editor). Goebbels-Reden. Düsseldorf, Droste Verlag, 1971, Bd. 1, p. 96.

5
Como assinalou Agustín Laó Montes em “Mambo Montage. The Latinization of Nova York City”, in MONTES, Agustín Laó; DÁVILA, Arlene. Mambo Montage. Nova York, Columbia University Press, 2001, p. 15.

6
Uma crítica contra a produção fílmica de Hollywood e da Ufa como indústria do entretenimento, desenvolvida por outros críticos da época, como Siegfried Kracauer. KRACAUER, Siegfried. Das Ornament der Masse. Frankfurt a. M., Suhrkamp Verlag, 1977, p. 271 e seguintes.

7
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften (R. Tiedemann and H. Schweppenhauser eds.) Frankfurt a.M., Suhrkamp Verlag, 1972, vol. I-2, p. 492.

8
EHRENBURG, Ilja. Die Traumfabrik. Berlin, Malik Verlag, 1931, p. 220 e seguintes.

9
CANNADAY, John. “Pop Art Sells On and On” in: WHITE, David Manning (ed.). Pop Culture in America. Chicago, Quadrangle Books, 1968, p. 238 e seguintes.

10
HUYSSEN, Andreas. After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1986, p. 155.

11
FISHWICK, Marshall W. Popular Culture. Cavespace to Cyberspace. Nova York / London / Oxford, The Haworth Press, 1999, p. 247-249.

12
The New Science of Giambattista Vico. Ithaca and London, Cornell University Press, 1984, p. 118.

13
HERDER, Johann Gottfried. Briefe zur Beförderung der Humanität. Frankfurt a. Main, Deutscher Klasssiker Verlag, 1992, p. 242.

14
Ibid., p. 123 e seguintes.

15
Esta ampliação do conceito de cultura, esta abertura da monolítica racionalidade tecnocientífica tem sido um objetivo formulado pela antropologia clássica. E não em último lugar pela literatura do século 20. Sem sair dos limites do Brasil, podemos citar a este respeito uma série de pesquisas e ensaios. Dois deles são de autoria nada menos do que dos fundadores da antropologia brasileira: Curt Nimiendajú Unkel e Theodor Koch-Grünberg. [NIMUENDAJÚ, Curt. As lendas da criação e destruição do Mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guaraní. São Paulo, Editora Hucitec, 1987; KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Zwei Jahre unter den Indianern. Reisen in Nordwest-Brasilien 1903/1905. Graz, Akademische Druck- u. Verlagsanstalt, 1967]. Este último trabalhou no terreno das artes visuais das nações amazônicas e compilou uma ampla série de narrativas orais que precisamente foram o ponto de partida de uma das obras literárias pioneiras da modernidade latino-americana: Macunaíma, de Mário de Andrade. O próprio Mário de Andrade levou a cabo uma série de trabalhos de campo sobre a música popular brasileira. Mais recentemente, Berta G. Ribeiro dedicou uma obra teórica às definições de arte indígena e popular. [RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. Indigenous art, visual language. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1989]. E não podemos deixar de lado as pesquisas realizadas por José Guimarães Rosa ou Darcy Ribeiro, em um território limite entre a literatura e a antropologia, porque estas obras precisamente mostram a possibilidade aberta de integrar a restauração filológica de lendas, expressões artísticas e formas tradicionais de conhecimento em um mundo moderno, como um meio de corrigir seu rumo torcido de espoliação e destruição humana. [BASTOS, Augusto Roa. As culturas condenadas. México D.F., Siglo XXI, 1978].

16
EINSTEIN, Carl. Negerplasstik. München, Kurt Wolff Verlag, 1920, p. 12 e seguintes.

17
ELIADE, Mircea. Shamanism. Archaic Techniques of Ecstasy. Princeton, Princeton University Press, 1951, p. 98-99.

18
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 164 e seguintes.

19
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften (op. cit.), vol.2.1., p. 145 e seguintes; DEWEY, John. Experience and Nature. Nova York, Dover Publications, 1958, p. 82.

20
STEINER, Rudolf (ed.). Goethes naturwissenschaftliche Schriften. Weimar, H. Bèohlau, 1890-1904, vol 1, p. XXXI.

21
IZUTSU, Toshihiko. Sufismo e taoísmo. Madrid, Siruela, 1993, vol I, p. 226 e seguintes.

22
KLEE, Paul. Schriften, Rezensionen und Aufsätze. Köln, DuMont Buchverlag, 1976, p. 118.

23
MARRA, Michele. Modern Japanese Aesthetics. Honolulu, University of Hawaii Press, 1999, p. 254.

24
LORCA, Federico García. Conferências. Madrid, Alianza Editorial, 1984, vol. II, p. 85 e seguintes.

25
OTTO, Walter F. Aufsätze zur Römischen Religionsgeschichte. Meisenheim am Glan, Verlag Anton Hain, 1975, p. 92 e seguintes.

26
MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge / London, The MIT Press, 2001. p. 30.

sobre o autor

Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização da América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social

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