Introdução: meio ambiente, o Estatuto da Cidade e o PEU das Vargens
O Estatuto da Cidade (2) é um marco do planejamento urbano no Brasil por estabelecer que a cidade e a propriedade urbana devem ter o desenvolvimento pleno de sua função social. Isto significa dizer que a gestão urbana, a legislação urbana e o exercício da cidadania devem em conjunto garantir o direito à moradia, ao saneamento básico, ao transporte e à mobilidade urbana, aos serviços públicos e ao atendimento das demandas sociais.
Além disso, a aprovação do Estatuto também representou um avanço no que diz respeito às questões ambientais, pois as considera como fato crucial para a qualidade das cidades, fazendo uma direta relação entre a distribuição espacial da população e as atividades urbanas no território municipal com os efeitos sobre o ambiente. Em outras palavras, o direito à cidade é, também, direito ao meio ambiente, que deve possuir qualidade, ser sustentável, socialmente justo e equânime.
Deve-se incorporar ao planejamento urbano, então, a relação direta entre adensamento populacional, consumo de recursos, consumo da mercadoria que é a moradia e os impactos sobre o meio ambiente. No campo legal, tanto o direito ao consumo quanto o direito à moradia e ao meio ambiente são direitos difusos, isto é, o conjunto de pessoas que consomem, devem ter assegurado o direito à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não são grupos determinados ou determináveis – como o são nos direitos individuais, políticos, sociais e trabalhistas. São direitos caracterizados pela indivisibilidade, por não poderem ser compartilhados para exercício de forma individual ou por grupos previamente determinados; pela titularidade indeterminada, envolvendo, inclusive, o direito das futuras gerações; pela coflituosidade, dada sua proteção não encontrar unanimidade nos diversos setores da sociedade, variando em cada situação; pela mutabilidade dos conflitos no tempo e no espaço, já que em cada espaço geográfico e dependendo dos atores envolvidos sempre se irão se apresentar defensores e opositores (3). São, enfim,
De acordo com o Estatuto da Cidade, é prerrogativa do poder público local a promoção do adequado ordenamento territorial. O Município é, portanto, responsável por formular e implementar a política urbana e fazer cumprir, através do Plano Diretor e da legislação dele derivada, a função social da cidade e da propriedade. Os instrumentos de política urbana que surgem com o Estatuto foram criados com o intuito explícito de possibilitar que os municípios atuem efetivamente contra a retenção especulativa dos imóveis urbanos, a deterioração das áreas urbanizadas ou a degradação ambiental, sempre tendo em vista a participação popular e a instauração de mecanismos de controle social. O objetivo maior é a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, visando à recuperação dos investimentos do poder público que tenham resultado na valorização de imóveis urbanos. A proteção, preservação e recuperação do patrimônio ambiental, considerando-se tanto os bens naturais quanto os construídos, tornam-se, também, temas fundamentais da política urbana e, conseqüentemente, da legislação urbana, incluindo, além do Plano Diretor, as leis dele derivadas, tais como as de zoneamento e uso do solo, ou equivalentes, como o é o recém-aprovado Plano de Estruturação Urbana dos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, mais conhecido como PEU das Vargens (5).
Nesse sentido, pode-se dizer que este novo PEU das Vargens, que apresenta intrincado zoneamento do solo a partir de onze setores subdivididos em zonas, contem velhos problemas e vícios, aos quais Rabello denomina ironicamente “pecados capitais” (6): a começar, foi apresentado e aprovado em apenas doze dias – ao que logo se seguiu envio de projeto de lei (7), por parte do Executivo, pedindo alterações –, sem quaisquer discussões públicas e, por isso, desrespeitando o Art. 43 do Estatuto da Cidade; também é digno de nota ter ignorado por completo a determinação constitucional de que é o Plano Diretor, atualmente no Rio de Janeiro em vias de aprovação de sua revisão, o instrumento básico de desenvolvimento urbano da cidade – outra lei, mesmo que de mesma hierarquia não pode, por isso, definir ou modificar parâmetros de uso e ocupação do solo sem prévia especificação no Plano Diretor; ou, na ausência desta especificação, em acordo com as diretrizes gerais de ocupação do solo determinadas por ele.
Por outro lado, ainda que o PEU das Vargens possua artigos iniciais referindo-se ao Estatuto da Cidade, à função social e às prerrogativas ambientais referidas pelo mesmo, na análise do restante dos artigos e de seus anexos – sobretudo o Anexo V, onde se escondem seus parâmetros urbanísticos – o já referido princípio da justa distribuição dos bônus e ônus do desenvolvimento urbano é ignorado: tais parâmetros são elevados de forma bastante agigantada, sem que tenham sido apresentados estudos que comprovem a viabilidade deste aumento; e, apesar de haver aumento ainda mais significativo de potencial construtivo mediante contrapartida dos proprietários de terras (através do uso da outorga onerosa do direito de construir), mesmo sem ela já se tem garantida, a partir dos parâmetros básicos elevados, enorme mais-valia fundiária.
Rabello também aponta mais um desrespeito ao Estatuto da Cidade, em seu Art. 2º, inciso VI, alínea g, e incisos XII e XIII: o PEU das Vargens induz e autoriza esta ocupação maciça desta baixada junto ao Maciço da Pedra Branca, área notoriamente considerada ambientalmente frágil. Dados da própria Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, recente e amplamente divulgados, como os Indicadores Ambientais da Cidade do Rio de Janeiro (8), os documentos relacionados ao Seminário Rio: Próximos 100 anos (9) e o relatório da Secretaria Municipal de Urbanismo – SMU com os diagnósticos e propostas para a revisão do Plano Diretor (10), claramente apontaram a fragilidade da área hoje abrangida pelo PEU aprovado (Ver Figuras 1 a 3 e Quadro 1). O que já evidenciava, por um lado, maior necessidade de monitoramento e controle do uso e da ocupação do solo a partir da restrição ao adensamento. E, por outro lado, um conhecimento prévio da PCRJ, divulgado à sociedade, sobre estas questões.
Por fim, fato flagrante de desrespeito ao já referido Artigo 2º, em seu inciso VI, alínea c e também à lei federal sobre parcelamento do solo urbano, (11) é o PEU das Vargens estabelecer parcelamento e edificação em absoluto desacordo com a infraestrutura da área. Nesse ponto é preciso se ressaltar a estratégia discursiva de defesa da lei, tanto em seu próprio texto quanto em notícias publicadas na imprensa: tem-se defendido que a utilização do instrumento da outorga onerosa, para elevação de potencial construtivo mediante aumento de taxas de ocupação e índices de aproveitamento do terreno e de diminuição de tamanho de lotes mínimos e taxas de permeabilidade, é uma maneira de se suprir a necessidade de infraestrutura da área (entendida tanto no que diz respeito ao saneamento básico quanto ao sistema de mobilidade urbana). Entretanto, o que a lei induz, é um contundente aumento de demanda por infraestruturas, justamente em uma área vulnerável e onde a população já não possui, hoje, atendimento adequado dos serviços.
Além disso, a compra de potencial construtivo não é garantida no texto da lei: o mercado, se assim preferir, poderá adensar a área sem a utilização do instrumento da outorga, já que os índices básicos já são bastante generosos. E, no caso da compra deste potencial, também não é legalmente garantida a aplicação dos recursos oriundos da contrapartida na própria área.
O presente texto focará atenção nesta relação entre o aumento de densidade urbana, provocado por mudanças na legislação urbanística, o que resulta, minimamente, em aumento evidente de necessidade de provisão de infraestrutura para o saneamento básico (abastecimento de água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana). Na primeira parte do trabalho, abordarei brevemente os prós e os contras de densidades altas e baixas, relacionando-as a critérios ambientais e orçamentários. O objetivo é fazer perceber que mudanças na legislação urbanística, como as propostas pelo PEU das Vargens, trazem consigo um modelo de ocupação do território, que seja planejado ou absolutamente arbitrário, pode ser predatório quando ignora as condições ambientais da área de implantação e sua capacidade de suporte – inclusive de receber os danos do próprio processo de implantação maciça de infraestrutura. Tal discussão será realizada, evidentemente, tendo o PEU das Vargens como objeto de análise.
Em seguida, apresentar-se-á a síntese de cálculos efetuados de modo a se delinear, através de quatro cenários possíveis, projeções de população e potencial construtivo para a área. Ainda que sejam cálculos preliminares, o objetivo é esboçar um gradiente de impacto do processo de ocupação gerado pelo modelo proposto em lei. Os dados serão analisados, brevemente, na escala da área abrangida pelo PEU como um todo e, também, nas zonas internas aos setores por ele propostos.
Densidades, infraestruturas e condições ambientais
A densidade urbana é, segundo Acioly e Davidson, (12) um dos componentes mais importantes do planejamento das cidades. A ela se associam fatores de influência que variam da disponibilidade do solo urbano às legislações urbanística e edilícia existentes ou a alterar, à tipologia e ao porte dos edifícios habitacionais e ao tamanho das famílias, dentre inúmeros outros fatores.
Para se entender as múltiplas dimensões da densidade urbana, faz-se necessário, antes, algumas distinções. Veja-se, abaixo:
- densidade demográfica: número de pessoas residindo em determinada área, geralmente expressa em hab/ha;
- densidade habitacional (ou residencial): trata-se do número de unidades residenciais de determinada área, dividida pela área em hectare;
- densidade bruta: relação entre o número de habitantes dividida por determinada área, geralmente expressa em hab/ha, incluindo-se no cálculo desta área as áreas de outros usos que não sejam o residencial;
- densidade líquida: trata-se da mesma relação entre o número de habitantes e determinada área, geralmente expressa em hab/ha, considerando-se no cálculo da área apenas as porões territoriais destinadas a unidades residenciais;
- tanto a densidade demográfica quanto a habitacional podem ser expressas na forma bruta ou líquida.
Os referidos autores argumentam que não existe uma pré-definição de que densidades altas são necessariamente ruins e as baixas, por sua vez, boas. Ou vice-versa. Na verdade, devem ser considerados variados fatores que determinarão o efeito positivo ou negativo de determinadas densidades. Alguns destes fatores são extremamente subjetivos e de difícil mensuração. Por exemplo, o desenvolvimento geo-histórico e alguns traços culturais influenciam na percepção de densidades urbanas: em lugares como a Ásia e a África, densidades líquidas altíssimas, acima dos 600 hab/ha, não são vistas de forma tão extremamente negativa como seriam na Europa ou Estados Unidos (ver Figura 4).
Outros fatores, porém, são bem mais palpáveis e objetivos, portanto passíveis de planejamento através do controle do uso do solo (e, portanto, da densidade). Há que se considerar que necessariamente maiores populações geram mais resíduos, tanto de origem material (esgoto e lixo, por exemplo) como energética (calor). Fatores como o direcionamento da expansão, em conjugação com o adensamento empregado têm relação direta com os gastos com as redes: um espraiamento da urbanização gerará custos elevados de implantação de infraestrutura (pavimentação, redes, transporte) e enormes deslocamentos da população (que geram gasto energético e potencial de poluição e engarrafamentos, via maior necessidade de deslocamento individual motorizado ou por transportes públicos).
Por outro lado, densidades elevadas de fato são positivas no que diz respeito ao gasto orçamentário com redes de infraestrutura. Mascaró (13) argumenta que os custos de urbanização são mais baixos entre 300 a 600 hab/ha; soma-se a isso o fato de que, dentre os serviços de infraestrutura, a pavimentação é o componente mais caro seguido do esgotamento sanitário e da drenagem. Assim, é fator positivo a maior densidade para este custo das redes, desconsiderando-se outros fatores, pois este decresce muito quando ela é elevada. Mas a densidade habitacional, maior contribuição de área construída nas cidades, tem direta relação com a impermeabilização do solo, que por sua vez tem impacto direto sobre a drenagem das águas pluviais – mais impermeabilização significa, necessariamente, maior volume de água sendo lançada a jusante no corpo hídrico em maior velocidade, ou seja, maior risco de inundação. Além disso, maiores populações fazem surgir mais automóveis nas ruas, lançam mais esgoto sobre os corpos hídricos – o que demanda, em tese, mais tratamento de esgoto e, portanto, mais gasto energético –, consomem mais água, necessitando mais captação de água dos mananciais a montante e geram mais resíduos sólidos (por sua vez, geradores de mais tráfego, via caminhões de coleta; de demanda de área de aterro sanitário; e, potencialmente, de poluição difusa, através de resíduos arrastados pelas águas de chuva, entupindo rede de esgotos e drenagem, chegando inclusive aos corpos hídricos). Em outras palavras, não se deve fazer uma relação direta entre aumento de densidade e redução de custos, já que o aumento de densidade, mesmo que acompanhado de investimentos nesta infraestrutura, aumenta indiretamente gastos com controle de riscos ambientais, gastos energéticos, monitoramento e controle de trânsito e emissões de gases, controle de vetores de doenças etc.
Neste sentido, mais grave é Acioly e Davidson (14) afirmarem que normalmente a promoção de maiores densidades em metrópoles brasileiras, como São Paulo, mediante a utilização de instrumentos como a operação urbana consorciada e a outorga onerosa do direito de construir, nao vir acompanhada das infraestruturas existentes, adequadas à projeção de adensamento, com o mínimo de complementação: não necessariamente a infraestrutura condicionada a uma parceria público-privada é realmente executada e, se executada, não há garantias que esta ocupação seja ordenada e dentro dos parâmetros da lei. A indução de altas densidades contém o risco de também induzir irregularidades de ocupação e construção, e, portanto, riscos de uma densidade acima do previsto e a conseqüente saturação das redes.
Em outras palavras, deve-se considerar, de forma integrada e indissociável tanto as medidas estruturais (intervenções físicas) quanto as medidas não estruturais (demais intervenções do processo de planejamento) que são parte do processo de planejamento urbano e ambiental (15): a gestão das águas municipais (16) –no que diz respeito à captação, à emissão de efluentes (águas residuárias), ao controle da contaminação de mananciais, à macrodrenagem, à microdrenagem, ao abastecimento de água e à eficiência e à fiscalização de todos estes serviços; o gerenciamento integrado de resíduos sólidos; a legislação do uso do solo (incluindo as ocupações irregulares de faixas marginais de rios e lagoas, que contribuem para as inundações); a necessidade de provisão do déficit habitacional em diversas áreas da cidade; e, por fim, a adoção de tecnologias limpas e soluções eficientes nos lotes urbanos e nas próprias edificações.
Projeção de população, densidades e demanda por infraestruturas a partir de quatro cenários
Visando a um delineamento da magnitude de impacto do modelo de ocupação inerente ao PEU das Vargens, foram considerados quatro cenários possíveis para sua área, a saber:
Cenário 1 – Potencial Construtivo Máximo - PEU aprovado, construído da seguinte forma:
-
são utilizados os parâmetros urbanísticos do Anexo V da Lei Complementar 104/09, desconsiderando-se as propostas de alteração enviadas pelo executivo à Câmara Municipal, por meio do PLC 37/09;
-
visando à representação de uma potencial construtivo máximo, considerou-se que todos os parcelamentos seriam inferiores a 30.000 m², o que, pela referida lei, determina apenas 15% (quinze por cento) de doação de terras à municipalidade;
-
visando à representação do potencial construtivo máximo, considerou-se que o mecanismo do aumento de parâmetros mediante contrapartida, quando permitido, sempre seria utilizado;
Cenário 2 – Potencial Construtivo Máximo - proposta de alteração do PEU, assim construído:
-
são utilizados os parâmetros urbanísticos do Anexo V da Lei Complementar 104/09, sendo consideradas todas as propostas de alteração enviadas pelo executivo à Câmara Municipal, por meio do PLC 37/09;
-
demais situações idênticas ao Cenário 1.
Cenário 3 – Potencial Construtivo Básico - PEU aprovado, assim construído:
-
são utilizados os parâmetros urbanísticos do Anexo V da Lei Complementar 104/09, desconsiderando-se as propostas de alteração enviadas pelo executivo à Câmara Municipal por meio do PLC 37/09;
-
considerou-se que todos os parcelamentos seriam superiores a 30.000m², o que, pela referida lei, determina 30% (trinta por cento) de doação de terras à municipalidade;
-
desenha-se um cenário em que o mercado não aderiu à outorga, considerando já como vantajosos os índices básicos; desse modo, mesmo que permitido na zona, o aumento de parâmetros mediante contrapartida nunca foi utilizado.
Cenário 4 – Potencial Construtivo Básico - proposta de alteração do PEU, construído da seguinte forma:
-
são utilizados os parâmetros urbanísticos do Anexo V da Lei Complementar 104/09, sendo consideradas todas as propostas de alteração enviadas pelo executivo à Câmara Municipal, por meio do PLC 37/09;
-
demais situações idênticas ao Cenário 3.
Desenhados os cenários, efetuou-se uma série de cálculos de modo a se ter uma projeção de população e, conseqüentemente, certa determinação de densidades e demanda por infraestruturas. Para estes cálculos, considerou-se para todos os cenários, em todas as zonas de todos os setores:
Para determinação da área passível à edificação
-
desconto de área em 15% (quinze por cento) ou 30% (trinta por cento), referente à doação de áreas públicas, de acordo com a Lei complementar para cada situação (parcelamentos inferiores ou superiores a 30.0000m², respectivamente);
-
desconto de 25% (vinte e cinco por cento) para usos não-residenciais.
Para determinação do número de unidades residenciais e população:
-
no caso de unidades multifamiliares, cálculo obtido tendo como base a área total edificada, havendo desconto de 10% (dez por cento) da área total edificada, relativas a áreas de uso comum mínimas;
-
no caso de unidades unifamiliares, cálculo obtido através do lote mínimo;
-
família de 3,5 pessoas (IBGE).
-
área de 100m² para cada família/unidade residencial, sendo 70 m² para o apartamento e 30 m² para garagem;
Para determinação do consumo diário de água:
-
o valor de 0,2369m³/dia per capta (SNIS/IBGE, 2007).
Para determinação do esgoto a se coletar diariamente:
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o valor de 0,2377m³/dia per capta (SNIS/IBGE, 2007).
Para determinação dos resíduos sólidos domiciliares a se coletar diariamente:
-
o valor de 0,000657 ton/dia per capta (PCRJ, 2004).
A partir destas condições, foram conseguidos totais parciais (por zona e setor) e totais gerais. Referenciando-se toda a área abrangida pelo PEU das Vargens, tem-se o Quadro 2, subsequente. Além disso, foram produzidos, por zona, mapas contendo o resultado dos cálculos e análise de parâmetros da nova lei, para os Cenários 1 e 2, os mais críticos, apresentados nas Figuras 5 a 12. (17)
Os cenários apresentados revelam espectro de impactos altos sobre a área. Desse modo, ainda que o Cenário 1 seja uma projeção de futuro de uma realização total do potencial construtivo, o que não ocorre tão frequentemente, este potencial está previsto em lei, e portanto não pode ser descartado - ele pode acontecer! Afinal de contas, bairros cariocas como Copacabana e o Centro são exemplos presentes de ocupação que ao longo do tempo realizou praticamente 100% (cem por cento) de suas possibilidades de adensamento. Por fim, ainda que o Cenário 1 de fato nunca se concretize, os outros três também revelam impactos extremamente significativos.
Nesse sentido, vale a pena se fazer algumas comparações entre os dados projetados e os dados efetivos de bairros da cidade. O já referido relatório da SMU para a revisão do Plano Diretor Decenal da Cidade aponta que, no que diz respeito à densidade demográfica (bruta), em 2000, eram pouquíssimos os bairros que ultrapassavam 200 hab/ha, situação ilustrada pelo mapa da Figura 13. Os Cenários 1 e 2 superam esta marca. Além disso, os bairros abrangidos pelo PEU das Vargens também possuíam, em 2000, densidades inferiores a 50 hab/ha, valor muito abaixo até mesmo que o previsto em cenário de menor adensamento, o Cenário 4, que tem a significativa marca de 110 hab/ha. Mesmo que estes dados da SMU sejam antigos, o mesmo relatório apontou que o crescimento populacional na cidade, no período anterior de dez anos (1991-2000), fora inferior a 6% (seis por cento). Assim, é possível considerar não ter havido mudanças tão significativas na população da área.
O Relatório da SMU também recomenda um Macrozoneamento para a cidade, que leva em consideração os limites dos seus bairros. E, diante de fragilidades ambientais e infraestruturais pré-existentes apresentadas ao longo do documento em Pedra de Guaratiba, Guaratiba, Barra de Guaratiba, Grumari, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Pequena, Vargem Grande, Camorim, Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Itanhangá, propõe uma macrozona que os conjugue, chamada Macrozona Condicionada. Esta é a Macrozona
Pela mesma razão, o documento recomenda manter-se para os bairros do Recreio dos Bandeirantes, Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena os índices de aproveitamento máximo definidos no Plano Diretor de 1992, quais sejam: 1,5 para o Recreio, Camorim, Vargem Pequena e as áreas situadas ao longo do eixo da avenida das Américas; e 1 para Vargem Grande, conforme a Figura 14.
Ao se voltar aos cálculos realizados, e considerar os valores conseguidos por setor e zona, notar-se-á situações extremamente críticas: nas projeções dos Cenários 1 e 2 para as ZUM 3 dos setores A, B, G, I, J e L têm-se as densidades de 840 hab/ha (líquida) e 535,50 hab/ha (bruta). São densidades próximas as das cidades mais densas da África, onde a densidade líquida é acima de 900 hab/ha (ver Figura 4). Também são valores acima do limite de saturação indicado pela SMU no processo de revisão do Plano Diretor, estipulado em 500 hab/ha, número, aliás, bem acima da média das cidades latino-americanas.
São também marcas superiores as dos dois bairros de maior densidade do Rio de Janeiro, que são Catete e Copacabana: eles apresentavam, em 2000, valores brutos de 422,3 hab/ha e 389,50 hab/ha, respectivamente. Neste sentido, cabe assinalar que especificamente a ZUM 3 do Setor A possui 57,23 ha, área um pouco menor que a do bairro do Catete, que é de 68,10 ha. Em outras palavras, a ZUM 3 do Setor A é um bairro um pouco menor e muito mais denso que o bairro de maior densidade da cidade. Há um Catete dentro do Setor A do PEU das Vargens. E as demais ZUM 3 deste mesmo setor têm áreas ainda menores, com a mesma densidade. A demanda por infraestrutura é, portanto, altíssima, e a eminência de não-atendimento é um sério risco de agravamento de problemas já existentes de saneamento básico, sobretudo para as populações de baixa renda.
Cumpre destacar, por fim, algumas observações sobre o Setor L. Em duas de suas zonas a relação de densidade é imprecisa, por se tratar de área do Autódromo e outra destinada a equipamentos públicos (Hospital Sara Kubitschek), não se apresentando no Anexo V da lei aprovada, os parâmetros urbanísticos correspondentes. O hospital,com certeza, gera impactos relacionados a consumo de água, esgotamento sanitário e resíduos sólidos, mas que não foram computados em nosso cálculo por não serem oriundos da população residente, nosso foco. O mesmo ocorre para a outra zona referida: não se trata estritamente de um uso residencial, mas sim da área prevista para a grande maioria das instalações esportivas, a Vila de Mídia e a Vila Olímpica para as Olimpíadas de 2016, conforme documento apresentado ao Comitê Olímpico Internacional (19). Ali, haverá usos que trarão população durante e depois das Olimpíadas, nas Vilas Olímpica e de Mídia, fora os demais impactos. Apesar disso, não puderam ser aqui mensurados, por ausência de parâmetros. Esta ausência de definições transformam o setor em uma profunda incógnita, uma brecha perniciosa na legislação. Mais que isso, os equipamentos de grande porte necessitarão ampla cobertura de infra-estrutura e alterarão significativamente a paisagem.
Cabe ressaltar que na legislação anteriormente vigente, nestas áreas não eram permitidos o parcelamento e a edificação, sendo classificadas como áreas non aedificandi. Sem razão aparente, se converteram na nova lei a parâmetros extremamente generosos que podem chegar, mediante contrapartida, a um IAT = 3, com 50% (cinqüenta por cento) de taxa de ocupação e apenas 30% (trinta) de taxa de permeabilidade. As Figuras 15 a 18, subseqüentes, exemplificam algumas transformações possíveis.
A área onde estão previstas as edificações para as Olimpíadas está próxima, portanto, por terras as quais a lei aprovada destina generosos índices, um claro indício de especulação imobiliária promovida pela legislação urbanística, a título da inserção de equipamentos, que promoverá provavelmente nova centralidade urbana a partir de uma mudança significativa da própria paisagem e de seus usos.
Considerações finais
Pode-se considerar, seguramente, que os parâmetros apresentados pelo PEU das Vargens, recentemente aprovado, sem qualquer discussão com a sociedade, não se encontram sustentados a partir de entendimento e, sobretudo, estudo de viabilidade que leve em consideração a interdependência de fatores que influenciam a qualidade do ambiente natural e construído. Emerge do texto da lei aprovada um modelo de ocupação que não se adéqua ao Estatuto da Cidade e ignora a revisão do Plano Diretor. O PEU das Vargens é um enorme risco potencial às condições ambientais da área, que, por isso, se implantado, necessitará maiores orçamentos tanto para garantir a ocupação da área como para se reverter os prováveis danos ambientais por ela gerados.
Um problema evidente deste modelo delineado pelo texto legal é o de manter um eixo de crescimento para a periferia, particularmente através da expansão espraiada e de autopistas cristalizada na Barra da Tijuca; outro problema é ocupar, desnecessariamente, quantidade expressiva de solo urbano – um recurso escasso e caro, sobretudo em uma cidade localizada entre mar e montanha e com uma série de terrenos de cota baixa – e, desse modo, adensar uma área já carente de infraestrutura, e tradicionalmente com poucos investimentos públicos ou privados neste setor – vide o exemplo da Barra da Tijuca.
Sob o ponto de vista do orçamento público, portanto, este modelo de ocupação necessariamente demandará vultosos gastos, provavelmente ao longo de muito tempo, na região em detrimento de outras áreas da cidade por ventura mais necessitadas.
E, sob o ponto de vista do mercado imobiliário, a ocupação desta área, tão frágil, também demandará gastos. Dois exemplos: a estabilidade das construções só será conseguida mediante soluções estruturais dispendiosas - ao se considerar gabaritos de 15 e 18 pavimentos como previstos para algumas zonas, custos serão elevados, por exemplo, para as fundações das edificações; serão provavelmente necessárias, também, soluções para sistema de coleta de águas dentro do próprio lote para posterior lançamento na rede. Estes poucos exemplos já esboçam que, para se viabilizar a ocupação da área com edificações de qualidade técnica, a tipologia habitacional ali produzida será provavelmente de alto padrão e de alto preço, para se pagar os gastos da construção.
Em uma área com significativa população de vulnerabilidade social, esta situação poderá vir a apresentar um elevado custo social. Esboça-se, com o PEU, um modelo de expansão que traz consigo o aumento do preço da terra e do custo de vida, conjugado com a ausência de alternativas para a habitação, um processo largamente difundido na produção do espaço das cidades brasileiras (20). Realiza-se, através dele, a gentrificação a passos largos que, por conseguinte, efetua-se em duas frentes. Por um lado, há um gradual deslocamento da população de baixa renda hoje residente para outras porções territoriais da cidade, possivelmente ainda mais periféricas e precárias. Por outro lado, desta massa de desfavorecidos, aos que permanecem, há a ocupação irregular e predatória em áreas ainda mais frágeis, a partir da construção informal de habitações precárias localizadas nas terras com impeditivos legais, i.e., não passíveis ao parcelamento e à edificação, tais como faixas marginais, topos de morros, encostas, além das áreas úmidas que não tenham sido parceladas para o mercado formal e/ou que não tenham sido utilizadas para a produção formal de habitação.
Configuram-se, assim, dois problemas da esfera do saneamento básico. Um deles, a avassaladora provisão técnica e orçamentária de infraestrutura necessária para suprir a demanda oriunda da habitação formal consentida pela lei; o outro, os impactos de uma ocupação irregular que ocorrerá de forma concomitante e mais acelerada, em condições ambientais que tornam ainda mais precárias quaisquer deficiências de execução técnica, tipologia habitacional e ao padrão construtivo, agigantam a vulnerabilidade econômica, o acesso a serviços e o risco epidêmico e de morte e que, vista fora de seu contexto, culpabiliza a população pobre tanto pelos danos ambientais quanto pelas mazelas sociais a que são submetidos.
Diante de tais evidências, não resta outra atitude a não ser o questionamento da lei aprovada. A partir de que estudos ou conclusões estão sendo atribuídos índices tão elevados para a área do PEU das Vargens? Por que a Prefeitura sancionou uma lei que está claramente em desacordo com estudos anteriores por ela realizados e divulgados? Quanto há e aonde estão alocados os recursos necessários, com certeza dispendiosos, para se minimizar o contundente impacto que a ocupação proposta pelo PEU irá gerar? O que ocorrerá se o mercado não se interessar pelo mecanismo das contrapartidas? O que acontecerá com as duas zonas do Setor L em que não estão claramente definidos parâmetros, caso resolva-se construir as edificações para as Olimpíadas em outra área? E, por fim, talvez a mais importante pergunta: a quem pode interessar tantos riscos ambientais?
notas
1
Este trabalho é adaptado de um parecer inserido em estudo mais amplo do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-Rio. O documento, sobre o PEU das Vargens, e com contribuições de variados profissionais ligados àquela universidade, foi elaborado a pedido do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ).
2
Lei Federal n. 10.257. Brasil, 10 de julho de 2001.
3
Ver: FINK, Daniel Roberto. “Legislação ambiental aplicada”. In: PHILIPPI JR., Arlindo (ed.). Saneamento, saúde e ambiente.Fundamentos para um desenvolvimento sustentável. Barueri, Manole, 2005, p. 733-759.
4
Idem, ibidem.
5
Lei Complementar n. 104. Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2009.
6
RABELLO, Sonia. “Os Sete Pecados Capitais do PEU das Vargens”. 17 de novembro 2009. Disponível na Internet via <http://soniarabello.blogspot.com/search/label/Legislação>. Ver também: REDONDO, Andréa Albuquerque Garcia. “PEU das Vagens, ainda há tempo?” In: Minha cidade, Ano 10, vol. 4, p. 284. Artigo disponível na Internet via <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc284/mc284.asp>.
7
Projeto de Lei Complementar 37. Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2009.
8
Indicadores ambientais da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2005. Também disponível na Internet via <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/protocolo/Indicadores_capitulos/index.htm>.
9
O Seminário foi realizado em 10 e 11 de outubro de 2007, pelo Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP), a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAC), o Laboratório de Gestão do Território (LAGET) e o Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) da UFRJ. Contou com contribuições de diversos especialistas sobre temas relacionados a mudanças climáticas, vulnerabilidades, impactos potenciais, infraestrutura e saúde pública. O material está disponível na Internet via <www.rio.rj.gov.br/ipp/ec_social.htm>.
10
Relatório da Revisão do Plano Diretor Decenal da Cidade. Rio de Janeiro, PCRJ/SMU, 2006. Voltarei a este documento mais à frente.
11
Lei Federal n. 6766. Brasil, 19 de dezembro de 1979.12
ACIOLY, Claudio; DAVIDSON, Forbes. Densidade urbana. Um instrumento de planejamento e gestão urbana. Rio de Janeiro, Mauad, 1998.
13
MASCARÓ, Juan. “Qualidade das Obras Urbanas”. In: Revista Arquitetura e Urbanismo, Ano 14, n. 80, outubro/novembro, 1998.
14
Idem, ibidem.
15
Para ver uma explanação sobre as diferenças e interdependências entre medidas estruturais e medidas não-estruturais no processo de planejamento do saneamento (com ênfase na drenagem urbana) ver: DE BARROS, Mario Thadeu Leme. “Drenagem urbana: bases conceituais e planejamento” In: PHILIPPI JR., Arlindo (ed.). Op. cit., p. 221-265.
16
Ver: TUCCI, Carlos Eduardo Morelli. “Águas urbanas: interfaces de gerenciamento”. In: PHILIPPI JR., Arlindo (ed.). Op. cit., p. 375-411.
17
Os referidos mapas foram elaborados, a partir de meus cálculos e análise da legislação, pelo geógrafo Rafael Nunes, que integra a equipe permanente do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente – NIMA da PUC-Rio. Agradeço imensamente sua dedicação e eficiência.
18
Idem, ibidem, p. 125, grifos meus.
19
Rio de Janeiro 2016. Volume 1. PCRJ, 2009. Disponível na Internet via <www.rio2016.org.br/sumarioexecutivo>.
20
Ver: MARICATO, Ermínia. “Metrópole, legislação e desigualdade” In: Estudos Avançados. Volume 17, n. 48, 2003, p. 151-167.
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Tendo como exemplo uma área próxima a 1 hectare e, mediante a utilização do aumento de potencial construtivo mediante contrapartida, na ZUM 2 do Setor L permite-se parcelamentos com lotes de360 m². As figuras acima mostram a situação em planta baixa e perspectiva esquemáticas da utilização da taxa de ocupação máxima de 50%. Desse maneira, atinge-se o limite 6 pavimentos para a utilização do IAT = 3
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Na mesma área, em uma situação em que o empreendimento queira atingir os 15 pavimentos previstos como máximo para a ZUM 2, o IAT=3 será atingido mediante taxa de ocupação de20%, o que pode-se inviabilizar em lotes pequenos, mas pode se tornar economicamente vantajoso, para os proprietários em lotes maiores ou condomínios fechados.
sobre o autor
Leonardo dos Passos Miranda Name (Leo Name) é arquiteto e urbanista (FAU-UFRJ, 2001), Especialista em Sociologia Urbana (IFCH-UERJ, 2002), Mestre e Doutor em Geografia (PPGG/IGEO-UFRJ, 2004 e 2008). É professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio e organizador do número 116 de Arquitextos.