1. Introdução
Criar o grupo dos novos urbanistas na Europa no ano de 2003, foi iniciativa inspirada no movimento norte americano de mesma raiz. O Congresso para o Novo Urbanismo, CNU estabelecido nos Estados Unidos da América, EUA dez anos antes, a publicação da Carta do Novo Urbanismo em 1996 e, a grande repercussão do novo urbanismo neste país são fatos que precederam à iniciativa européia. Não só o exemplo americano, mas o momento de abertura para a crítica ao Urbanismo Moderno favoreceu a fundação da congênere européia, o Conselho Europeu de Urbanismo, CEU (1).
A retomada do interesse por projetos baseados nos princípios da cidade-jardim, os bons olhos para o processo de participação coletiva sobre as decisões de urbanismo, e a questão da preservação dos recursos naturais estimulou diversos arquitetos e urbanistas europeus a realizar um encontro com representantes do movimento norte americano. O objetivo foi estabelecer as bases do que seria o novo urbanismo na Europa. Este encontro aconteceu na Bélgica, no ano de 2003, cidade de Bruxelas, com extensão para vizinha cidade histórica de Bruges.
Devido às peculiaridades das cidades européias e americanas e a tradição urbanística de cada continente foram identificados pontos comuns e diferenças significativas. As diferenças se fazem devido às características da rede de cidades nos dois continentes, a distancia entre elas, a dimensão dos países, a história e, o contexto cultural em cada caso: o novo e o velho mundo. Os pontos comuns se referem à urgência para:
- minimizar o impacto dos efeitos da urbanização dispersa;
- estimular o uso misto do espaço urbano;
- valorizar a circulação de pedestres;
- incentivar o uso da bicicleta;
- promover no bairro a utilização do pequeno veículo motorizado acionado por energia alternativa ao petróleo;
- dar máxima atenção às demandas da comunidade organizada em pequenos núcleos ou distritos;
- preservar os bens de interesse histórico, através da atribuição de usos atuais para os espaços incorporados ao projeto urbano (2).
Neste artigo vamos colocar em forma de tópicos os conceitos que expressam princípios de apoio à organização física do espaço urbano, utilizando na íntegra o texto original da entidade responsável. Desta forma julgamos estar caminhando a favor da clareza e fidelidade da apresentação, pois ao se colocar uma idéia ou diretrizes de projeto na forma de princípios, estes devem ser auto-explicáveis. Neste caso, nos escusamos pelas citações, poucas mais um tanto extensas. Optamos para a vantagem de ter os quadros dos princípios expressos pelas entidades responsáveis no corpo do texto ao invés de remeter o leitor à publicação por nós consultada.
2. Uma situação favorável para o novo urbanismo na Europa
Na Europa, os pontos comuns com os nortes americanos são evidentes em diversas situações ou, comparecem de forma experimental como o caso da utilização de pequenos veículos, que é ainda uma prática pouco usada nos dois continentes (3). Contudo para caracterizar o contexto europeu aonde vai se lançar o novo urbanismo é importante lembrar o conceito de cidade-jardim desenvolvido pelo teorista urbano Ebenezer Howard (4). Foi base para projeto da primeira cidade-jardim Letchworth Garden City em1903, localizada ao norte de Londres, população atual 33.600 habitantes e, na Alemanha, para o projeto da cidade-jardim Hellerau em 1909, criada por iniciativa do empresário Karl Schmidit, população atual 15.000 habitantes, hoje bairro da cidade de Dresden (505.000 habitantes). Em 1918, através de empreendimento outra vez liderado por Howard foi implantada a segunda cidade jardim inglesa, Welwyn Garden City, população atual 43.250 habitantes (5). Após a segunda guerra mundial no Reino Unido, época da construção das cidades novas com o objetivo de implantar um anel de cidades para formar a região metropolitana de Londres, foi fundada Stevenage,1946, população atual de 79.000 habitantes, Harlow,1947, população atual de 78.000 habitantes, ambas concebidas segundo o genuíno espírito da cidade-jardim apesar da sua maior população. Foram construídas 21 cidades no Reino Unido entre 1946 e 1970, concebidas segundo diferentes critérios de projeto. A última, Milton Keynes, fica a 75 km de Londres abrangendo uma área de 8.800 ha e população atual de 207.000 habitantes. O objetivo do planejamento regional foi formar um aglomerado com mais três pequenas cidades existentes e projetar um quarto núcleo com 150.000 habitantes. Com o centro principal no novo núcleo se espera o crescimento da população até 250.000 habitantes, formando um conglomerado dos quatro assentamentos no esquema das cidades jardim (6). Neste período (1946-1970) o Reino Unido foi um interessante palco de experimentos em planejamento e morfologia urbana (7).
Para se entender o contexto que facilitou a introdução do ideário do novo urbanismo na Europa é indispensável não esquecer o fato desde há muito presente de consciência da preservação histórica, conservação dos bens naturais e, o sentido de cidadania (o individual e o coletivo). Persistem os conceitos expressos por Howard há um século. É preciso recordar a repercussão do plano da cidade de Tapiola e o pós-modernismo dos conceitos desenvolvidos para o projeto do bairro Pounbury, na cidade de Dorchester.
Tapiola, na Finlândia, cuja fundação data de 1953 foi concebida como uma cidade-jardim. Hoje conta com 38.000 habitantes e passou a ser um distrito do município de Espoo, compondo um conjunto de 220.000 habitantes. Seu idealizador foi o jovem advogado Heikki von Hertzen que, junto a Asuntosäätiö – Fundação Habitacional da Finlândia – combateu a construção de apartamentos em blocos repetitivos como estavam sendo construídos em diversos lugares, com argumentos trazidos de sua visão humanista, do conhecimento de projetos e, de diversas visitas realizadas às cidades-jardim do Reino Unido. Hertzen preconizava que as pessoas tinham de viver junto à natureza, convidou diversos arquitetos da Finlândia para desenvolver o plano, organizou um concurso para a área central de Tapiola, trabalhou na viabilização de fundos junto ao governo, na seleção dos construtores e, acabou realizando seu sonho de cidade (8). Tapiola hoje é um ícone quanto à forma de fazer um núcleo urbano, onde os habitantes possam viver próximo à natureza, onde a mistura de usos do solo é equilibrada e o sistema de transportes público é adequado (9). Considerada sua data de fundação e se empregando conceitos de hoje pode-se dizer que a cidade foi desenvolvida por um processo sustentável e possui um sistema exemplar de espaços livres e verdes (10).
O novo urbanismo tem uma componente forte no resgate de tipos urbanísticos e da arquitetura da cidade tradicional e, para alguns empreendedores e arquitetos também no resgate de estilos passados. No âmbito do novo urbanismo americano a retomada dos estilos em novos empreendimentos é conhecida como traditional neighborhood development. Atitude muito bem-vinda ao gosto popular nos EUA e em muitos outros países. Faz um apelo à maneira de viver usufruindo do espaço público, retomando o senso de vizinhança e, aceitando o re-desenho dos estilos tradicionais. Estes conceitos facilitam muito a aceitação do plano da cidade, do bairro de subúrbio, ou mesmo do setor intra-urbano pela população interessada. Facilita a venda dos imóveis, condição básica para o sucesso deste tipo de empreendimento, quase todos da iniciativa privada (11).
No plano intelectual e, com certeza mexendo com a vontade de o nobre ser teorista social, o novo tradicionalismo inspirou Charles, Príncipe de Wales a idealizar e empreender a implantação do bairro Poundbury, extensão da cidade de Dorchester. Isto foi em 1989, em uma área de 162 ha, com previsão de uso misto entre 1200habitantes e a instalação de cerca de 40 unidades destinadas a comércio, serviço e indústrias leves. O projeto para Poundbury apesar de sua pequena dimensão, reflete princípios urbanísticos estabelecidos pelo Príncipe Charles (12) e que foram levados a pratica pelo escritório do arquiteto Leon Krier (13). Dirigida pelo príncipe a Prince of Wales Foundation for the Built Environment, com a colaboração de outros urbanistas, desdobrou os oito princípios do Príncipe para treze princípios a serem seguidos no planejamento e projeto de um espaço agradável para a vida das pessoas. Por se tratar de princípios que apresentam uma relação próxima com uma parte dos vinte e sete princípios do novo urbanismo americano os apresentamos na integra.
Foundation for the Built Environment
Princípios para um projeto urbanístico
01. Lugar: o projeto deve tirar partido das características que fazem com que um lugar seja único; é mal um empreendimento anônimo como caráter.
02. Hierarquia: a constituição física de um edifício deve refletir sua função e sua importância.
03. Escala: os edifícios devem se relacionar com a escala de quem deles faz uso; o edifício e a dimensão de seus espaços não são para ser exagerada ou indiferente.
04. Harmonia: um edifício deve ter individualidade não deixando de interagir com a vizinhança.
05. Limite: o espaço de controle público e o privado devem ser claramente delimitados, assim como o espaço urbano e o rural.
06 Materiais: o projeto deve utilizar materiais locais que se mesclem com a paisagem e envelheçam com dignidade.
07. Decoração: os projetos devem ser ornados com obras de artistas e de artesãos.
08. Comunidade: a comunidade local deve participar de todas as fases do projeto.
09. Espaço público: as áreas externas às edificações incluindo sinalização, iluminação artificial e o mobiliário urbano, devem ser tão bem detalhadas quanto o restante do projeto.
10. Permeabilidade: o conjunto edificado deve permitir passagem através de seus volumes, facilitando o percurso de pessoas e mercadorias.
11. Durabilidade: as edificações devem ser sólidas permitindo uma vida longa, se adaptando a novos usos quando o uso anterior não mais interessar.
12. Valor: o projeto de um edifício deve levar em conta que este tem um valor econômico.
13. Qualidade: um edifício deve ser concebido com maestria devendo refletir a qualidade da construção.
Apesar das possibilidades de aplicação em escalas maiores dos princípios do novo urbanismo, sua origem esta na reformulação da idéia do pequeno distrito suburbano, de localização e organização interna dispersa. Na Europa há uma forte integração das relações sociais na escala do distrito, como o controle do espaço coletivo pela comunidade ou a relação gentil das pessoas com a natureza. Entendemos por isso que a aplicação dos princípios do novo urbanismo poderá apenas vir a refinar princípios que já são práticas usuais. Deixamos de lado a questão da retomada dos estilos passados que não é o mais importante, na medida em que a arquitetura das edificações pode ou não ter este apelo do tipo revival, dependendo do empreendedor e do arquiteto. A rede de cidades se consolidou ao longo dos séculos, com distancias menores entre elas e uma distribuição da trama urbana hierarquizada desde há muito tempo. No entanto, apesar do assentado conjunto de regiões, hoje em dia devido à procura de áreas por preço moderado para a implantação de grandes equipamentos sociais, culturais, industriais, ou destinados a serviços, se estabeleceu relativa dispersão no processo de urbanização. Menos grave que o mesmo processo nos EUA, mas, suficientemente importante para ser considerado no planejamento regional e local. Mega cities e cittá diffusa, “os dois extremos a que me estou referindo, como os dois tipos de ideais, aparecem hoje na Europa como duas modalidades autônomas de implantação a que correspondem modos de vida, atividades, formações sociais diferentes” (15).
Nos EUA, a tradição anglo-saxônica do contato com a natureza, acentuada pela religião protestante e, pela histórica dura luta das famílias de imigrantes para colonizarem o país, desenvolveu arraigado gosto de se viver no subúrbio. No tempo, este gosto tornou-se possível de ser praticado principalmente pela classe média devido ao custo direto e indireto dos deslocamentos para materialização de tal estilo de vida. Condição esta facilitada pela disponibilidade de recursos para estender uma trama viária de alto padrão a todos os pontos onde se manifestava a urbanização. No tempo atual, devido à necessidade de economizar combustível e o objetivo de rever situações onde é possível organizar o transporte coletivo na escala regional e local, as cidades procuram direcionar o planejamento urbano neste sentido. O novo urbanismo cresceu a partir da experiência com os planos e projetos para as pequenas cidades suburbanas ou para setores urbanos das cidades maiores.
3. O Conselho Europeu de Urbanismo
No dia seis de abril de 2003, aconteceu a primeira reunião do Conselho, que deu origem a sua fundação. Ela foi organizada pelos arquitetos belgas Christian Lasserre e Joanna Alimanestianu e por Lucien Steil de Luxemburgo. A administração foi conjunta com os americanos John Massengale e Bill Dennis. Os lideres do novo urbanismo nos EUA, Andrés Duany e Stefanos Polyzoides participaram como consultores para a instalação do CEU. Além de profissionais de escritórios atuantes na área participaram entidades como: o INTBAU, International Network for Traditional Building, Architecture and Urbanism, a Prince’s Foundation for the Built Environment, a Byens Fornyelse (Norwergian Foundation for Urban Renewal), a instituição A Vision of Europe, o Institute of Classical Architecture, a Technische Universitāt Berlin, as escolas de arquitetura da Universidade de Viseu (Portugal), San Sebastian (Espanha), Ferrara (Itália), Napoli (Itália), Glasgow (Escócia). Dos Estados Unidos participaram as escolas de arquitetura da Universidade de Miami e Universidade Notre Dame (16).
Meses depois, no dia seis de novembro de 2003 se realizou nova reunião, agora na Suécia, onde foi ratificada a Carta do Novo Urbanismo Europeu ou, Carta de Stockholm. Este encontro se realizou no bairro Järla Sjö, municipalidade de Nacka, localizado a 8 km do centro de Stockholm. Julgamos oportuno registrar a abrangência do novo urbanismo na Europa através da transcrição “in totum” da Carta e, informar em tópico seqüencial sobre o projeto do bairro Jārla Sjö, cujo projeto é característico do novo urbanismo e por isto foi o local escolhido para a reunião.
Os princípios para planejamento e projeto contidos na Carta apresentam-se a seguir.
Carta do Novo Urbanismo Europeu
Stockholm, 06 de novembro de 2003.
Regiões
01. As regiões são áreas com identidade distinta e reconhecida pelos seus habitantes. Esta identidade pode ser geográfica, cultural, política ou econômica. As regiões não devem se confundir com estados ou nações, mas podem corresponder a fronteiras nacionais.
02. O bem estar de seus habitantes e a identidade regional constituem o fundamento de todas as políticas e princípios de planejamento.
03. A região é constituída pela sua paisagem rural e também pelas ruas, cidades, aldeias e vilas.
Cidades e Vilas
04. As cidades e as vilas são povoamentos com limites bem definidos, distintos e adensados onde um número significativo de pessoas possa viver e ter seus negócios. O adensamento de população facilita a troca de informação e a criação de instituições cívicas e culturais.
05. As cidades e as vilas têm por base uma livre coexistência de vida, comércio e comunicações na proximidade umas das outras. Qualquer segregação significativa de funções ou pessoas na base dos rendimentos, ocupação ou raça, prejudicará o efetivo funcionamento e a qualidade de vida de uma cidade ou vila e tem de ser desencorajada.
06. Para se manter a identidade de uma cidade ou de uma vila é necessário que elas permaneçam fisicamente separadas. Os novos empreendimentos não poderão alterar ou erradicar as fronteiras das cidades e das vilas.
07. As cidades e as vilas possuem centros bem definidos e reconhecíveis. A identidade das cidades e das vilas depende do caráter destes centros.
08. Os centros históricos das cidades e das vilas têm que ser protegidos e revitalizados e, se necessário, devidamente reconstruídos.
09. As cidades e as vilas só funcionam com um centro reconhecível. Qualquer povoamento terá que integrar-se com a cidade ou a vila à qual esta ligada ou organizar-se como uma nova cidade ou vila com uma fronteira física claramente definida.
10. As cidades e as vilas têm que possuir uma rede de estradas, ruas, alamedas e espaços públicos ajustada ao uso e à escala da função que serve. Esta rede ou malha é a que proporciona o máximo de oportunidades para a circulação de pedestres, nas condições mais confortáveis e seguras, permitindo o acesso às outras modalidades de transporte quando necessário.
11. As cidades e vilas possuem edifícios públicos e institucionais, bem como lugares de culto. Os edifícios públicos mais importantes devem ocupar um lugar de destaque na estrutura da cidade ou da vila e a sua arquitetura deverá contribuir para definir o seu caráter. Os edifícios públicos de menor importância deverão distribuir-se pelos diversos bairros.
12. Os parques, campos de recreio e jardins públicos deverão estar distribuídos por todas as cidades e vilas e deverão funcionar como elementos de coesão social.
Aldeias e campo
13. As aldeias são pequenas comunidades, bem delimitadas com origem em atividades agrícolas. Estas terão de possuir os serviços públicos essenciais e poderão possuir pequenas indústrias locais. Nos casos em que o declínio ou o desaparecimento da atividade agrícola transformou as aldeias em áreas residenciais nas proximidades de cidades ou vilas, o seu caráter deverá ser mantido.
14. O campo é constituído pelo território natural, agrícola e florestal, é o meio onde todo o povoamento tem lugar. As vilas, as cidades e as aldeias dependem do campo em matéria de alimentação bem como para a separação das suas identidades. Terá que existir fácil acesso ao campo para efeitos de saúde e recreio da população.
15. As aldeias têm que manterem-se pequenas e dentro dos seus limites, com uma clara fronteira entre os seus edifícios e o campo. Se as aldeias se expandirem, ou expandiram de tal forma que excedam a capacidade dos seus serviços públicos deverão ser reestruturadas como vilas com as adequadas estruturas físicas e funcionais.
16. As novas aldeias deverão ser pequenas, claramente delimitadas e situar-se em meios rurais, podendo, no entanto não possuir origens ou funções agrícolas. Terão que conter os serviços necessários à vida do dia á dia, facilidade de emprego e serviços públicos.
17. Deverá promover-se uma agricultura bem gerida, a proteção da paisagem, o impedimento do crescimento urbano de maneira dispersa e a recuperação para o campo de territórios ao abandono, beneficiando aqueles que fazem do campo sua vida, bem como os habitantes das cidades, vilas e aldeias vizinhas.
Bairros e vizinhanças
18. Os bairros são áreas reconhecíveis com os quais as pessoas podem se identificar. Deverão ser espaços compactos, facilmente acessíveis a pé, possuir usos mistos e serviços necessários à vida do dia a dia.
19. As vizinhanças são pequenas áreas das cidades que possuem um uso ou caráter particular, mas de menor dimensão que os bairros. Este tipo de uso ou caráter poderá ir de uma simples função - tal como uma rua de serviços ou indústrias semelhantes - até um tipo de edificação predominante como edifícios de tijolo aparente, por exemplo.
20. Os bairros e vizinhanças são elementos primários de desenvolvimento e de renovação das cidades ou das vilas. Estas são constituídas pelos diversos e distintos bairros. A identidade dos bairros encorajará os seus habitantes a assumir a responsabilidade pela sua manutenção e melhoramento. O caráter dos bairros e das vizinhanças deverá ser apoiado e preservado.
21. a renovação das grandes áreas de habitação em série, de áreas industriais desativadas, de campos militares abandonados e de outros grupos de edifícios devolutos ou sem uso, degradados, deve seguir os mesmos princípios de planejamento urbano dos bairros ou vizinhanças.
22. Nos bairros deverá se estabelecer uma oferta diversificada de tipos habitacionais e de níveis de custo, para atrair população de diferentes idades, raças e rendimentos e assim promover o seu contato diário. Esta medida estreitará os laços pessoais e cívicos que fazem as verdadeiras comunidades.
23. Uma economia sadia e a evolução harmoniosa dos bairros e vizinhanças poderão ser estimuladas através de tipos pré-definidos de desenho urbano e linhas mestras de desenvolvimento (regulamentos) acordado entre a comunidade. Estes regulamentos deverão ser sempre atualizados.
Ruas, praças, quadras e jardins públicos
24. A arquitetura e paisagismo urbanos tratam, em primeiro lugar, da criação de ruas e praças para uso público. Os edifícios e a paisagem devem definir fisicamente estes espaços e contribuir para o contexto cultural mais vasto do bairro, da vila e da cidade.
25. As ruas e as praças devem ser seguras, de uso fácil e interessante para as pessoas. Quando bem configuradas encorajam o passeio a pé, permitem aos vizinhos conhecerem-se e estimulam as atividades públicas.
26. A segurança é essencial na vida urbana. A concepção das ruas e das praças deverá proporcionar um ambiente urbano seguro, facilmente acessível e aberto.
27. As formas urbanas e os edifícios singulares deverão ser executados de maneira sólida para permitir a permanência e continuidade, bem como a mudança e ampliação.
28. Deverá existir uma estrutura fundiária de pequenos lotes, mantendo assim um bom tecido urbano e proporcionando o potencial para usos mistos.
29. Nas áreas habitacionais são essenciais os pequenos parques, constituindo refúgios sociais e ecológicos e deverão convidar ao seu uso diário.
30. As paisagens, edifícios e áreas históricas contribuem para a manutenção da continuidade, permitem a evolução da vida urbana e constituem a base para o desenvolvimento futuro. Deverão assim ser preservadas, renovadas ou reconstruídas.
Arquitetura e arquitetura paisagística
31. Os edifícios singulares deverão estar ligados à sua envolvente de forma sensível. Este assunto transcende as questões de estilo. A arquitetura urbana deverá respeitar o contexto histórico e urbanístico do local onde está inserido, ser diversificada e receptiva ao novo.
32. A arquitetura e o desenho paisagístico deverão nascer do clima, topografia, história e práticas construtivas locais, em harmonia e enriquecimento do seu contexto.
33. Todos os edifícios deverão proporcionar aos seus habitantes um claro sentido de localização, clima e tempo. O aquecimento ou o arrefecimento deverão sempre que possível ser proporcionados ou complementados com meios eficientes de recursos naturais e tecnologias regenerativas.
Transportes
34. Os transportes devem ser coordenados a nível regional, entre regiões e dentro das regiões. Os transportes públicos, os fluxos de pedestres, o uso de bicicletas (e outras formas de transporte individuais) deverão ser coordenadas para maximizar a mobilidade e a reduzir a dependência do automóvel particular.
35. Os corredores de transporte ligam as cidades, os bairros, as vilas, e as vizinhanças. Estes podem ser vias ou estradas principais, caminhos de ferro, rios ou parques.
36. Os corredores de transporte, quando bem planejados e coordenados podem estimular a integração entre cidades e aldeias e contribuem revitalizar os centros urbanos. Os corredores de transporte não devem deslocar os investimentos dos centros existentes.
37. Centros de usos mistos, compactos, acessíveis a pé, deverão rodear as estações e os principais pontos de transportes públicos. A vida diária deverá poder acontecer sem se recorrer ao automóvel particular.
38. A qualidade das formas urbanas e dos percursos de pedestres deverá prevalecer sobre as auto-estradas, vias rápidas ou áreas de estacionamento de automóvel. As grandes áreas para estacionamento de automóveis não deverão sobrepujar as ruas e praças.
A importância da Carta decorre do esforço para sistematizar de forma integrada os elementos da configuração dos espaços do Homem em relação ao espaço natural, estabelecendo toda a hierarquia possível para sua organização física. Destes princípios podem resultar códigos e manuais detalhando ainda mais o que poderá ser o plano e o projeto segundo a ótica do novo urbanismo europeu. Na verdade esta Carta européia é uma espécie de manifesto também, tratando de aspectos éticos e de estratégias de política urbana. A classificação inicial dos princípios em regiões; cidades e vilas; aldeias e campo; bairros e vizinhanças; ruas, praças, quadras e jardins públicos, ajudam na compreensão de como podem ser pensados tanto como analise ou projeto as diferentes escalas da morfologia urbana. Consideradas as peculiaridades de cada país, na Europa poderão se identificar seções diagramáticas do território no formato de código e manual (17). Observamos que esta carta européia detalha mais do que seu documento suporte, a Carta do Novo Urbanismo-Americano, a transição da região para a vizinhança e o centro urbano, mas não inclui a “mega-city” citada por Portas, ou seja, questões relativas aos aglomerados de alta densidade populacional. Não é feito menção a isto e, mas o planejamento envolvendo uma grande cidade poderá fazer uso dos princípios estabelecidos pela Carta.
4. Projeto urbano do bairro Järla Sjö
Järla Sjö é um bairro da cidade de Nacka (80.000 habitantes), vizinha de Stockholm (788.300 habitantes), na Suécia. Devido à configuração geográfica da região, Järla Sjö fica distante apenas 8 km do centro da cidade de Stockholm. Sua superfície é de 10 hectares, a população fixa é de aproximadamente 2.500 habitantes e possui cerca de 1500 postos de trabalho, ocupados parcialmente por residentes. Os espaços para comércio e serviços localizam-se em sua grande maioria nos edifícios industriais preservados. Järla Sjö possui uma escola, diversas creches, lojas, restaurantes, esportes e demais serviços. Na área central destacam-se um antigo edifício industrial reciclado para comércio, serviços e pequenas unidades residenciais.
O setor se desenvolveu em continuidade a transformação das atividades de uma área que anteriormente era de predominância industrial. Ali se implantou uma importante indústria de turbinas, cerca de 1860 por Gustaf de Laval, que só foi desativada nos anos sessenta do século XX. Alguns anos depois foi implantada a AGA Company em um sítio lateral ainda dentro de Järla Sjö. Com a saída das grandes indústrias, a área entrou em declínio sendo ocupada por uma diversidade de pequenas empresas do segmento de serviços. Desde então devido à acessibilidade fácil e a beleza do local junto ao lago Järla, se cogitou de mirabolantes planos de desenvolvimento urbano. Nos anos noventa os proprietários da área promoveram concurso para um projeto urbanístico cujo vencedor propunha a demolição da maior parte das edificações existentes e a implantação de conjuntos de blocos e casas segundo os princípios funcionalistas do urbanismo moderno. Este plano sofreu uma forte recusa por parte dos moradores das casas isoladas que existiam no setor e na vizinhança acabando sendo descartado. Em 1998 Järla Sjö foi adquirida pela Oskarsborg AB, com o propósito de fazer um projeto que atendesse as aspirações dos moradores e fosse viável comercialmente. Associou-se a Wihlborgs, companhia imobiliária, e contrataram os arquitetos Vernon Gracie e Håkan Jersenius como consultores, para elaborar um novo programa e proposta urbanística.
O novo plano foi acompanhado pelo departamento de planejamento do município de Nacka. Sua elaboração se desenvolveu através de consultas a comunidade, para discutir idéias e objetivos, incorporando-os nas diretrizes do trabalho. Como apoio a decisão final do que fazer, foi realizada uma exposição conjunta do plano antigo - concurso de 1990 – e, do novo plano. Publicamente era necessário se obter um “sim” para a escolha do plano que seria levado a nível executivo para Järla Sjö. E, com certeza se oficializar o abandono do plano premiado no concurso.
Nesta época já tinha sido formado o consórcio das empresas HSB, Riksbyggen e Wihlborgs para dar prosseguimento ao plano. Ficou estabelecido que a meta fosse construir um conjunto sustentável do ponto de vista social, ecológico, físico e econômico. Ao final de 1999 a firma Småstaden Arkitekter AB, da qual o arquiteto Häkan Jersenius faz parte foi convidada para integrar o grupo consorciado. Para a construção de toda a obra foi contratada a firma PEAB.
Em seus propósitos, o plano se caracteriza por:
- selecionar as edificações para serem preservadas através de critérios técnicos e ausculta à comunidade;
- ocupar os espaços entre os imóveis selecionados para preservação com edifícios de dois a quatro pavimentos. Segundo o objetivo de ser mantido baixo coeficiente de aproveitamento, harmonia com o existente e, valorização das visuais horizontais;
- organizar os edifícios em pequenos grupos formando pátios, padrão comum nas pequenas cidades da Suécia. A opção por pátios é enfatizada por serem muito apreensíveis pela comunidade, determinando limites claros entre os espaços privados, de transição e público. Eles dão sensação de segurança para as pessoas, sentido de lugar e, possibilitam boa interação da comunidade. Eles são flexíveis, em termos de conceito e contexto, o que favorece o uso múltiplo. Como resultado, a identidade do lugar pode ser grande e, também a freqüência dos contatos informais entre as pessoas;
- considerar o tratamento do espaço exterior à edificação como parte integral da proposta urbanística. Isto começa com a preservação da vegetação significativa existente (boa parte das árvores são adultas), áreas de lazer (espaços consolidados para adultos e crianças), algumas facilidades como, por exemplo, atracadouro (pier) em utilização e em bom estado de conservação;
- estimular o princípio de que toda unidade residencial em contato com o chão tenha um pequeno jardim (espaço de transição, sem qualquer tipo de cerca);
- complementar os espaços públicos com o plantio estrutural, o que deverá ajudar definir o sentido de lugar para os diferentes propósitos;
- implantar o sistema de distribuição interna do tráfego motorizado através de percursos que permitam continuidade da circulação em relação às vias principais (loop), evitando-se o sistema de entrada e saída pelo mesmo local (cul de sac), devido sua falta de eficiência para a infra-estrutura urbana;
- evitar as grandes áreas de estacionamento, se utilizando parar ao longo das ruas e o uso das vagas destinadas ao período comercial para os residentes à noite. Garages de uso público foram previstas em três localidades centrais de Järla Sjö;
- projetar as edificações aproveitando o melhor possível a altura do sol que é muito baixa na latitude local, particularmente no inverno (ou, com maior precisão na metade do ano, em que a luz solar é rara). Isto influi na forma e orientação dos telhados previstos para receberem placas solares, além dos cuidados com as espessas camadas de neve no inverno;
- utilizar o espectro de cores fortes nas paredes externas, o que é tradicional nos países nórdicos, para contrastar com a claridade da neve no inverno.
Do ponto de vista geral de estratégia para a ocupação do território Jārla Sjö seguiu o processo que ocorreu em diversos pontos da Suécia valorizados pela presença da água. São locais procurados para moradia, trabalho e de interesse para turistas e estão sempre próximos a centros econômicos e financeiros maiores (18).
notas
1
No artigo “A carta do novo urbanismo norte-americano” apresentamos um pequeno histórico da eclosão do movimento e os princípios da Carta do Novo Urbanismo. Integração, n. 37, São Paulo, USJT, nov. 2006. Republicado em MACEDO, Adilson Costa. “A carta do novo urbanismo norte-americano”. Arquitextos, n. 082.03. São Paulo, Portal Vitruvius, mar. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq082/arq082_03.asp>.
2
Fonte de referencia para a fundação do CEU, são os websites publicados pela entidade.
3
O conjunto BEDZED, Beddington Zero Energy Development, localizado no sul de Londres, além de se utilizar dos princípios de uso misto dos espaços favorecendo a integração social, oferecerem locais amenos para pedestres e bicicletas, tem o propósito de reduzir o emprego de energia para 10%.
4
HOWARD, Ebenezer (1898). Garden cities of to-morrow. Cambridge, The MIT Press, 1965.
5
Em 1920, foi criado o bairro Jardim América na cidade de São Paulo, devido a empreendimento da companhia inglesa City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Nos EUA, destaca-se a influencia de Howard no projeto de bairros de subúrbio e cidades, em especial na área de Boston.
6
GOODMAN, David C. The european cities and technology reader: post-industrial city. London, Routledge. 1999.
7
Indicamos a população junto com as menções às cidades para dar um sentido de suas dimensões, comparado com dimensões observadas em áreas metropolitanas de um país da América Central ou do Sul.
8
HERTZEN, Heikki, SPREIREGEN, Paul. Building a new town: Finland’s new garden city, Tapiola. Cambridge, The MIT Press, 1973.
9
BALJON, L. Parks, green urban spaces in European cities. London, Birkhauser, 2002.
10
Idem, ibidem
11
BRESSI, Todd, The Seaside debates: a critique of the new urbanism, New York, Rizzoli, 2002.
12
CHARLES, Prince of Wales. A vision of Britain. London, Doubleday, 1989.
13
KRIER, Leon. Architecture, choice or fate. London, Papadakis Publishers, 2007.
14
As informações relativas ao projeto de Jārla Sjö foram obtidas através de contatos com o Nacka Kommun e com os arquitetos Vernon Gracie e Håkan Jersenius. Uma visita ao local foi realizada em julho de 2007.
15
PORTAS, Nuno. “A cidade contemporânea e seu projeto”. In: Dispersão urbana, diálogos sobre pesquisas Brasil-Europa. LAP, Laboratório de Estudos Sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação. São Paulo, FAUUSP, 2007, p. 112-139.
16
As informações sobre os participantes institucionais foram obtidas nos websites sobre a criação do Conselho Europeu de Urbanismo, indicados no item 18. Pertencendo a escola de arquitetura da universidade de Miami, mas sempre colocado em destaque aparece o Knight Program in Community Building.
17
Fazemos referencia ao transect diagram, de Duany, Wright e Sorlien, in SmartCode & Manual, compreendendo seções de espaços do rural ao centro urbano. Ver DUANY, Andres; WRIGHT, William; SORLIEN, Sandy, et alt. Smart code and manual, version 8.0. New Urban Publications Inc. NY. 2005.
sobre o autor
Adilson C. Macedo, Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP em 1987, Mestre de Arquitetura e Projeto Urbano, Graduate School of Design, Universidade de Harvard, GSD/HARVARD em 1977, arquiteto pela FAUUSP em 1964. Professor dos cursos de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP e da Universidade São Judas Tadeu, USJT. Diretor da empresa LOCUM Arquitetura e Urbanismo Ltda onde é responsável pelo desenvolvimento de planos e projetos.