Nos interstícios da malha urbana
A paisagem decorrente do contínuo processo de produção do espaço apresenta, principalmente nas aglomerações metropolitanas, traços tão distintos da paisagem primordial sobre a qual foi se constituindo, e estende-se com tal magnitude, a ponto de, em certas circunstâncias, parecer impróprio referir-se a ela como uma “segunda natureza”, pois tudo se passa como se ela fosse a própria natureza original.
Somente eventos formidáveis como abalos sísmicos, erupções vulcânicas ou violentos fenômenos atmosféricos, ao atingirem importantes centros urbanos, ainda causam em nós o impacto que permite recuperar, instantaneamente, a consciência de que uma natureza primitiva, não domesticada, ainda está presente. Nem a extensão do mar ou a imponência das cadeias de montanhas, mesmo que envolvam grandes metrópoles, conseguem provocar, no cotidiano, alguma reflexão sobre esta materialidade inaugural.
Entre os elementos naturais que há mais tempo participam do espaço humanizado estão os rios. Vinculam-se à própria formação dos territórios e à fundação da maior parte das cidades em todo o mundo, fato que o caso brasileiro vem confirmar.
Em São Paulo, a proximidade do rio Tamanduateí, com sua ampla planície de inundação, foi um dos fatores determinantes para a escolha do sítio onde a vila se instalou, por atender a necessidades de defesa, abastecimento, comunicação e transporte. No entanto, tal relação manteve-se normalmente em nível degradante e só em raras ocasiões, e por breve tempo, ultrapassou os limites do meramente utilitário: o colégio jesuítico e, mais tarde, o palácio do governo davam as costas ao rio; suas águas eram desviadas para atender a conveniências particulares; o lixo da cidade era depositado em sua várzea. Ainda assim, viajantes e cronistas citam lugares pitorescos a ele associados, que eram aproveitados informalmente pela população, ocorrendo, na década de 1870, a primeira iniciativa oficial, ainda tímida e de curta duração, de construir um recanto recreativo, paisagisticamente tratado, em suas margens: a Ilha dos Amores. Os contatos prazerosos com o rio passaram a ser cada vez mais esporádicos e até condenados em nome da saúde e mesmo da moralidade. Meio século se passou até que a várzea, sempre referida em termos depreciativos, fosse convertida num parque, que não durou outros cinqüenta anos, pois foi retalhado e ilhado por um complexo de viadutos.
Fatos semelhantes ocorreram com os rios mais importantes que cortam a bacia sedimentar de São Paulo. A relação afetiva e deleitosa, na cotidianidade ou mesmo no contato esporádico com os cursos d’água, não conseguiu resistir às razões utilitárias que os reduziram a peças de uma máquina hidráulica ou usaram suas margens como corredores de circulação.
Ainda que seja válido argumentar que é inerente a toda ação humana, sobretudo no espaço urbano, alterar radicalmente a base física para afeiçoá-la aos seus desígnios, há de se admitir que a qualidade da paisagem, sob o estrito aspecto visual, ao longo de rios como o Prata, em Buenos Aires, ou o Mapocho, em Santiago do Chile _para evitar paralelos mais distantes com o Sena, o Tamisa, o Hudson e tantos outros que passam por grandes cidades_ é incomparavelmente superior à que envolve os principais rios paulistanos, mesmo nos trechos em que atravessam áreas social e economicamente mais privilegiadas.
Do ponto de vista ambiental, a situação de nossos rios é igualmente crítica, apesar de a legislação contemplar a proteção de suas margens e nascentes. A aplicação efetiva da lei, no entanto, esbarra em problemas de ordem social, como a freqüente ocupação das margens dos rios e córregos por favelas, ou em impedimentos econômicos, como os altos custos de intervenção em áreas já totalmente urbanizadas.
A despeito de tais limitações, ou acreditando poder superá-las no devido tempo, o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, em vigor desde 2002, estabelece, entre suas diretrizes, a implantação de parques e áreas verdes coincidindo com a chamada Rede Hídrica Estrutural, ou seja, os rios e seus afluentes de primeira, segunda ou terceira ordens. Ao longo desses cursos d’água pretende-se implantar “corredores verdes”, caso já exista rua ou avenida nas suas margens, ou então parques lineares, caso estejam desimpedidos.
Os planos regionais, das subprefeituras, reforçam esta idéia, o que pode ser verificado nos quadros e mapas referentes à “Rede Estrutural Hídrica Ambiental” dos respectivos planos, que prevêem “caminhos verdes”, parques e mesmo sistemas de retenção de águas pluviais junto aos cursos d’água, nomeando os rios, córregos, ruas e avenidas onde serão implantados.
Em que pese o mérito do princípio urbanístico de fazer coincidir parques e áreas verdes com a Rede Hídrica Estrutural, pelas vantagens paisagísticas e ambientais que acarreta, desperta a atenção a ausência, mesmo nos planos mais detalhados das subprefeituras, do que poderíamos aqui batizar como “Rede Hídrica Capilar”, ou seja, os cursos d’água sem qualquer expressão na paisagem, seja porque suas ínfimas dimensões os tornam imperceptíveis ao olhar de sobrevôo, seja porque a canalização e o tamponamento os eliminaram por completo da cena urbana.
Os únicos planos que atendem a esses cursos d’água são os de infra-estrutura, que propõem, invariavelmente, sua canalização e tamponamento. Por força da urbanização há muito consolidada, é dado por inviável aplicar-lhes as restrições ambientais legais e, porque as oportunidades de intervenção parecem, à primeira vista, inexistentes, os programas de melhoramento da paisagem urbana nunca os contemplam.
No entanto estas águas, embora ocultas, ainda “vivem”, e os indícios de sua existência podem estar num bueiro, por onde se as ouve e sente, ou em eventuais insurgências que, em geral por iniciativa de moradores das redondezas, são precariamente conduzidas para algum tanque improvisado, passando então a ser conhecidas como “minas d’água”.
Em outros casos, o córrego clandestino é denunciado por um beco ou uma viela, quase sempre desertos, abandonados, encerrados pelas paredes de fundo das construções. Outras vezes, os vestígios são nesgas de terra, pequenas sobras de desapropriações para a tubulação do córrego, onde a vegetação cresce espontaneamente. Em situações mais felizes, os indícios podem estar numa área verde pública, em geral pequena e amorfa, a que se dá abusivamente o nome de praça, ou ainda em escadarias que, embora não coincidam com as margens ou com o leito dos cursos d’água, evidenciam as condições de um relevo acidentado, características das áreas onde se concentram as nascentes dos córregos, fazendo assim alusão a eles.
Em áreas urbanas de ocupação já antiga e densa, tais índices ou pistas da existência de cursos d’água ocultados só podem ser percebidos pelo palmilhar cuidadoso, pelo olhar atento e pela interpretação dos vestígios, o que nem sempre, ou quase nunca, o ritmo cotidiano favorece. Devidamente alinhavadas, estas marcas materiais podem recontar a “história” dos córregos e torná-la concretamente disponível, ou seja, passível de ser lida e fruída nas práticas diárias que se dão sobre o espaço.
Além dos planos de maior abrangência ou visibilidade, abre-se assim outra frente para o tratamento da questão das águas urbanas, que lida com situações menos óbvias, porém mais disseminadas, nisso residindo seu valor estratégico, pois se trata, antes de mais nada, de restabelecer, ou fundar sob novas bases, uma relação sensível, se não afetiva, com a Terra que está sob nossos pés e à nossa porta. Depois do estalo, do reconhecimento súbito da nossa cumplicidade com esta base material original, é que podem se desenvolver a consciência e, em seguida, atitudes ambientalmente conseqüentes em relação a ela.
Mesmo que em regiões já muito comprometidas pela urbanização, as áreas de nascentes ou dos altos cursos dos córregos têm ainda funções ambientais a cumprir. Por menor que seja, é importante preservar a capacidade de recarga dos diminutos cursos d’água das micro bacias e, simultaneamente, aumentar o tempo de escoamento das águas para os canais principais, pelo incremento das superfícies de absorção e pelo uso de pavimentos drenantes ou superfícies rugosas, que contribuam para diminuir a velocidade dos fluxos, atenuando assim os efeitos das enchentes a jusante.
Por estarem capilarmente embrenhados no território, estes veios menores, que passam despercebidos nos grandes planos, oferecem possibilidades de inserção mais efetiva no dia a dia dos habitantes. Por isso, uma vez devidamente tratados, podem favorecer o sucesso das ações locais e facilitar a gestão descentralizada do espaço urbano, sem prejuízo da necessária compatibilidade com os planos gerais.
Dar significado a estes acidentes não se esgota, porém, na sua “recuperação” do ponto de vista ambiental, quando factível, nem na sua disponibilidade como espaços de circulação e recreação, nem na urbanidade que um eventual tratamento poderia lhes emprestar. Além desses efeitos, possíveis e até desejáveis, evidenciar o percurso dos córregos ocultados e atribuir-lhes valor é deixar ascender à consciência uma das experiências mais básicas e impregnantes do fazer humano: a relação direta com a matéria primitiva da Terra, que se tornou mundo habitável por este mesmo fazer, mas que o alto grau de transformações já operadas torna distante, quase extinta, e o afazer cotidiano embota.
Alguns casos de córregos ocultos em áreas densamente urbanizadas
Há inúmeros casos de cursos d’água capilares, anônimos e desaparecidos sob o chão das cidades, constituindo uma característica comum, pode-se dizer sem exagero, de praticamente todos os núcleos urbanos, por menores que sejam. Numa metrópole das proporções de São Paulo, como é de se esperar, esses casos se avolumam, fazendo com que qualquer intenção de estudá-los, reconstituir sua “história”, levantar os indícios materiais de sua existência e dar-lhes expressão na paisagem, requeira de início o estabelecimento de critérios para definir as situações espaciais convenientes para uma pesquisa voltada a este fim, assim como um recorte espacial o mais preciso possível.
Quanto às situações espaciais, pode-se considerar, à primeira vista, que as mais convenientes, de acordo com o que foi exposto, sejam aquelas que já apresentam urbanização consolidada, com alto índice de ocupação do solo, passando por processo mais ou menos acelerado de transformação (verticalização, mudanças de uso do solo) e onde só restam vestígios pouco explícitos da existência do córrego, exigindo, portanto, o trabalho de decodificação, como o ensaiado para o córrego Água Preta, que atravessa os bairros da Pompéia, Vila Anglo-Brasileira e Vila Romana (2).
Tais vestígios podem ser constituídos por pequenas áreas verdes públicas, em geral de formato irregular, distribuídas aparentemente ao acaso; por alargamentos inesperados dos passeios (normalmente parcelas de terrenos remanescentes dos trabalhos de canalização do córrego); pela presença de becos e vielas; pelos dispositivos para captação de águas pluviais com dimensões bem maiores que as usuais; pelo próprio relevo do terreno, ou o que dele restou. Enfim, interessam sobretudo as situações sobre as quais se diria, numa primeira impressão, não haver nada a fazer, ou seja, aquelas em que a “reaparição” do córrego é tida como impossível.
Mesmo assim, há muitas situações com estas características, o que torna o assunto ainda excessivamente extenso e impreciso. A morfologia do relevo original oferece-se como outro critério que, sobreposto às condições acima enunciadas, contribuiria para a delimitação mais nítida do objeto. Em topografia, complexa, com pequenos vales encaixados entre colinas declivosas, supostamente haveria maior número de ocorrências. A probabilidade da existência de indícios concretos do córrego oculto na paisagem aumentaria devido às próprias dificuldades impostas pelo relevo às obras de ocultação.
Em regiões como as da Freguesia do Ó, Casa Verde, nos setores a cavaleiro da planície do rio Tietê, ou mesmo nas de Pinheiros, Lapa e Butantã, em seus trechos mais acidentados, com certeza haverá muitos casos para serem analisados.
Mas situações interessantes também podem ser verificadas em terrenos planos, como os de Moema e Vila Olímpia, onde ocorrem recentes e rápidas alterações no uso e ocupação do solo, ou em áreas com menor dinamismo imobiliário, como as dos arredores do centro histórico.
Há ainda casos de sobra de ocultação de cursos d’água nos bairros mais distantes do centro, onde ao arcaísmo do modo de ocupação e à precariedade das condições gerais do espaço se opõe, muito comumente, uma tecnologia bastante atualizada e até sofisticada, quando se trata de canalizar ou entubar rios e córregos e de abrir, ao longo deles, grandes eixos viários. Ou então, ainda nesses bairros, o córrego corre livre, mas degradado e estorvador a tal ponto que se torna inevitável e tristemente presente no cotidiano. Nestas situações, a obviedade da agressão não comporta a sutileza do enfoque aqui pretendido, que é o de revelar o insuspeitado ou o recalcado.
Além do Água Preta, já referido, há vários outros casos a serem explorados nesta perspectiva de fazer aflorar, seja ao pé da letra, seja metaforicamente, as águas esquecidas. Basta percorrer algumas partes da cidade que conheceram valorização mais ou menos recente e passaram, ou vêm passando, por transformações de forte intensidade.
Um deles é protagonizado por um afluente do ribeirão Uberaba, na região de Moema, mais especificamente, Vila Uberabinha. Não recebe denominação no Mappa Topographico do Município de São Paulo executado pela Sara Brasil, em 1930, e é apresentado como Sapateiro no levantamento realizado entre 1952 e 1957 pela Vasp – Cruzeiro do Sul, embora não se trate do mesmo Sapateiro que abastece o lago do Parque Ibirapuera.
Em 1930, o córrego sem nome começava sua história junto aos trilhos do tramway de Santo Amaro, atual avenida Ibirapuera. As nascentes devem ter sido afetadas pela implantação da linha do bonde, mas um pequeno açude marcava o ponto de partida de um dos veios contribuintes deste curso d’água de pouco mais de um quilômetro de extensão. Prosseguia livremente pelas quadras pouco ocupadas situadas entre as ruas Rouxinol e Macuco, até a rua Tuim, e daí até a foz atravessava terrenos ainda não parcelados.
Em meados da década de 1950, coincidindo com o leito do córrego, já estava traçada a avenida Ibijaú, entre as ruas Macuco e Rouxinol, não por motivos de engenharia de tráfego, pois não se colocavam problemas desta natureza na época, além de se tratar de via curta, com apenas três quarteirões, que encontra seu fim na rua Gaivota. A razão era possibilitar a criação de mais lotes, fechando o córrego e abrindo uma via sobre ele.
Naquela época, até a rua Tuim, o percurso da água ainda se fazia por quadras semi ocupadas, mas, dali para frente, os terrenos antes vazios já estavam arruados em traçado bastante irregular, com vias terminando abruptamente na margem do córrego, como a Diogo Jacome, ou curvando-se e estreitando-se para atravessá-lo por uma ponte econômica, como a Marquês de Inhambuque, enquanto outras, curtas e angulosas, como a Visconde de Cachoeira, Araguari, Indiaroba, Bertran e a Travessa Professor Mário B. Capuani, evidenciam ainda hoje o esforço de adaptação ao contexto hidrográfico.
Atualmente, nada mais lembra as nascentes do córrego, mas o trecho final da avenida Ibijaú apresenta uma larga faixa de recuo diante das casas construídas na margem esquerda, arrematada por uma pequena área verde ajardinada e equipada com bancos, numa referência, ainda que modesta, ao curso d’água que corre sob elas.
Atravessada a rua Gaivota, outra pequena área verde, arborizada e de acesso público, dá continuidade ao tratamento reverente, que é logo em seguida interrompido pelos muros de condomínios de apartamentos. Só duas quadras adiante, as pegadas do córrego são novamente notadas, graças a uma viela estreita interligando as ruas Inhambu e Tuim, pavimentada com paralelepípedos de granito e arborizada, onde semanalmente se monta uma feira livre. O uso e o tratamento conferem a esta ruela um caráter especial, e de algum modo remetem à presença de algo não ordinário sob ela.
Adiante, os vestígios do córrego desaparecem novamente, engolidos pelos lotes condominiais entre as ruas Tuim e Pintassilgo. Mas voltam em seguida, na forma de espaços livres enjeitados. De início é uma viela que nasce estreita, no ponto em que a rua Pintassilgo troca de nome e se torna Marquês de Inhambuque. Reveladora mudança de identidade, pois permite captar de novo as insinuações do curso d’água sob a viela que se alarga gradualmente até a rua Araguari. Dali à avenida Helio Pellegrino, seu destino final, o córrego prossegue pelo subsolo de um espaço mais aberto e luminoso, alvo, em algum momento, de certos cuidados, mas hoje em estado de abandono.
A narrativa da água, porém, tem seqüência imediata, mas já se desenrola em cenário mais óbvio, interessando menos ao que se quer realçar aqui, embora ainda se trate de um ribeirão tido por morto e enterrado: o próprio Uberaba, agora mal dissimulado sob a avenida Helio Pellegrino. No entanto, nem percorrido um quilômetro, estas exéquias oficiais terminam e, no arruamento da Vila Olímpia, se perde a memória espacial do ribeirão. Só pela cartografia fica-se sabendo que ele corre sob a rua Caetano Velasco _curto traço de união entre as ruas Quatá e Casa do Ator_ e que, antes de chegar ao córrego da Traição (avenida dos Bandeirantes) pela rua Vicente Pinzon, a poucas centenas de metros do rio Pinheiros, o Uberaba atravessa, sempre por baixo, terrenos hoje vazios, por onde poderia respirar.
Esta parte da cidade está em pleno processo de transformação, que teve início há poucos anos. No levantamento planialtimétrico e cadastral executado nos anos de 1970, o ribeirão ainda corria a céu aberto no meio das quadras, interrompia a continuidade da rua Casa do Ator, cruzava uma favela nas áreas atualmente desocupadas à espera de grandes empreendimentos imobiliários, e tinha a rua Vicente Pinzon como via marginal e não como tampa. Ainda mais significativo é constatar, pelo levantamento de 1952-1957 da Vasp-Cruzeiro do Sul, que a rua Vicente Pinzon era então chamada alameda. Hoje, talvez nem sob aquela rua o córrego continue a passar, pois as obras de infra estrutura recém realizadas dão a entender que ele teve seu curso reorientado para desaguar diretamente no rio Pinheiros.
As mudanças que ali se operam são vultosas, uma reviravolta urbanística envolvendo hotéis, edifícios de escritórios, agências bancárias, mas não se faz qualquer menção ao Uberaba, ou ao menos à sua memória, nos espaços abertos pela reurbanização.
Outro caso é o de um contribuinte do rio Verde que, por sua vez, deságua no Pinheiros na altura da rua Gabriel Monteiro da Silva, depois de atravessar o terreno do Clube Hebraica.
Este subafluente, sem nome e sem rosto, tem sua origem próxima à confluência das ruas Apinagés e Herculano, na divisa dos Campos da Escolástica com o Sumaré. Onde a avenida Heitor Penteado forma uma sela, ele a atravessa e segue pela rua Abegoaria, que o levantamento de 1930 nem registrava, mas que já aparece traçada no de 1952-1957. Segue pela atual Medeiros de Albuquerque e, antes de cruzar as ruas Harmonia e Girassol, faz evoluções complicadas que dão forma ao labirinto de vielas chamado “Beco do Batman”. Continua seu rumo entre as ruas Belmiro Braga e João Gonçalves, depois entre a Mateus Grou e a Fradique Coutinho, cruza em diagonal as quadras situadas entre esta rua e a Simão Álvares, emboca na Potiguar Medeiros, atravessa a avenida Rebouças e se lança no Verde, já no Jardim Paulistano.
Nenhum sinal explícito deste córrego em seus três quilômetros de extensão, a não ser o rio em que a rua Abegoaria se transforma em dias de chuva muito forte, ou quando rompe a galeria que aprisiona o curso d’água, ou então as inundações, até há pouco desastrosas, na parte baixa das ruas Harmonia, Girassol e Fidalga.
Ele não aparece, mas deixa impressa sua marca em alguns espaços livres, como nas chamadas praças Jacques Bellange e General Oliveira Álvares, que ladeiam a rua Abegoaria na confluência com a João Moura; na pequena praça José Afonso de Almeida, quando o córrego deflete para a rua Medeiros de Albuquerque; na notável irregularidade das duas extremidades desta rua, cujos traços pitorescos estão desaparecendo por conta de iniciativas de administradores muito mais ciosos em disciplinar o tráfego e o estacionamento de veículos do que em valorizar as singularidades da paisagem urbana; no já referido “Beco do Batman”; na viela entre as ruas Harmonia e Girassol; nas nesgas de espaços livres entre as ruas Girassol e Fidalga e na rua Belmiro Braga.
Alinhavando só estes pontos eminentes, tem-se um percurso de mais de um quilômetro, ao longo do qual intervenções sensíveis à presença do córrego poderiam requalificar o seu leito, seja em sentido figurado, quando não houvesse alternativa, seja expondo-o expressamente, o que poderia ser tentado na rua Abegoaria, cuja galeria passa continuamente por reformas.
A lista de casos é extensa, mas caberia ainda citar o do ribeirão do Bexiga, formador do Anhangabaú, como o Saracura e o Itororó, mas menos famoso e mais esquecido. Na Planta da Cidade de São Paulo de 1868, o ribeirão está representado com suas nascentes próximas à atual confluência das ruas Pedroso e Rui Barbosa. Na de 1881, já se encontram mais abaixo, na altura de onde se daria mais tarde o cruzamento da rua Humaitá com a avenida Brigadeiro Luís Antônio. Na Planta Geral da Capital, de 1897, não comparece mais, pois já era tubulado. Mas basta percorrer a Travessa dos Arquitetos, a rua Fortaleza, a rua Humaitá, para pressenti-lo.
O impacto do viaduto Júlio de Mesquita corta abruptamente a leitura do percurso e o muro alto que fecha o terreno vazio entre as ruas Abolição e Jaceguai, onde se quer construir um shopping center, impede o acesso à rua Japurá, um recanto muito agradável, por onde o Bexiga continua até chegar no Anhangabaú, na altura da praça da Bandeira. A seqüência, no entanto, poderia ser recuperada e qualificada, vivificando a lembrança do ribeirão.
Provavelmente não haja bairro em São Paulo, e em outras cidades, que não ofereça casos e oportunidades semelhantes para reavivar a memória destas águas desprestigiadas porque não têm nome, ou porque ele já foi esquecido.
Diferentes possibilidades se abrem, portanto, para a intervenção sobre os vários fragmentos de espaço, verdadeiros índices da presença de cursos d’água, com vistas à sua integração e à constituição de uma narrativa que recupere a história dos córregos ocultos.
O primeiro passo pode consistir simplesmente numa caminhada, real ou virtual, pelo vale do rio desaparecido. Já se tem notícias de experiências neste sentido, como as realizadas pela organização canadense denominada Lost River Walks, que mantém sites informativos sobre os rios escondidos sob a trama urbana de Toronto, e organiza caminhadas ao longo dos seus cursos.
Mas há também um recurso a ser explorado que, afora ser valioso por si próprio, pode contribuir de um modo particularmente eficaz para a revelação da presença dos córregos ocultos ou para a recuperação de sua memória: a arte pública nas suas mais diversas manifestações, que incluem a arte ambiental, a land art, as performances e as instalações.
Presume-se que a reconstrução da carga simbólica dos cursos d’água tenderá a influir em novas disposições e formas de apropriação dos espaços a eles relacionados e, assim, aumentar o interesse pela sua recuperação.
Intervenções artísticas in situ podem, portanto, favorecer a conscientização sobre a importância dos córregos na cidade, seja porque são portadores de valores ambientais em senso estrito, seja porque propiciam a constituição de uma rede de caminhos que, convenientemente tratados para permitir sua apropriação positiva pelos moradores como locais de convívio, contemplação e deambulação, venha conectar diferentes espaços urbanos.
Trazer à consciência coletiva a existência dos córregos ocultos, é um dos passos possíveis, senão uma condição indispensável, no sentido de reverter a comum associação dos rios com aspectos negativos como esgotos, lixo, inundações, e de abrir frentes para ações concretas sobre o espaço, pelo tratamento criterioso dos espaços livres e dos caminhos que os interligam; pela atenuação do impacto visual dos muros; pelo aumento da permeabilidade do solo nos becos e vielas; pela valorização das escadarias, das insurgências e mesmo dos bueiros, que não deixam de ser frestas por onde também se anuncia, embora pelo avesso, a presença da água.
notas
1
Artigo originalmente publicado na Revista USP, n. 70 – Dossiê Água, 2006, p. 88-97, e revisado em 2009.
2
A respeito do córrego Água Preta, ver o seguinte artigo: BARTALINI, Vladimir. “Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos”, in Pós – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, no 16, dez. 2004, p. 82-96.
sobre o autor
Vladimir Bartalini, arquiteto, mestre e doutor pela Fau-Usp. Professor dos cursos de graduação e de pós graduação daquela Faculdade, na área Paisagem e Ambiente.