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architexts ISSN 1809-6298


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Edson da Cunha Mahfuz apresenta a obra individual do arquiteto catalão Helio Piñón atravéz de uma análise de seu trabalho projetual e sua produção teórica, e as relações entre esses dois âmbitos de trabalho


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MAHFUZ, Edson. Observações sobre o formalismo de Helio Piñón – parte 1. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 089.01, Vitruvius, out. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.089/196>.

Muitos textos introdutórios à obra de arquitetos contemporâneos recorrem a conceitos oriundos de outras disciplinas para explicá-la. Ao fazê-lo, elaboram argumentos complicadíssimos que visam, em última análise, demonstrar a erudição e sofisticação do analista, num ato de autopromoção que se arrisca a deixar em segundo plano o mais importante: o trabalho sendo analisado. Temos visto a produção de muitos arquitetos conhecidos ser descrita e analisada com base em conceitos filosóficos, biológicos, psicológicos, etcetera, resultando em textos que praticamente prescindem da obra que se propõem a comentar.

Do mesmo modo, é comum ver comentários sobre a obra de alguém se tornarem verdadeiros exercícios de etimologia arquitetônica ou algo parecido a uma investigação policial, pois seus autores se mostram muito mais interessados em traçar possíveis relações com precedentes do que em auxiliar o leitor a entender a obra apresentada como ela é realmente.

Nada seria mais inapropriado que fazer isso em relação à obra de Helio Piñón, pois estabeleceria um procedimento totalmente oposto à natureza de seu pensamento teórico e projetual. Comentar a sua obra de um modo que lhe faça justiça significa ater-se ao que os projetos realmente são, como se armam, de que elementos se constituem e em que consiste a sua materialidade. “É a própria realidade da obra o que constitui matéria e oportunidade de pensamento” (2).

Apesar de já ser um arquiteto conhecido por seu trabalho profissional e docente há mais de duas décadas, a obra individual de Helio Piñón é bastante recente, iniciada por volta de 2000, a partir da dissolução do estúdio ao qual o arquiteto estava anteriormente associado. Sua produção recente se destaca pelo fato de que não é exclusivamente projetual ou teórica, mas uma extraordinariamente rica combinação desses dois aspectos da arquitetura. Ao mesmo tempo em que desenvolvia os projetos apresentados neste presente ensaio, Helio Piñón realizava uma prolífica atividade teórica, materializada em uma série de livros e artigos publicados desde o ano de 1999, os quais tem exercido uma crescente influência entre seus leitores.

Sendo assim, além de comentar seu trabalho projetual é importante analisar, ainda que brevemente, a produção teórica de Helio Piñón, pois ela tem uma amplitude que é de muito interesse não apenas no âmbito deste ensaio, mas também para um melhor entendimento da arquitetura contemporânea. Se, por um lado, sua atividade teórica nos ajuda a entender muitas das decisões que toma no campo projetual, por outro lado, assume grande abrangência e relevância por oferecer uma interpretação da arquitetura moderna bastante diferente das versões oficiais ou ortodoxas, sendo talvez a voz que defende com mais veemência a sua vigência. Embora Helio Piñón não seja o único responsável pelo retorno de critérios associados à modernidade em arquitetura, é certamente aquele que tem possibilitado, por meio de textos, conferências, cursos e projetos, um entendimento mais profundo da sua essência e sua recuperação como possibilidade de atuação neste início de século. Tanto por seu trabalho teórico como pela qualidade intrínseca de seus projetos, o trabalho de Helio Piñón está indissoluvelmente ligado a um esforço por recuperar uma visão da arquitetura moderna como sistema formal ainda vigente.

Mas há uma dimensão adicional da importância da obra projetual de Helio Piñón que não deveria passar despercebida. É um fato claro para muitos que a prática atual não oferece um rumo claro, uma direção que pudesse garantir aos estudantes, jovens arquitetos e ao profissional mediano uma competência mínima, uma qualificação que lhes permitisse fazer uma arquitetura correta. Um estudo atento dos projetos de Helio Piñón não apenas facilita a compreensão de alguns dos modos de projetar associados à modernidade; equivale também a um curso rápido de projetos em que se descobre uma série de estratégias testadas e comprovadas, que podem ser o fundamento da solução de inúmeros problemas arquitetônicos atuais. Dificilmente alguém que penetre com profundidade nos projetos apresentados neste livro deixará de ser influenciado por eles.

Idéias

Des-cobrindo a modernidade

Após a leitura dos textos de Helio Piñón nos damos conta de que a maioria dos textos disponíveis apresentam visões incompletas do fenômeno moderno, pois parecem mais preocupados em narrar as circunstâncias que teriam determinado o seu surgimento do que em desvendar sua natureza. Os textos mais conhecidos chegam a ser irrelevantes do ponto de vista da prática da arquitetura, já que sua orientação historiográfica pouco ajuda a quem quer compreender o que significa a arquitetura moderna em termos de procedimento projetual.

A omissão, pela historiografia “oficial”, de muitas das características da arquitetura moderna apontadas por Helio Piñón, pode nos fazer pensar, num primeiro momento, se essa modernidade realmente existiu ou se é uma criação do próprio arquiteto. É difícil acreditar que recursos projetuais de tal relevância ficaram ocultos por tanto tempo. A culpa, neste caso, não deve ser atribuída unicamente aos historiadores oficiais, mas talvez aos próprios arquitetos que praticaram nos anos 40, 50 e 60, pela sua pouca disposição em falar sobre o modo como sua arquitetura era concebida, permitindo assim que a arquitetura moderna fosse as poucos substituída por modos muito menos consistentes de projetar.

Enquanto as versões ortodoxas definem a arquitetura moderna em termos ideológicos, de um suposto determinismo sócio-técnico e de uma imaginada aversão pelo contexto, ficando a dimensão artística limitada à expressão de idéias e valores gerados fora do projeto, Helio Piñón celebra exatamente o seu lado artístico como a marca da sua transcendência. Porém, quando se refere ao que pode haver de artístico na arquitetura, Piñón não fala de algo externo, que se sobrepõe ou substitui os condicionantes de um problema arquitetônico, mas de “uma formalidade cuja consistência transcende os critérios de funcionalidade dos quais parte” (3) sem deixar de atendê-los. Esse componente artístico, no entanto, não está presente em todas as obras de arquitetura; nos poucos casos em que arquitetura e arte se confundem, o projeto surge como uma atividade totalizadora que sintetiza na forma os requisitos do programa, as sugestões do lugar e a disciplina da construção. Quando se fala em arte na arquitetura, ou na arte da arquitetura, falamos de um modo superior de resolver, através da forma, os problemas práticos que definem um dado problema arquitetônico.

Examinar com algum detalhe a interpretação da arquitetura moderna que nos oferece Helio Piñón interessa aos propósitos deste ensaio pois a mesma se estrutura em torno de uma série de conceitos que são também a base da sua prática projetual. Além disso, que esses conceitos também sirvam para explicar em grande parte sua prática projetual é uma evidência importante de que sua produção teórica não é mera atividade literária, e de que seu vínculo com o moderno vai muito além de um interesse puramente investigativo.

Forma e seu significado moderno

Embora hoje seja evidente a importância da forma para a arquitetura moderna, seus fundadores pouco falavam do assunto, talvez porque temessem ser tachados de irrelevantes e superficiais. Mesmo não sendo o objetivo exclusivo da arquitetura, não há como discordar que a forma é seu resultado inevitável. Bem ao contrário dos pioneiros modernistas, Helio Piñón não apenas afirma o formalismo (4) da arquitetura moderna e de sua própria produção, como declara que a definição formal deve ser uma preocupação central de todo projeto.

O conceito de forma tem se prestado a muita confusão, pois lhe são atribuídos dois significados de sentido oposto. Enquanto para muitos o termo forma se refere à aparência de um objeto, ao seu aspecto ou conformação externa, tornando-se sinônimo de figura (gestalt, em alemão), na arquitetura moderna forma se identifica com o conceito moderno de estrutura (eidos, em grego). Nos textos de Helio Piñón o formal sempre se refere à estrutura relacional ou sistema de relações internas e externas que configuram um artefato ou episódio arquitetônico e determinam a sua identidade. Esse sentido relacional da forma é, no âmbito da arquitetura moderna, uma conseqüência da sua renúncia aos valores de objeto como algo fechado em si mesmo. A idéia de forma como relação, válida para todas as escalas do ambiente, tem extrema importância para a prática e o ensino da arquitetura, pois afasta de vez a crença de que os objetos modernos são indiferentes ao entorno em que se inserem.

Além de possuir um sentido estrutural e relacional, a forma de uma obra não deve ser entendida como algo externo aos condicionantes do problema arquitetônico nem como algo que deriva diretamente deles. É mais adequado entender a forma como uma síntese do programa, da técnica e do lugar, obtida por meio da ordem visual.

Nesses termos adquire um sentido mais claro o conceito de identidade formal, que é a ordem específica de cada obra, aquela condição de estrutura constitutiva própria de cada obra e independente de fatores externos. A identidade é a qualidade que determina a essência de algo, não devendo ser confundida com a singularidade, que é o conjunto de características que diferencia algo dos outros. Para Piñón, alcançar a identidade formal é o objetivo maior da concepção moderna, pois é um valor essencial da obra de arquitetura, convicção que é contrária a de muitos arquitetos, para os quais o papel principal da arquitetura seria o de refletir em sua forma o espírito dos tempos.

Parece evidente que a identidade formal de uma obra depende da presença de uma estrutura formal que defina sua organização espacial e as relações com o seu entorno, a qual pode ser definida como “um princípio ordenador segundo o qual uma série de elementos, governados por relações precisas, adquirem uma determinada estrutura” (5). É a presença dessa estrutura formal que separa a arquitetura de qualidade daquele funcionalismo barato que deriva a planta do organograma funcional, tão comum nas décadas de 60 e 70 do século passado.

Afirmar o formalismo da arquitetura moderna é enfatizar o seu empenho de dotar de ordem visual a espacialização de um programa, sua recusa em se satisfazer com a simples correção funcional de um projeto, sua busca incessante de identidade formal para toda e qualquer obra.

Construção formal versus mimese

Embora não ignore os aspectos social e tecnológico da arquitetura moderna, Helio Piñón enfatiza a ruptura metodológica que ela introduziu em relação aos modos de produção artística anteriores, substituindo a imitação por uma idéia autônoma de forma, desvinculada de qualquer sistema prévio ou exterior.

Essa ruptura metodológica foi acompanhada por uma transformação radical na natureza do artefato arquitetônico, como descreve Carlos Martí Arís:

“na arquitetura tradicional os diferentes subsistemas que compõem o edifício (estrutura portante, esquema distributivo, organização espacial, mecanismos de acesso, relação com o exterior, etc.) coincidem entre si, se sobrepõem de modo exato e unívoco, estabelecendo nitidamente sua forma tipológica. Na arquitetura moderna todos esses subsistemas podem ser isolados e abstraídos, podem ser pensados de modo autônomo segundo suas estratégias particulares as quais, embora cúmplices, não precisam ser necessariamente coincidentes. Na arquitetura tradicional os diversos subsistemas convergem univocamente na definição do tipo e este, ao ser fixado, determina e constrange, por sua vez a configuração daqueles, subordinando-os à diretriz estabelecida pelo tipo. Na arquitetura moderna, em troca, os subsistemas não se identificam com o tipo [ou a estrutura formal] nem são pré-determinados por ele” (6)

Ou seja, enquanto na arquitetura tradicional todos os subsistemas convergem e se confundem com a estrutura formal, a sua independência na arquitetura moderna permite o abandono da imitação como procedimento fundamental, possibilitando o uso de esquemas ordenadores de qualquer origem, até da própria história da arquitetura.

Há quase cem anos a mimese classicista pode ser substituída pela construção formal (7), a qual é “exercida pela ação formativa do sujeito, que busca dar sentido e consistência ao produto da sua concepção”. A construção formal é uma conseqüência lógica do pensamento artístico que exige a participação do sujeito para o seu completamento. “O objeto moderno reclama a inteligência do espectador, tornando-o participante do seu jogo” (8). Aquela ação formativa do sujeito que concebe, para que possa ser recriada pelo sujeito que dela desfruta, deve não apenas se fundamentar em idéias genéricas e inteligíveis, assim como deve tornar explícito o modo em que o objeto está feito.

A construção formal pode ser definida com mais precisão como aquele procedimento segundo o qual se obtém a síntese dos vários subsistemas que compõem uma obra de arquitetura em uma estrutura formal que possua identidade, sentido e consistência. Se trata de um procedimento que vai armando a forma como se tratasse de um quebra-cabeça, passo a passo, num processo de tentativa e erro, ao invés de adotá-la como uma totalidade importada de outra situação.

O empenho construtivo moderno se caracteriza por situar o marco de legitimidade da obra no âmbito do objeto, buscando a lógica da sua constituição como artefato ordenado por leis que lhe são próprias. Essa lógica não é de modo algum alheia aos aspectos programáticos e técnicos de cada situação específica. Porém, longe de determinarem a forma, a técnica e a função são a sua condição de possibilidade. Na medida que condicionam a forma, técnica e função estimulam a sua síntese. Para Piñón, na origem de toda obra verdadeiramente moderna há um empenho construtivo (no sentido formal) capaz de conter o programa funcional da obra sem que sua forma seja determinada por ele.

Estimulantes da forma

“Fazer arquitetura é chegar à síntese formal de um programa, em sentido amplo, e das condições de um lugar, assumindo ao mesmo tempo a historicidade da proposta.”

Esta citação nos remete ao que poderíamos chamar de estimulantes da forma, àqueles elementos que estão presentes, com maior ou menor intensidade, na origem e no desenvolvimento do processo projetual. Uma olhada atenta aos textos e projetos de Helio Piñón indicam que estes estimulantes da forma são o programa, o lugar e a construção.

Para Piñón, a resolução de um programa em termos formais é a essência da arquitetura moderna e, por decorrência, da sua. O programa é o maior vínculo que um projeto mantém com a realidade; sendo a realidade o seu horizonte, o sentido de um projeto é articulá-la. Mais do que uma fria lista de espaços, um programa arquitetônico deveria ser visto como uma relação de ações humanas que sugerem a construção de situações elementares. Muito mais que no terreno da linguagem arquitetônica e na expressão, a verdadeira novidade em arquitetura aparece quando muda a sua concepção programática, que é o verdadeiro reflexo do espírito dos tempos.

Na obra de Helio Piñón, programa é concebido como um material estruturado sobre o qual a ação projetual estabelece uma ordem espacial irredutível às suas condições, mas de nenhum modo alheia a elas. A construção formal que caracteriza a arquitetura moderna é exercida essencialmente sobre o programa. Segundo Piñón, o suporte da identidade formal de uma obra deve se basear na idéia estrutural do programa, ao invés de se relacionar à símbolos externos a ele. Não há aqui nenhum resquício daquele funcionalismo radical que conectava função e forma numa relação de causa e efeito. A estreita vinculação com o programa e, ao mesmo tempo, a necessidade de transcendê-lo, é o que possibilita a uma obra de arquitetura manter sua qualidade intacta mesmo quando o programa já se tornou obsoleto.

A relação com o lugar é fundamental para a arquitetura; pode-se dizer com certeza que nenhum projeto de qualidade pode ser indiferente ao seu entorno. Se, por um lado, a arquitetura é sempre construída em um lugar, por outro lado, ela constrói esse lugar, isto é, modifica a situação existente em maior ou menor grau.

Todo lugar é algo complexo, composto de topografia, geometria, cultura, história, clima, etc. Porém, por mais força que possua um lugar, o projeto não será nunca determinado por ele. Assim como não há relação direta entre programa e forma, as relações entre lugar e forma também dependem da interpretação do sujeito que projeta. Essa atenção ao lugar pode ter como resultado a sugestão de uma estrutura visual/ espacial relacionada a ele porém autônoma, no sentido em que possui identidade própria, e cujo reconhecimento é independente da percepção das relações entre objeto e lugar.

Procurando deixar bem clara sua distância dos excessos figurativos do chamado contextualismo pós-moderno, Piñón sugere que o lugar deve ser visto como formalidade latente, não como cenário a ser emulado: “o arquiteto moderno constrói seus artefatos referindo-os a elementos fundamentais do território e não às características circunstanciais de seus limites”. Uma das conseqüências negativas de fundamentar um projeto em referências literais ao seu entorno é que o desaparecimento eventual do referencial deixa o novo objeto órfão e evidencia de modo dramático a sua inconsistência formal. Outras conseqüências dessa atitude camaleônica são a desvalorização da sua qualidade de objeto e a perda do papel ativo que pode desempenhar na constituição de um lugar e da própria cidade.

Quanto à construção, é entendida por Helio Piñón como um instrumento fundamental para conceber, não como uma mera técnica para resolver problemas. A importância da construção para sua arquitetura pode ser medida pela afirmação de que não há concepção sem consciência construtiva. É essa consciência que separa a verdadeira arquitetura da pura geometria e das tendências que preferem abstrair a realidade física dos artefatos que projetam. Muito interessante do ponto de vista do ensino e da prática da arquitetura é a identificação do problema central da criação arquitetônica na fricção entre estrutura física e estrutura visual. O desenvolvimento de um projeto consiste, em grande parte, no ajuste contínuo entre essas duas estruturas. Longe de constituir um entrave à criação arquitetônica, a construção introduz uma disciplina da qual a boa arquitetura tira proveito.

A importância da materialidade de uma obra é ainda mais importante quando o seu caráter não é definido a partir do uso de elementos estilísticos extraídos da arquitetura de outros tempos e agregados à estrutura resistente. Na obra de Helio Piñón os edifícios são o que são, não o que aparentam ser.

Ao mencionar aquilo que é fundamental para a construção da forma na obra e na teoria de Helio Piñón, é igualmente importante apontar o que está ausente, pela importância que essa omissão tem para a prática e o ensino contemporâneos. Trata-se do “conceitualismo” de boa parte da produção atual, da elevação da idéia não arquitetônica ao centro do projeto. O surgimento desse conceitualismo é decorrência da orfandade estética provocada pelo abandono da noção moderna de forma, o qual obrigou à busca de legitimidades alheias à especificidade arquitetônica. Até os anos 60, se recorria a idéias de ordem ou estruturas formais para responder às necessidades sociais, não havendo nenhuma necessidade de controlar o processo de projeto a partir de imagens ou enredos impostos desde o exterior do problema.

A repetida aplicação de idéias não-arquitetônicas ao projeto parece se dever, na maioria dos casos, ao desejo de evitar a angústia inerente ao processo de projeto moderno, em que não se conhece o resultado até o final. No entanto, a presença de um conceito ou idéia não-arquitetônica dominante significa a imposição de um ato de vontade pessoal arbitrário sobre o desenvolvimento do projeto, o qual passa a ser orientado em direção à comprovação da validade do conceito. E o que é pior, a identidade formal do objeto deixa de se apoiar no programa, no lugar e na construção em benefício da concretização daquela imagem inicial. A perda de tectonicidade de boa parte da produção recente é evidência suficiente das conseqüências do conceitualismo.

Sentido e consistência

Outros dois conceitos importantes para Helio Piñón são sentido e consistência, qualidades que considera essenciais a qualquer obra de arquitetura. O sentido de uma obra arquitetônica tem a ver com a orientação da sua incidência na realidade, seja ela geográfica, cultural, histórica, tecnológica, ideológica, etc. A obra adquire um sentido em função da posição tomada pelo projetista em relação ao seu entorno (em termos abrangentes) ou, dito de outro modo, aos materiais com os quais deve lidar, os condicionantes de um projeto.

Uma obra consistente está vertebrada por um sistema de relações internas que garantem sua identidade formal, respeitando e transcendendo os requisitos funcionais.

A consistência formal é o aspecto específico que, na medida em que fundamenta a identidade de uma obra, incide de modo direto sobre o sentido ou sentidos que sua presença gera. A qualidade de uma obra é, em grande parte, determinada pela sua consistência formal.

A consistência formal tem como conseqüência a correção estilística, noção raramente associada à arquitetura moderna, supostamente a-estilística. Piñón define o estilo de uma obra ou de um arquiteto como a freqüência de certas instituições visuais que derivam de um modo específico de abordar os problemas da arquitetura. “Se tais convenções são de natureza formal (9), o estilo tem uma dimensão construtiva, criativa; se, ao contrário, essas características visuais são de natureza figurativa, o estilo responderá a uma matriz mimética”. No primeiro caso, o caráter do objeto deriva da sua estrutura formal e da sua constituição material; no segundo, é algo aposto, desvinculado da sua organização e materialidade, logo inautêntico.

O autêntico e o original

Outro tema constante na obra de Helio Piñón é o da autenticidade. Para ele o autêntico consiste na idéia de verdade como coerência interna; é o que permite que uma obra arquitetônica sobreviva como objeto de qualidade ao desaparecimento do seu programa funcional. O conceito se conecta com vários outros que são centrais na obra de Piñón, como o de identidade formal, como atesta sua afirmação de que seu trabalho trata de intensificar a autenticidade de cada projeto, aquilo que determina sua identidade como construção formal.

Outra relação importante é aquela entre autenticidade e originalidade. Para Piñón, conceber à maneira moderna não significa inventar algo do nada, nem tem a ver com a busca de originalidade e ineditismo. O atributo relevante da arquitetura moderna não é o novo mas o autêntico, característico de projetos ordenados por leis que lhe são próprias. Tal é a indiferença de Helio Piñón em relação à obsessão pela originalidade, que ele chega a afirmar que um projeto deveria começar no edifício que melhor resolveu um caso de características similares.

Subjetividade

A participação ativa do usuário no completamento da obra de arte, introduzida pelo modernismo (10), fundamenta a importância dada por Piñón ao conceito de visualidade, que é, ao mesmo tempo, atributo do objeto e habilidade do sujeito que o analisa. Atributo do objeto no sentido em que manifesta os critérios visuais do autor e qualidade que se orienta a facilitar a experiência da obra por parte de outros. Habilidade do sujeito, pois a visualidade supõe penetração formal da realidade que se observa. Essa habilidade, própria de poucas pessoas atualmente, permite o exercício do juízo estético, que é um ato de reconhecimento de forma, e não uma valoração da forma.

Quatro critérios fundamentais

É de extremo interesse a transposição para a arquitetura feita por Piñón de quatro conceitos extraídos dos textos de Le Corbusier e Ozenfant sobre o purismo. Economia, rigor, precisão e universalidade aparecem na obra de Helio Piñón como critérios de projeto e da sua verificação.

O critério de economia tem a ver com o uso do menor número possível de elementos para resolver um problema arquitetônico, e se refere tanto aos meios físicos quanto conceituais de que uma obra é composta. É importante não confundir economia de meios com minimalismo (cuja adoção é uma decisão puramente estilística) nem com a escassez deliberada de elementos presente em muitos projetos atuais. Ser econômico não significa eliminar elementos necessários (como aqueles que melhorariam o conforto) em benefício da obtenção de uma forma pura. Os produtos de uma arquitetura econômica nunca são simples, mas elementares (11). O domínio da elementaridade é condição indispensável para que se possa chegar a uma complexidade autêntica.

Uma qualidade muito importante dos projetos econômicos é a intensidade a que conduz uma relação formal entre um número reduzido de elementos espaciais (12). Se enganam aqueles que afirmam que a arquitetura que prima por uma economia de meios é regida por uma "lei do mínimo esforço": nada exige maior esforço intelectual do que fazer uma grande obra com poucos elementos (13).

O critério de precisão tem a ver com o ideal de perfeição humana que leva o homem a querer realizar obras bem feitas, concebidas e construídas com exatidão. Um projeto preciso acentua a identidade formal de um artefato arquitetônico, o que não apenas facilita o entendimento da sua estrutura formal em suas várias escalas como também a própria construção material do objeto.

Se o aspecto formal da arquitetura se refere à estrutura relacional ou sistema de relações internas e externas que configuram um artefato ou episódio arquitetônico, projetar com precisão é fundamental para a construção e percepção dessas relações.

Projetar com rigor significa voltar o foco da concepção para aqueles condicionantes do problema arquitetônico que são relevantes e transcendentes, para aquilo que é a essência de um programa, deixando de fora tudo que for acessório. O rigor aplicado na hierarquização de um programa deve ser acompanhado por atitude análoga no momento de definir os elementos que materializam a estrutura formal. Ser rigoroso não implica austeridade e asceticismo, mas a capacidade de excluir de um projeto tudo aquilo que não contribui para a sua intensidade e consistência formal. O excesso de elementos, a arbitrariedade e o historicismo de grande parte da produção contemporânea se devem principalmente à falta de rigor com que se tem praticado arquitetura nas últimas décadas.

A universalidade de um projeto é a condição de que algo seja reconhecido por si mesmo e que possa servir para outros propósitos sem perder sua qualidade intrínseca. Ambos aspectos, o reconhecimento de forma, e sua flexibilidade dependem de uma estrutura formal consistente. Objetos dotados de universalidade adquirem uma qualidade de permanência que permite que atravessem os tempos com dignidade e utilidade. Sua generalidade como solução espacial lhes confere a possibilidade de servirem de base para muitos outros projetos.

Sistematicidade

Uma das preocupações centrais da obra de Helio Piñón é o desenvolvimento de sistemas que possam resolver mais de um problema arquitetônicos. Um sistema formal, que não é nunca uma mera pauta geométrica ou conceitual, nem é rígido mas sólido e flexível, tem um duplo sentido de procedimento para construir e conjunto ordenado de elementos espaciais e construtivos. Ao contrário do que possa parecer, trabalhar de modo sistemático não significa obter resultados iguais, pois o encontro de um sistema com uma situação concreta sempre resulta em uma obra singular. A importância da sistematicidade também se deve ao fato de ser um atributo que confere a uma obra a ordem necessária ao seu reconhecimento como forma ou, em outras palavras, propicia a ação formativa do sujeito.

É de grande interesse a contraposição estabelecida por Piñón entre o pensamento sistemático e aquele que chama de sintomático. Projetar de modo sintomático significa ir resolvendo os problemas individuais ou setoriais de um projeto sem integrá-los a um sistema global ou a uma estrutura formal superior. O resultado desse modo de proceder é normalmente um edifício sem identidade formal, uma massa amorfa de soluções parciais e efeitos isolados.

notas

1
Publicação original: MAHFUZ, Edson da Cunha. “Formalismo como virtude. Hélio Piñón: Projetos 1999-2003”. Arqtexto, ano VII, n. 2, Porto Alegre, PROPAR FAU-UFRGS, 2006. A segunda parte do artigo será publicada no Arquitextos do mês de novembro de 2007.

2
PEREZ, Fernando; ARAVENA, Alejandro; QUINTANILLA, Jose. Los Hechos de la Arquitectura, Santiago, Ediciones ARQ, 1999.

3
Todas as citações não identificadas foram extraídas dos textos e entrevistas de Helio Piñón.

4
Ainda hoje o termo é utilizado de modo pejorativo; poucos são os arquitetos que aceitam ser definidos como formalistas. No entanto, só pode ser usado negativamente se identificar uma preocupação exclusiva com a aparência dos objetos, à custa de todos os outros aspectos que fazem parte de uma situação dada.

5
Curiosamente, uma das melhores definições do conceito de estrutura formal, a qual poderíamos aplicar tanto à arte quanto à arquitetura modernas, vem de um livro sobre tipologia, conceito pelo qual Helio Piñón não nutre qualquer simpatia, no qual Carlos Martí Arís não apenas defende o seu uso em relação à arquitetura moderna, como também o considera desde o ponto de vista da prática do projeto, indo além de considerações meramente classificatórias. Esta “invasão” se justifica neste contexto porque, terminologias à parte, ajuda a entender melhor o conceito de estrutura formal e seu papel na arquitetura moderna. Ver ARÍS, Carlos Martí. Las variaciones de la identidad. Barcelona, Ediciones del Serbal, 1983.

6
ARÍS, Carlos Martí. Op. cit.

7
Ninguém é obrigado a adotar a concepção moderna; pelo contrário, ela se oferece como alternativa às práticas pré-modernas.

8
ARÍS, Carlos Martí. Silencios elocuentes, Barcelona, Edicions UPC, 1999.

9
Ou seja, formam parte de um sistema de relações complexas.

10
A própria idéia moderna de forma tem a ver com a intelecção visual.

11
“O simples é constituído por uma única peça; lhe faltam ingredientes e, portanto, composição. O elementar, por outro lado, surge da composição de alguns elementos, seguindo certas regras”, ARÍS, Carlos Martí. Silencios... Op. Cit.

12
Qualquer dos componentes das duas séries de elementos urbanos projetadas por Piñón pode exemplificar o critério de economia.

13
Toda grande obra se caracteriza por possuir identidade e intensidade formal, sem comprometer a sua funcionalidade e sustentabilidade.

sobre o autor

Edson Mahfuz, Arquiteto, Prof. Titular de Projetos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

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