1.
Na introdução à sua história do "breve século 20", Eric Hobsbawm refuta a controvertida tese sobre o "fim da história" ocasionada pela queda do bloco soviético, no final dos anos 80. Porém, observa que, paralelamente, ocorria então uma mudança subliminar mais profunda na história humana, iniciada oito mil anos antes com a revolução da agricultura: daquele momento em diante, mais da metade da população do planeta já passara a viver em cidades, e não mais "plantando alimentos e pastoreando rebanhos" (2). Esse é, a seu ver, o grande retrato do século, diante do qual o conflito ideológico entre os regimes capitalista e comunista parece um episódio circunstancial.
Vivemos, portanto, recentemente, o século da urbanização, em que a cidade consolidou-se historicamente como o lugar da emancipação humana. Essa reflexão sobre a vocação histórica das cidades, no entanto, contrasta radicalmente com o diagnóstico concreto de sua situação atual e futura. Considerando-se os dados de hoje, vemos que os moradores de favela constituem já um terço da população urbana global. E, numa perpectiva a curto prazo, estima-se que essa porcentagem chegará a 50% em quinze anos. Situação particularmente dramática no Terceiro Mundo, cujas cidades absorverão 95% do crescimento populacional mundial.
Os dados são extraídos do relatório feito em 2003 pelo Programa de Assentamentos das Nações Unidas (3), analisado pelo urbanista e pesquisador americano Mike Davis em Planet of Slums (4), ainda inédito no Brasil, mas com uma versão condensada em Contragolpes, coletânea de artigos da New Left Review organizada por Emir Sader (5).
Pensador marxista, Davis enxerga no processo em curso a reversão de paradigmas clássicos da teoria econômica corrente, em que estão incluídas as perspectivas de emancipação social da classe operária. O quadro traçado nas últimas décadas – desde a "depressão artificial" com a crise da dívida externa no final dos anos 70, e os programas de ajuste estrutural impostos pelo FMI ao Terceiro Mundo – é de uma alta taxa de urbanização radicalmente desligada da industrialização e do desenvolvimento. Isto é: a favelização generalizada, e a proliferação do "trabalho informal", precário, atomizado, sem qualquer organização coletiva ou direito trabalhista envolvido, pressionadas pela predominância do latifúndio no campo, pela competição do agronegócio, e pela importação de alimentos, muitas vezes associadas a secas, guerras civis etc.
Assim, uma das grandes contribuições da análise de Davis está em mostrar que essa "urbanização perversa", sem crescimento, não é o corolário da virtualização do trabalho no capitalismo informatizado dos dias de hoje, mas a herança de ajustes estruturais em curso há quase 30 anos, baseados na queda dos salários, no desemprego, e no corte drástico nos serviços públicos. Isto é: ajustes de caráter profundamente antiurbano, "projetados para reverter qualquer viés urbano que existisse nas políticas de bem-estar social, na estrutura fiscal ou nos investimentos governamentais" (6).
2.
As megalópoles e conurbações são fenômenos conhecidos do processo de crescimento urbano das últimas décadas, e, de certa forma, já previstos há algum tempo. Tóquio, por exemplo, ao ultrapassar a marca de 20 milhões de habitantes há dez anos, já abrigava uma população equivalente à do planeta inteiro na época da Revolução Francesa, como relata Mike Davis.
Contudo, observa, há componentes da situação contemporânea que distoam significativamente das previsões clássicas, e que, portanto, são fenômenos novos. Um deles é o fato de que o maior crescimento populacional atual e futuro ocorre em cidades médias, de "segundo nível", e não mais em metrópoles gigantescas no estilo "supernova". É que a atual "urbanização sem desenvolvimento" não é mais atraída pela oferta de empregos em centros industrais tradicionais. Com as políticas impostas pelo FMI de suspensão dos subsídios aos produtores rurais, expostos assim ao mercado global de commodities dominado pelo agronegócio, houve uma migração forçada do campo para as cidades, apesar da queda da oferta de emprego nestas, e do crescimento negativo das suas economias.
Surgem, assim, cidades inteiramente favelizadas e dominadas pelo trabalho informal, constituindo um "proletariado informal" que, segundo Davis, é "a classe social de crescimento mais rápido e sem precedentes da Terra" (7). A novidade interpretativa, no caso, está no deslocamento da análise marxista de evolução histórica, segundo a qual o crescimento urbano mundial seguiria os passos industrializantes de Manchester, Chicago ou Berlim. Aquele modelo, que foi válido ainda para o caso de São Paulo, não dá conta do que ocorre hoje em Lima (Peru), Kinshasa (Congo) ou Daca (Bangladesh), por exemplo.
Esse "proletariado informal", não previsto pelo marxismo, não constitui um exército de reserva pronto a ser incorporado pelo mercado de trabalho. Por isso a favela, de acordo com Davis, "desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resíduo global sem o poder econômico estratégico da mão-de-obra socializada, mas maciçamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos" (8).
Em tal contexto, Marx cedeu o palco histórico a Maomé e Jesus Cristo. Pois se a urbanização moderna laicizou a classe trabalhadora, a favelização pós-industrial recolocou Deus no centro dos acontecimentos, com o crescimento do islamismo populista e do cristianismo pentecostal. Sendo que este último, infinitamente mais recente, cresceu inteiramente no solo da favela como reação a essa urbanização explosiva, constituindo "o maior movimento auto-organizado dos pobres urbanos do planeta" (9). Contudo, trata-se de uma organização sem perspectiva de emancipação terrena. Sua premissa básica é desencantada e regressiva, embora realista: o mundo urbano é corrupto e impossível de reformar. No horizonte, nenhuma promessa de revolução. Apenas resignação.
3.
Se para Adam Smith, "o grande comércio de toda a sociedade civilizada" está baseado na divisão de trabalho entre o campo e a cidade (10), para Marx e Engels, ao contrário, ele tenderia a uma abolição gradual dessa divisão, e portanto da distinção entre ambos, através de uma distribuição mais equânime da população na terra. Essa oposição revela muito sobre o modo como o liberalismo e o comunismo se territorializam. E, também, aponta traços que de certa forma se tornaram marcantes na diferença entre as mentalidades ocidental e oriental.
Um dos lados, a ocidente, tem como arquétipo a Inglaterra: país que fez a Revolução Industrial, e primeiro se urbanizou. Mas que, no entanto, manteve o campo como uma entidade existencial intocável, a salvo de qualquer contaminação da vida ruidosa da cidade. O outro lado, a oriente, remete às experiências de modernização soviética e chinesa, países com territórios imensos e uma longa tradição camponesa, e que passaram por um processo acelerado de industrialização. Assim, se no primeiro caso o campo e a cidade são duas forças em oposição complementar, no segundo tendem a formar um amálgama indiscernível, próximo àquilo que se chamou de "desurbanismo" (11).
Essa discussão ganha interesse renovado à medida que a China hoje, sendo o país que mais cresce no mundo, se urbaniza vertiginosamente. E, na mesma proporção, parece ocidentalizar-se, quando, na verdade, finalmente atinge uma configuração territorial próxima àquela idealizada por Marx.
Formada por uma rede contínua de vilas recentemente promovidas a cidades, a vasta área do delta do rio Pérola é uma paisagem híbrida entre o rural e o urbano. Esse processo, abolutamente contemporâneo, resulta na verdade de uma combinação histórica singular. Em primeiro lugar, do desprezo de Mao Tse-Tung pelas cidades, e de sua política de industrialização do campo e controle férreo do crescimento urbano. E em segundo, da recente abertura à economia de mercado a partir de zonas de exceção em torno dos enclaves ex-coloniais: Hong Kong e Macau, ambos situados no delta do Pérola.
Como resultado, toda uma paisagem de campos cultivados e casas dispersas, pontuada aqui e ali por chaminés de fábricas, se viu rapidamente exposta à voracidade do comércio e, logo, ao impulso da produção de bens de consumo variados. É claro que a população flutuante da região se multiplicou a cifras incalculáveis, e o território se suburbanizou a partir de rápidos e precários incrementos de infra-estrutura básica. Uma urbanização sem urbanidade, conduzida pelo capital globalizado sobre uma base comunista agrária mas industrializada.
Quando Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista (1848), conceberam uma sociedade vivendo em híbridos rurais-urbanos, estavam se opondo à concentração insalubre da população operária nos cortiços londrinos, e procurando incorporar o idílio do campo à noção de lazer na cidade, como uma síntese entre tese e antítese. Hoje, para começar a compreender a atual conurbação chinesa de vilas-subúrbios sem centro urbano, precisamos dar novos saltos dialéticos.
4.
Em matéria publicada no caderno Mais!, na Folha de S. Paulo (12), José Reinoso descreve o vertiginoso processo de transformação de Shenzhen, uma aldeia de pescadores chinesa que em vinte anos se tornou uma cidade com mais de 10 milhões de habitantes: o lugar, hoje, com o maior crescimento mundial do PIB: 28% ao ano. Com um ritmo vibrante de desenvolvimento, e formada por uma população jovem, quase toda feita de imigrantes (90%), Shenzhen abriga escritórios de 100 das 500 maiores corporações do mundo, e conta com 27 hotéis cinco estrelas.
Ponto de passagem alfandegária para Hong Kong>, a antiga aldeia (cujo nome significa "drenagem profunda", graças aos canais de irrigação dos arrozais) foi convertida, em 1980, em "zona econômica especial" (ZEE): um pólo de transição da velha economia planificada para a economia de mercado, através da concessão de incentivos fiscais, créditos bancários etc. Depois da explosão de Shenzhen, e com o sucesso do "socialismo de mercado" chinês, novas ZEEs foram criadas ao longo do delta do rio Pérola, gerando uma conurbação linear voraz que engloba campos agrícolas, aldeias, vilas, vilarejos, cidades e megalópoles, tornando-os todos uma imensa extensão suburbana.
Esse é o tema da pesquisa desenvolvida pela Escola de Design da Universidade de Harvard com a coordenação do arquiteto holandês Rem Koolhaas, publicada com o título Great leap forward (13). De acordo com Koolhaas, o fenômeno chinês explicita um modelo contemporâneo de crescimento urbano em que o subúrbio não é a margem residual da cidade, e sim a sua própria essência. Como mostra o estudo, o volume de prédios construídos na região não tem precedentes em velocidade e em quantidade. Comparativamente, há dez vezes menos arquitetos na China do que nos Estados Unidos, mas cada um deles projeta cinco vezes mais edifícios em um quinto do tempo, ganhando dez vezes menos.
Assim, o que esse frenesi pragmático de construções está gerando é uma produção intensa sem doutrina, uma urbanização sem urbanidade. Trata-se de um tema caro a Koolhaas, que participou de uma pesquisa semelhante sobre os shopping-centers (14), na contra-mão da nostalgia européia da vida à pé nos bulevares e cafés. E, antes disso, escreveu o polêmico Delirious New York, manifesto retroativo para Manhattan, que tenta reconstruir explicativamente os passos que produziram a metrópole dos arranha-céus sem nenhum suporte teórico.
Mas em relação à China, o olhar provocativo e desencantado de Koolhaas não chega a ser otimista. Pois, para o holandês, ela retrata uma perplexidade: a incapacidade atual dos arquitetos em expor qualquer convicção sobre a organização da vida nas cidades. O urbanismo acabou nos anos 60, diz provocativamente, e já não parece existir nada entre a celebração do mercado e o pavor diante do caos. Enquanto isso a Ásia explode. E, contraditoriamente, "o fenômeno urbano parece ser cada vez menos compreendido à medida que atinge a sua apoteose" (15).
notas
1
Reunião de 4 artigos publicados na Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, Coluna Forma & Espaço: "O paradoxo da cidade" (03 de julho), "Multiplicação sem promessa" (10 de julho), "O híbrido rural-urbano" (17 de julho), e "Salto para onde?" (24 de julho de 2006).
2
HOBSBAWM, Eric. “O século: vista aérea". In Era dos extremos - o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 18.
3
WARAH, Rasna. The challenge of slums: global report on human settlements 2003. London: UN-Habitat, 2003. Disponível em <http://www.globalpolicy.org/socecon/develop/africa/2003/03slums.htm>
4
DAVIS, Mike. Planet of slums. New York: WW Norton, 2006.
5
DAVIS, Mike. "Planeta de favelas: a involução urbana e o proletariado informal". In SADER, Emir (org.). Contragolpes. São Paulo: Boitempo, 2006.
6
Idem, ibidem, p. 203 (citando o relatório da ONU, op. cit., p. 30).
7
Idem, ibidem, p. 209.
8
Idem, ibidem, p. 212.
9
Idem, ibidem, p. 217 (citando Peter Wagner, prefácio para SYNAN, Vinson. The holiness-pentecostal tradition. Grand Rapids: 1997, p. XI).
10
Ver a introdução presente em SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
11
"No se trata de construir ciudades en nuestros exterminados desiertos, es necesario dispersar al máximo los lugares de trabajo. Las industrias de transformación deberán construirse lo más cerca posible de las fuentes de materias primas, en el corazón de las regiones mineras y agrícolas. Las industrias extractivas, las unidades de producción agrícola y las de transformación deben ser estudiadas simultaneamente. Es necesario pasar a los proyectos de complejos asentamientos industriales, a la localización planificada de la industria, a la localización a escala territorial tanto de los centros de producción como de los alojamientos; es necesario instaurar las unidades economicas regionales de nuestro país." GINZBURG, Moisei. "Por el desurbanismo", Editorial de Sovremennaia Arkhitektura n. 1-2, 1930. In CECARELLI, Paolo. La construccón de la ciudad soviética. Barcelona: Gustavo Gili, 1970, p. 76-77.
12
REINOSO, José. "O laboratório chinês". Caderno “Mais!”. São Paulo, Folha de S. Paulo, 05 mar. 2006.
13
CHUNG, Chuiua Judy; INABA, Jeffrey; KOOLHAAS, Rem; LEONG, Sze Tsung. Great leap forward. Cambridge: Taschen, Harvard Design School Project on the city v. 1, 2001. Ver também KOOLHAAS, Rem. "Pearl River Delta". In Politics-Poetics documenta X - the book. Kassel: Cantz Verlag, 1997.
14
CHUNG, Chuiua Judy; INABA, Jeffrey; KOOLHAAS, Rem; LEONG, Sze Tsung. The Harvard Design School Guide to Shopping. Cambridge: Taschen, Harvard Design School Project on the city v. 2, 2002.
15
"The absence, on the one hand, of plausible, universal doctrines and the presence, on the other, of an unprecedent intensity of production have created a unique, wrenching condition: the urban seems to be least understood at the very moment of its apotheosis." KOOLHAAS, Rem. "City of exacerbated difference". In Great leap forward, op. cit., p. 27.
16
Fonte da imagem: GUERRA, Abilio (org). Metrópole. Catálogo do Fórum de Debates da 5ª Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo. Fundação Bienal de São Paulo / Instituto de Arquitetos do Brasil / Centro Cultural Banco do Brasil / Romano Guerra Editora, 2003
sobre o autor
Guilherme Wisnik, arquiteto e ensaista. Autor de Lucio Costa (Cosac Naify, 2001) e Caetano Veloso (Publifolha, 2005), é colunista da Folha de S. Paulo e professor da Universidade Anhembi Morumbi. Publicou ensaios como “Modernidade congênita”, em Arquitetura Moderna Brasileira (Phaidon, 2004).