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architexts ISSN 1809-6298


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O autor busca entender a ação municipal, na transformação de áreas urbanas a partir dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, fundamentados no Programa de Reabilitação do Centro de Sâo Paulo: Ação Centro, e voltados à redução de desigualdade


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SOMEKH, Nadia. Projetos Urbanos e Estatuto da Cidade: limites e possibilidades. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 097.00, Vitruvius, jun. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.097/131>.

As cidades brasileiras são a manifestação espacial de uma sociedade desigual e excludente. Neste texto procuramos entender o alcance da ação municipal, na transformação de áreas urbanas no Brasil a partir dos instrumentos previstos no Estatuto da cidade, fundamentados na experiência do Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo: Ação Centro, e voltados para a redução de desigualdades.

Embora entendamos que o Estatuto da cidade tenha representado um avanço real e apresenta um extenso rol de novos instrumentos é preciso sempre verificar o que é essencial utilizar em cada caso a ser enfrentado. É importante legitimar a aplicação desses instrumentos, priorizando a questão habitacional a redistribuição de renda e a inclusão social.

De maneira geral a recuperação dos centros urbanos é tratada através de grandes projetos pontuais que aparentemente se contrapõem aos Planos Urbanos. O enquadramento institucional dos Planos Diretores é necessário para garantir continuidade e definir prioridades, principalmente nas cidades brasileiras. Projetos urbanos devem se tornar decorrência do planejamento das cidades.

Hoje nossas cidades se ressentem de velhos e novos problemas. A questão habitacional ainda constitui um problema central, além do desemprego e violência. Elaboramos o Programa Ação Centro baseado num tripé de inclusão social desenvolvimento local e gestão compartilhada. A crítica a experiência internacional de projetos urbanos permite verificar que esses três pontos são essenciais para tratar da cidade contemporânea.

Para intervir na cidade é importante entendermos como o espaço é produzido, bem como o papel do Estado como articulador especial dos agentes que produzem a cidade. A ação do Estado pode ser sintetizada através da obtenção de recursos, formulação de normas, leis e planos para investi-los. Além disso, para efetivar sua ação de investimentos na articulação de agentes a questão da gestão urbana assume um papel central.

Hoje o Brasil é essencialmente urbano, mais de 80% dos habitantes vivem nas cidades. O processo de urbanização brasileiro, desigual e incompleto reproduz a exclusão através da regulação urbanística. A regulação voltada para as classes de mais alta renda, não enxerga a pobreza existente na cidade real.

Estruturamos este trabalho em três partes: a primeira analisa a experiência internacional de projetos urbanos, a segunda aponta os limites do estatuto da cidade no desenvolvimento de projetos urbanos e finalmente a terceira apresenta o programa ação centro, para uma reflexão concreta.

A experiência internacional em projetos urbanos

O conceito de Projeto Urbano, segundo vários autores (1) é difuso e tem especificidades nos países onde foi instituído com diversas definições: áreas de requalificação, regeneração, operação urbanas. Roncayolo propõe uma história das intervenções urbanas que no caso francês tem em Haussman um interesse paradigmático, diferindo também das intervenções nos anos 60, marcadas pelo forte esquematismo, fragmentação e de justaposição de lógicas setoriais. Propõe uma noção mais complexa religando, além dos recortes setoriais uma unidade territorial em síntese uma volta à arquitetura e à cidade. Para Lungo (2) constituem-se em obras emblemáticas, operações urbanas que assumem a forma de programas de intervenção concretizados em um conjunto de ações que, por sua integração, têm um impacto profundo no desenvolvimento da cidade.

Apontado por Ingalina (3) como conceito guarda chuva, tem um marco referencial no projeto de recuperação do Centro Histórico de Bologna, no final dos anos 60, onde as inovações tais como: participação, inclusão social, mistura de usos, escala de bairro aliada à recuperação do Patrimônio Histórico (4) que se perdeu na cidade contemporânea.

Para Nuno Portas (5), a chave das transformações urbanas bem-sucedidas é o programa de intervenções que se constitui no processo de concepção e viabilização, não necessariamente o desenho urbano-arquitetônico e muito menos o quadro das políticas urbanas expressas nos Planos Gerais e Estratégicos. Além disso, o autor considera que projetos de intervenção “imateriais” complementam de forma considerável o possível sucesso das transformações.

A perda de espaço dos instrumentos tradicionais de regulação de uso do solo, assim como sua limitação na capacidade de previsão e integração com a dinâmica urbana real, em face das intervenções de mercado, levou à valorização extremada dessas últimas. Efetivamente, as intervenções fragmentadas apresentam, na experiência internacional, capacidade de modificação mais controlada das variáveis de transformação do ambiente construído.

A conclusão equivocada é a defesa de projetos urbanos pontuais em detrimento dos planos e da regulação global da cidade. Um tipo de ação não exclui o outro. E, ainda, em realidades de extrema pobreza e desigualdades sociais, os planos globais servem para definir prioridades, além de estabelecer uma ordem de intervenção, relacionando os projetos de recuperação mais necessários e estratégicos para a cidade como um todo.

Alguns elementos recorrentes podem ser ressaltados na experiência internacional de projetos urbanos. No caso de Puerto Madero, em Buenos Aires, assinalamos a importância da criação de uma entidade administrativa público-privada para a implementação do projeto. Além disso, destaca-se a recuperação do patrimônio histórico constituído pelos antigos armazéns, a preocupação com a questão ambiental concretizada na implementação de parques, com jardins e espaços públicos generosos. A busca de um programa com a definição de atividades, bem como do uso residencial, também tem seu exemplo Parc Citroen, além da implementação de um parque na área deixada pela indústria automobilística, define atividades do terciário avançado e a mistura de classes sociais na definição do uso residencial. Nos dois casos a intervenção foi possível pela propriedade pública da terra urbana.

A característica de misturas de usos e de classes sociais – bem como a definição de uma entidade administrativa central – está presente na maioria das operações, que têm no poder público o grande agente coordenador e impulsionador, por intermédio de pesados investimentos para alavancar os resultados dos projetos propostos.

Nas experiências de Bilbao e na região de Milão, a questão econômica regional é encarada de forma diferenciada. Na primeira, a reconversão industrial exigiu do poder público um esforço de criação de inúmeras entidades de planejamento voltadas para a atração de investimentos (6). Na segunda, a Agência de Desenvolvimento Milão-Norte; sem a entidade metropolitana, desenvolveu projetos urbanos de resultados voltados a um desenvolvimento endógeno.

Em Bilbao, é emblemática a implantação do Museu Guggenheim como “âncora cultural”, assim como, em Milão, o projeto Pirelli da Biccoca do Teatro Scalla 2. Neste caso, a fábrica da Pirelli ainda mantém 10% de sua produção na área, as residências dos trabalhadores foram preservadas, por se constituírem patrimônio histórico recente, e a implantação de uma unidade universitária, com foco na inovação tecnológica, completa a produção de empreendimentos residenciais para estudantes e a população de diversas faixas de renda.

É interessante destacar a atuação da prefeitura de Sesto San Giovanni, na região do Norte de Milão, que tem 70% de sua área esvaziada de produção industrial (incluindo parte dos domínios da Pirelli). O esforço dos quadros do município, apoiados pela Agência Nord de Milão, obteve êxito na reconversão de grandes plantas de siderurgia, como a Falck e a Breda, em pequenas e médias unidades produtivas, devido a um esforço de negociação com os sindicatos, resultando na capacitação para o empreendedorismo dos trabalhadores desempregados das grandes unidades metalúrgicas.

Não só em Milão, como também em Londres, na experiência de Docklands, a participação da iniciativa privada, em larga escala, nos empreendimentos imobiliários, só se realiza na medida da implantação de linhas de transporte que criaram uma centralidade, ampliando a acessibilidade para o centro. No caso de Milão, uma linha com apenas duas paradas une a nova centralidade ao norte com o centro da cidade. Em Docklands, a linha Jubilee, implantada em 2000, reafirma o sucesso imobiliário de um projeto anteriormente considerado fracassado, permitindo sua posterior expansão.

Nos anos 90 fica mais clara a contraposição entre Planos e Projetos Urbanos, que alia a crítica recorrente ao planejamento tradicional (inefetivo), ao sucesso da experiência de Barcelona. Para Borja e Castells (7) grandes Projetos Urbanos são os elementos que definem a construção da cidade metropolitana, que por sua vez deve construir seu Planejamento Estratégico baseado numa concertação ampla. A crítica de Nuno Portas in morandi (8) traduz a polemica na construção da cidade pelo mercado e ressalta a importância do programa, da produção de espaço público de qualidade, da não expulsão da população de mais baixa renda pela valorização imobiliária que pode ser obtida através da articulação do projeto ao plano, para a obtenção de efeitos ampliados e duradouros.

Em síntese, os elementos recorrentes apontados pela experiência internacional, além do domínio fundiário incluem uma unidade de gestão centralizada, a importância nuclear da questão dos transportes gerando as chamadas novas centralidades, a existência de âncoras culturais, bem como de ambientes ou setores voltados para a inovação tecnológica, bem como o investimento na ampliação da qualidade dos espaços públicos oferecidos à população. Acrescente-se a essa receita a freqüência com que projetos arquitetônicos de grife são encontrados no espaço dessas mesmas experiências, com alguns nomes recorrentes, como César Pelli, Norman Foster, Jean Nouvel, dentre os mais procurados.

A noção que adotamos tem a ver com os problemas recorrentes que podem ser observados no atual estágio do capitalismo e as possibilidades de reversão. A cidade capitalista é por essência excludente. No estágio neoliberal ouvimos falar de uma estratégia global de gentrificação (9) e é crucial desenvolver o conhecimento de mecanismo que garantam a coexistência de diversas classes de renda. Observamos ainda que a produtividade do capital tem aumentado através de maior mecanização produtiva e conseqüente crescente desemprego. É possível pensar o desenvolvimento local como constituinte de novas alternativas de trabalho e renda e ainda complementar ao desenvolvimento do grande capital.

Finalmente entendemos que, para a continuidade necessária às implementações dos projetos urbanos, é necessária a sua gestão compartilhada e a composição de uma esfera pública ampliada, que inclua a sociedade civil, e que extrapole a responsabilidade estatal única na transformação do espaço urbano contemporâneo.

No caso da área central de São Paulo, agregamos à requalificação de espaços públicos, a reorganização da gestão, a melhoria do ambiente, a definição da estratégia econômica voltada para o desenvolvimento local e a inclusão social, a preocupação com a redução das desigualdades e a busca de uma construção coletiva do espaço urbano.

O Estatuto da cidade, operações urbanas e projetos urbanos no Brasil

O Estatuto da cidade aprovado em 2001, tem sua origem formulada na lei de Desenvolvimento Urbano, gestada desde 1982. No Brasil fundamentalmente as inovações do Estatuto da Cidade situam-se em três áreas. Primeiramente em um conjunto de instrumentos voltados para induzir, mais do que normatizar as formas de uso e ocupação do solo. Uma nova estratégia de gestão é formulada, incorporando a idéia de participação direta do cidadão em processos de construção dos destinos da cidade. E, finalmente propõe-se a ampliação das possibilidades de regularização de áreas urbanas hoje consideradas ilegais (10). Basicamente o Estatuto da Cidade valoriza o local na solução de problemas urbanos permitindo um novo formato de atuação marcado principalmente pelo princípio da gestão democrática.

Dos vários instrumentos propostos devemos destacar aqueles que garantem espaço de participação e do direito a moradia. Entendemos este direito de forma mais ampla que o simples acesso a casa, mas sim todas as condições urbanas.

O Estatuto da cidade trouxe novos poderes para as Administrações Municipais no sentido de atender mais plenamente a função social das cidades. O primeiro deles é a possibilidade de aplicação do 4º artigo 182 da Constituição de 1988.

Esse artigo prevê a aplicação sucessiva dos seguintes instrumentos no imóvel que não cumprir a função social definida pelo Plano Diretor: parcelamento, edificação ou utilização compulsórias, IPTU progressivo no tempo e, finalmente, desapropriação com títulos da dívida pública.

Para a aplicação desses instrumentos, serão necessários, além da definição no Plano Diretor das propriedades urbanas e sua respectiva função social, que serão sujeitas à aplicação desses instrumentos, a definição, através de lei municipal específica, das exigências concretas para a propriedade urbana atender a sua função social, bem como os procedimentos e prazos para o cumprimento das exigências.

A concessão de uso especial para fins de moradia poderá garantir que a população de baixa renda, das favelas localizadas em áreas públicas, não seja expulsa após a implantação de projetos urbanos.

A separação do Direito de Superfície do Direito de Construir é um mecanismo eficiente de recuperação da valorização imobiliária, produzida socialmente e, historicamente, apropriada por poucos. Além disso, a possibilidade de transferir o direito de construir constitui-se num mecanismo de garantia de preservação de áreas históricas ou de qualidade ambiental (áreas de mata ou mananciais de água).

O Direito de Preempção permite ao Poder Público municipal a prerrogativa na obtenção de áreas estratégicas ao desenvolvimento da cidade, bem como a manutenção do preço do imóvel livre de processos especulativos de valorização fundiária e imobiliária.No caso de Projetos Urbanos que envolvam mais de um município, a articulação regional de municípios conurbados permitirá a gestão compartilhada de serviços e infra-estrutura, além de prever desenvolvimento sustentável.

A operação urbana consorciada é definida como conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo poder público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.

Essas operações prevêem o estabelecimento de índices de parcelamento, uso e ocupação do solo, regularização de construções e reformas. As operações urbanas devem decorrer do Plano Diretor estabelecendo diretrizes básicas. Entendemos, no entanto, que um programa de gestão que articule várias ações pode ser mais efetivo e duradouro.

A contrapartida a ser exigida aos proprietários, usuários permanentes e investidores privados – forma de equilibrar os investimentos públicos com o adensamento previsto, “calibrando” o valor da contrapartida como forma de incentivar usos compatíveis. E finalmente estão também previstas formas de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil (gestão).

Podem ser também definida nas operações urbanas consorciadas: não só a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e alterações das normas edilícias e a regularização de construções. Os recursos obtidos devem ser aplicados dentro do perímetro estabelecido da operação urbana. Para que haja um efeito redistributivo é importante que parte significativa desses recursos sejam investidos em Programas Habitacionais de alto impacto social, isto deve ser garantido na própria lei e defendido no Conselho Gestor da Operação.

A emissão de certificados de potencial adicional de construção – CEPACs podem ser livremente negociados, mas conversíveis em direito de construir (m2) na área da referida operação. Uma crítica recorrente é a financeirização da cidade e a possibilidade de ações especulativas decorrentes. A novidade do Cepac como título ainda impede a confirmação desta crítica.

O Estatuto prevê o controle das Operações Urbanas, ou seja, execução de medidas que evitem que as operações sejam somente “liberações” de índices construtivos para atender interesses particulares, ou valorização imobiliária que expulse atividades de menor renda.

O objetivo das operações urbanas é viabilizar intervenções de maior escala, em atuação coordenada entre o poder público e os diversos atores da iniciativa privada. Entretanto no caso das OU Anhangabaú (1991) e da OU Centro (1997) poucos foram os resultados da aplicação desse instrumento.

Quando se fala de Projetos Urbanos entendemos que se trata de um conjunto de ações que envolvem grandes obras de infra-estrutura ou operações urbanas, no caso brasileiro que prevêem o financiamento de obras públicas através da venda do direito de construir. Estes projetos podem assumir uma tipologia que envolve a recuperação ou regeneração de áreas industriais, portuárias, ferroviárias, de centros históricos ou centralidades vinculadas a modos de produção ou transporte a serem atualizados.

Os projetos urbanos nos países centrais envolvem grandes somas de recursos públicos, no Brasil é a iniciativa privada que investe a partir da baixa capacidade pública de investimentos.

É importante reiterar o Estatuto da cidade, principalmente para garantir uma gestão democrática da cidade, favorecendo as Administrações Municipais que têm o compromisso de promover uma melhor qualidade de vida urbana para a maioria dos seus cidadãos.

Na Região Metropolitana de São Paulo o Projeto Eixo Tamanduateí de 1997 inaugurou o debate sobre a reconversão da orla ferroviária do processo original de industrialização brasileira, através de uma operação urbana. Foram convocados escritórios de arquitetos nacionais e internacionais para propor intervenções possíveis na área que faz parte de um processo inovador de governança metropolitana através do consórcio intermunicipal do grande ABC. Outros projetos no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife propuseram ações e planos estratégicos, o diferencial brasileiro, no entanto, reside na baixa capacidade do poder público em investir recursos em áreas de transformação urbana. Nessas experiências foram elaboradas operações urbanas, articuladas ao processo geral de planejamento. A principal crítica que se faz às operações urbanas principalmente de São Paulo, é a falta de Projeto global, com desenho urbano, transparência (superado pela existência de conselhos gestores) e efetiva redistributividade e impacto social positivo. Entendemos que os instrumentos do Estatuto da Cidade se bem utilizados e articulados nos PD e nas operações urbanas, poderão constituir avanços consideráveis, garantindo espaços democráticos, participativos e ecologicamente equilibrados nas cidades brasileiras. No entanto, de nada servem instrumentos técnicos, sem a mobilização da população e a construção coletiva de uma cidade mais justa. É importante garantir espaços que permitam esta ação coletiva.

O Programa Ação Centro: inclusão social desenvolvimento local e gestão compartilhada

O Programa Ação Centro reorganiza o anterior Procentro, reformulado em 2001, que previa definir diretrizes gerais para a área central e que vinha obtendo resultados limitados de intervenção. O Ação Centro, objetivava a coordenação geral das ações de todos os setores do governo, bem como a abertura para uma gestão compartilhada com a sociedade civil de maneira mais ampla. O objetivo principal era reconstruir o Centro. Isto implica torná-lo o lugar da diversidade de atividades e de classes sociais.

O Programa de Reabilitação (11) da Área Central de São Paulo definiu como território de abrangência os distritos censitários da Sé e da República, após a realização de pesquisa quantitativa com setores sociais referentes a distintas faixas de renda. Para esses segmentos, o centro é representado por ícones como a Praça da Sé, o Viaduto do Chá, o Teatro Municipal e a Praça da Republica, englobados pelos distritos eleitos para foco da intervenção.

Esses dois distritos têm uma área de 4,4 km², com 69 mil habitantes e 8% dos empregos formais do município, sendo destino de 29% do transporte coletivo; possuem uma circulação flutuante de 2 milhões de pessoas por dia, vários edifícios públicos, 763 edifícios tombados e 147 até então em processo de tombamento.

A estrutura radiocêntrica da cidade fez com que historicamente fosse reforçada a passagem pelo centro. A linha ferroviária noroeste-sudeste isolou a área central dos bairros das zonas Leste e Norte. E a predominância de bairros do setor sudoeste na localização das classes de mais alta renda isolou o centro das novas centralidades produzidas pelo capital imobiliário.

A estruturação do Programa de Reabilitação Ação Centro partiu da leitura dos principais problemas a serem enfrentados tendo como foco a questão habitacional entendida de maneira mais ampla: moradia e mais condições urbanas que incluem trabalho e emprego, primeiro problema constatado a desvalorização imobiliária e afetiva da área central. A criação de novas centralidades, como lógica do setor imobiliário na criação de novos produtos, teve como resultado o deslocamento das elites e a popularização do centro, processos concomitantes à degradação do quadro construído e à perda da identidade afetiva da memória e da história paulistana ali consubstanciadas.

A incapacidade do centro no sentido de oferecer espaços terciários da qualidade exigida pelo mercado, a desqualificação do espaço público e a deterioração dos imóveis históricos reforçou a existência de edifícios vazios nos andares superiores e ocupados apenas no térreo. O Censo IBGE 2000 indicou a existência de 45 mil unidades vazias na área central.

Para a recuperação do espaço público foram definidas ações articulando várias secretarias da Prefeitura e a Subprefeitura da Sé, criada em 2002. Uma zeladoria especial do subprefeito previa não só a varrição dez vezes ao dia e a lavagem das ruas quatro vezes ao dia, mas também uma equipe de manutenção volante para pequenas obras de reparo, principalmente dos calçadões.

A Secretaria Municipal do Trabalho, Desenvolvimento e Solidariedade previu um projeto para o comércio ambulante, com o cadastro dos 6000 vendedores existentes, em relação aos 1248 regulares, que possuíam o Termo de Permissão de Uso (TPU), prepondo sua capacitação para outras atividades, como o Projeto Ta Limpo, em parceria com a Bovespa.

A Secretaria Municipal de Segurança Urbana, por meio da proposta de gestão comunitária, previu a existência de 200 guardas ciclistas, bem como a implantação de oito bases de segurança. As estatísticas criminais apontam muito mais a sensação de um centro sem segurança do que uma insegurança efetiva; portanto, priorizou-se a construção de um sistema coletivo, ancorado nos guardas volantes (de bicicleta) e na distribuição das bases.

A população sem teto teve no Projeto Boracéia a possibilidade de aceitar o abrigo negado nos albergues tradicionais, que impedem a entrada de animais de estimação e dos carrinhos dos catadores de papel. O Boracéia, além de dispor de alojamento, era gerido por entidades que forneciam apoio médico, psicológico e de capacitação para microempreendedorismo.

A recuperação do patrimônio histórico estava prevista em ações do governo municipal, com destaque para a renovação da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e do Edifício Martinelli, ambos com recursos a serem financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

É de especial destaque o convênio assinado pelo Ministério das Cidades, a Caixa Econômica Federal, o Sinduscon (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), o Secovi (Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo), a Asbea (Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura), O IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), para produzir habitação para as classes médias. Recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) foram destinados ao financiamento de reformas de edifícios no centro para produção de apartamentos, constatada uma demanda, pelo Secovi, situada entre os parâmetros de 50 mil a 150 mil reais. Além disso, as regras de aprovação do financiamento e da licença de construir foram objeto de estudo para flexibilização e agilização, visando reduzir os tempos necessários.

Entendemos que o mercado deve incumbir-se de atender a demanda solvável, assim como a população de baixa renda deve ser atendida pelo Poder Público. O Programa Morar no Centro e os Perímetros de Recuperação Integrada do Habitat (PRIH), desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Habitação, propuseram a recuperação de edifícios e áreas históricas na área com foco específico na garantia de manutenção da população mais pobre moradora na área.

Um segundo problema evidenciado, a ser revertido, foi a forma como que se deu a transformação do perfil econômico. Constatou-se a permanência de uma dinâmica econômica real considerável (8% dos empregos formais), a queda de algumas atividades econômicas (saída de alguns bancos), aumento do trabalho informal (6000 vendedores do comércio de rua) e a popularização do comércio.

A fim de obter a reversão desse problema, foram estabelecidas diretrizes para uma estratégia econômica do centro, discutidas com setores empresariais, movimentos sociais e com os próprios técnicos do BID. Além disso, elaborou-se uma pesquisa com o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que resultou no livro sobre desenvolvimento local chamado Caminhos para o Centro (12).

Na região permanecem corporações de prestígio, como é o caso dos advogados e das Bolsas de Valores (Bolsa Mercantil e de Futuros – BMF e Bolsa de Valores de São Paulo – Bovespa), ocorrendo concentrações de comércio popular e de ruas especializadas (Santa Ifigênia, Florêncio de Abreu, 25 de Março). Como atividades potenciais, buscou-se em primeiro lugar constituir o centro como sede do Poder Municipal, abrangendo quase todas as secretarias municipais e o Gabinete da Prefeita, que se deslocou da periferia do centro (do Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro II) para o coração do Anhangabaú, ao lado do Viaduto do Chá, em 25 de janeiro de 2004, no aniversário dos 450 anos de São Paulo. Isso trouxe 11 mil novos funcionários para o centro (se somarmos a transferência também de organismos estaduais), o que alavancou a proliferação de novos restaurantes e serviços.

O resgate do centro como pólo de lazer, entretenimento e turismo também fez parte dessa estratégia, com a implantação da Galeria Olido como importante centro cultural, além do Teatro Municipal, que se somou à existência do Centro Cultural Banco do Brasil e do Masp-Galeria Prestes Maia. A esses deverão se agregar os projetos do Sesc 24 de Maio (antigo prédio da Mesbla) e do Centro Cultural dos Correios. Para este último, buscamos o apoio do Banco do Brasil, cujo Centro Cultural revela-se pequeno para a importância que veio conquistando nos últimos anos, devido à qualidade de sua programação. Além disso, várias empresas de turismo desenvolveram pacotes para visitas guiadas ao centro.

Entendemos que o uso residencial e atividades como as desenvolvidas por instituições universitárias e ONGs garantem a animação do centro fora do horário comercial. Além disso, um novo tecido produtivo – formado por pequenas e microempresas e agências culturais – pode ser estimulado por uma agência de desenvolvimento criada dentro da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização) e por um sistema de informações empresariais para facilitar a vinda de novas atividades. Uma Lei de Incentivos Seletivos foi aprovada visando atrair investimentos, devolvendo tributos e sem renúncia fiscal, pois condicionada ao aumento geral da arrecadação, da geração de empregos e da recuperação do patrimônio histórico.

O terciário avançado pode ser conquistado no centro, uma vez que esta é a área com a maior densidade de fibra ótica da cidade. Uma limitação ao terciário avançado é a existência de um quadro construído antigo, de pequenas unidades, e tombado, portanto, impossibilitando a realização de grandes plantas necessárias a essa atividade.

Como parte da estratégia econômica pode-se ressaltar a valorização do tecido produtivo comercial clássico, como antigas mercearias (por exemplo, a Godinho, na Rua Líbero Badaró) e a recuperação do Mercado Municipal, que reforçou seu caráter de ponto turístico-gastronômico, com a criação do mezanino e de novos restaurantes.

Para a atração de novas atividades, foi importante a implantação de projetos estratégicos como a Praça do Patriarca e o corredor cultural até a Biblioteca Mário de Andrade.

Um terceiro problema a ser resolvido é o referente à circulação. Hoje São Paulo enfrenta grandes problemas de trânsito decorrentes da priorização do transporte industrial em detrimento do transporte coletivo. A reformulação do sistema geral da cidade reduziu a necessidade de passagem das linhas de ônibus pelo centro, aumentando a interligação entre bairros e reorganizando a implantação de terminais de ônibus. Esta última ação reduziu o tráfego de passagem, entre terminais, que constitui estímulo para a existência dos vendedores do comércio de rua. Além da reconceituação dos calçadões, também estava previsto um projeto de circulação especial, incluindo acessibilidade e adequação das condições gerais de tráfego.

As questões referentes à degradação do ambiente urbano constituíram o quarto eixo de problemas a enfrentar. As ações propostas abrangeram a recuperação dos sistemas de macrodrenagem, para evitar as freqüentes inundações em certas épocas do ano, a recuperação da infra-estrutura urbana, a revegetação de praças e canteiros e a implantação da recuperação do Parque Dom Pedro II.

Somou-se a isso, a modernização da gestão de zeladoria, bem como uma proposta de educação ambiental desenvolvida pela Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, visando a diminuição do lixo coletado que exigia dez varrições e quatro lavagens por dia.

Um quinto eixo de trabalho foi construído com base na compreensão de que a legislação urbanística é desarticulada, tornando-se um instrumento não efetivo de regulação. De nada adiantam os instrumentos do Estatuto da Cidade sem um programa claro de gestão urbana, investimentos públicos consideráveis alavancando instrumentos privados e o esforço coletivo da sociedade na implementação das ações. Foram propostas as revisões da própria Operação Urbana Centro, formulada anteriormente e com resultados tímidos; bem como da lei de Fachadas, que prevê a devolução do IPTU para proprietários que restaurem edifícios. Além disso, foi aprovada a Lei de Incentivos Seletivos, a qualificação da mão-de-obra participante de todo esse processo foi prevista, com programas de capacitação dos funcionários públicos e a criação do Fórum Ação Centro (112 entidades) e da coordenação executiva composta por seis membros da sociedade civil e seis do governo municipal.

Entretanto a lei de zoneamento e a elaboração do Plano Diretor Estratégico, que agora está sendo revisto, a partir dos Planos Regionais criou uma quantidade de diretrizes que comprometem a sua aplicação. Uma das vitórias proporcionadas pelo estatuto da cidade que prevê o direito a moradia e o estabelecimento das Zonas Especiais de Interesse Social está perdendo força com a eliminação dessas zonas que podem garantir o lugar a população de baixa renda no centro que é de toda a população.

Atualmente o Programa do Centro teve uma refocalização na área da Luz que não é propriamente o Centro, mas pode ser considerado um bairro central. A demolição de algumas quadras está prevista com a proposta de atração de grandes empresas geradoras de emprego. A mobilização da sociedade civil envolvida no Programa foi interrompida, prejudicando o arranjo institucional anterior que não pode ser consolidado. Além disso, a redução de recursos financeiros e políticos na condução do programa reduziram suas possibilidades de implementação.

Entendemos que um Projeto Urbano se faz através de uma construção social, com mobilização da sociedade civil. Para tanto é preciso à criação de uma agência que articule Poder Público e iniciativa privada dando espaço para a participação alcançando uma gestão urbana competente.

Os recursos públicos (poucos no Brasil) devem alavancar de forma sinérgica, os recursos privados e ampliar alternativas de emprego, trabalho e renda.

É preciso alcançar um impacto social positivo, reduzindo as imensas desigualdades existentes nas cidades, avaliando quem ganha, quem perde com a implementação do projeto urbano.

Em síntese entendemos que os Projetos Urbanos na cidade contemporânea para serem efetivos devem se valer não só dos instrumentos do Estatuto da Cidade, mas principalmente de uma gestão urbana que permita a construção coletiva do espaço urbano através da mobilização dos agentes econômicos sociais.

notas

1
RONCAYOLO, Marcel. Lecture de villes: formes et temps. Marseille, Editions Parenthèses, 2002; TSIOMIS, Yannis; ZIEGLER, Volker. Anatomie de projets urbains. Paris, Editions de la Villette, 2007; MORANDI, Corinna; PUCCI, Paola. Prodotti notevoli. Milão, Francoangeli,1998.

2
LUNGO, Mario (Org.). Grandes projectos urbanos. San Salvador, UCA Editores, 2004.

3
INGALINA, Patrizia. Le projet urbain. Paris, PUF, 2001.

4
CERVELLATI, Pier Luigi; SCANNAVINI, Roberto. Bolonia: Política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona, Gustavo Gili, 1976.

5
PORTAS, Nuno. “L’emergenza del projeto urbano”. Urbanística, n. 110, Roma, 1998, p. 51-67.

6
ABASCAL, Eunice Helena Sguizzardi. A recuperação urbana de Bilbao como processo dinâmico e polifônico. Tese de Doutorado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2004.

7
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global: a gestion de las ciudades e no la era de la información. Madri, Taurus, 1997.

8
PORTAS, Nuno. Op. cit.

9
SMITH, Neil. “La Gentrification Comme Stratégie Urbaine Globale”. In Espirit, Paris, mars/avril 2004.

10
ROLNIK, Raquel. Estatuto da cidade. Brasília, Polis, 2001.

11
Não se trata de revitalização, pois o centro, com 2 milhões de pessoas/dia de população flutuante, é, portanto, extremamente vital. O conceito de reabilitação prevê a recuperação do quadro construído, a preocupação com a população e a gestão da área.

12
EMURB. Caminhos para o centro. São Paulo, Prefeitura de São Paulo/ Emurb/ CEM/ Cebrap, dez. 2004.

bibliografia complementar

FERNANDES, Edesio (Org.). Direito urbanístico. Belo Horizonte, Del Rey, 1998.

Novas perspectiva do direito urbanístico brasileiro, ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre, Fabris Editor, 1997.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade? São Paulo, Brasiliense, 1988.

SAULE JR., Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito a cidades sustentáveis. São Paulo, Polis, 1999.

SOMEKH, Nadia. “Função social da propriedade e da cidade”. In Estatuto da Cidade. São Paulo, CEPAM, 2001.

SOMEKH, Nadia; SILVA, Luís Octávio. O centro de São Paulo: reconstrução coletiva e gestão compartilhada. Documento. São Paulo, 2002.

sobre o autor

Nadia Somekh, arquiteta e diretora da FAU Mackenzie.

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