No inverno de 1943, quando eu tinha quatro anos, minha mãe me levou em uma viagem de trem pelas paisagens cobertas de neve de Bennington College até Poughkeepsie, Nova York. Por lá me manteve durante alguns meses estudando na escola Hill and Hollow e foi ao encontro de meu pai em Porto Rico. Alguns anos mais tarde eu percebi que ele precisava mais de minha mãe do que eu.
Já naquela época, Porto Rico foi implantado, em minha consciência jovem, como um lugar especial, muito devido às incríveis histórias contadas por meus pais após retornarem. Eles estavam excitados com os bambuzais, as pererecas que surgiam de noite, uma pequena ilha próxima onde os macacos eram alvos de estudos e as plantações de baunilha, que minha mãe ajudou a polinizar no viveiro Holger Fog, onde moravam. Este paraíso porto-riquenho estava ainda ligado à minha memória de infância pela imagem dos troncos e galhos marrons manchados de cinza pela neve efêmera na floresta próxima à escola onde estudava. E também pelos faróis dos carros na autoestrada que iluminavam o teto do hospital para onde havia sido levado para tratar um abscesso no dente. Ficava sempre imaginando ser minha mãe chegando para me buscar, mas não era.
Todas as histórias de família contadas durante minha juventude foram gravadas pela jovem Laurence Weschler como parte do acervo da UCLA, em 1978. De acordo com as memórias da minha mãe, meu pai recebeu uma carta convite diretamente do ex-secretário de agricultura Rex Tugwell, o nomeado governador de Porto Rico. Ele estaria interessado em ser consultor de projetos de escolas, centros de saúde e hospitais em Porto Rico? Meu pai fez uma visita exploratória em novembro de 1943, retornando com minha mãe em dezembro de 1943 e janeiro de 1944 e, pelo menos, uma vez mais além desta. Na entrevista para Weschler, ela diz: “ele teve de contratar quarenta pessoas para ajudá-lo a projetar esses hospitais” (1). Trabalho este que se concretizou durante o período de férias do Bennington College, onde, na época, dava aulas sobre a economia no período da Segunda Guerra Mundial. Devido à política do escritório com os arquitetos em cena, nenhum outro trabalho foi concretizado em Porto Rico. Até onde eu saiba, ele nunca mais foi convidado de volta para Porto Rico, No entanto, pelo menos uma de suas inovadoras escolas projetadas foi realmente construída em Rio Piedras, atualmente subúrbio de San Juan. Meu pai usou fotos embaçadas, plantas e perspectivas para ilustrar as conversas que teve durante a viagem pela América Latina a cargo do Departamento de Estado norte-americano. Ocorrida no final do ano de 1946 (2), visitou Brasil, Argentina, Chile e Peru e, alguns anos mais tarde, em 1948, publicou no Brasil o livro Arquitetura Social (3) em versão bilíngue – português e inglês.
O livro demonstra suas idéias sobre arquitetura tropical para centros de saúde, hospitais e centros educacionais, onde as crianças não seriam perfiladas em fileiras de mesas em edifícios com vários andares. Ao contrário, a educação poderia se ramificar para as áreas externas. Isto foi possível através da criação de salas onde uma das paredes era substituída por grandes portas basculantes que poderiam ser abertas de forma a servirem como barreiras para a insolação direta. Assim, o espaço aumentava, o custo diminuía e era gerada a possibilidade de uma didática educacional menos hierárquica. Quando tudo isso aconteceu, meu irmão mais velho Dion, que algum tempo depois começou a ajudar no escritório, cursava o colegial em Los Angeles, onde vivia sob a supervisão dos meus avós. Recentemente, sessenta anos mais tarde, ele visitou Porto Rico e foi levado àquela mesma escola com grandes portas basculantes, que foram removidas e o vão preenchido com alvenaria de blocos de concreto. Há alguns anos, a estudante Eliza Munoz Storer escreveu uma tese sobre como a tradicional cultura da autoridade combinada com a necessidade de se preparar os jovens porto-riquenhos para um regime industrial levou ao fim essa tipologia inovadora de escolas. No entanto, emails trocados com os contatos de Dion e com os da historiadora de arquitetura Barbara Lamprecht sugerem que, escondidos em remotas cidades montanhosas de Porto Rico, podem ser encontrados exemplos vivos de escolas, centros de saúde rurais e, provavelmente, até um hospital regional construídos em concreto armado que se assemelhariam aos projetos do meu pai.
Desde que passamos por Porto Rico durante uma viagem pelas Ilhas Virgens Britânicas, em março de 2010, decidi organizar uma caçada atrás desses rumores. Barbara Lamprecht se juntou a minha mulher Peggy Bauhaus e a mim nesta caçada. Nossos guias eram o casal de arquitetos Andres Mignucci e Maribel Ortiz. Esta foi a primeira vez em que a memória da ilha voltou de forma tão emocionante na minha mente.
Partes da viagem de descobrimento confirmaram minhas lembranças de infância: as exuberantes florestas nas encostas montanhosas e as praias tropicais. O coaxar dos sapos soando como pássaros a noite toda. O forte El Moro, do século 16, estava lá como prometido, juntamente com a estátua do astuto bispo que conseguiu expulsar os invasores alemães.
Mas tivemos algumas surpresas. Eu não esperava a diversidade de cores encontradas nas casas do século 19. Andres disse que havia mínimo controle das autoridades para estabelecer uma combinação de cores possíveis para as construções adjacentes. A combinação de cores, criada com o uso do piso tradicional e o de pequenas pedras, é muito agradável.
Andres levou-nos a diversos parques, alguns dos quais ele próprio havia redesenhado. Um deles dedicado a Munoz Rivera, poeta e pai do governador Luis Munoz Marin (4). No parque temos uma estátua do poeta Manuel Maria Corchado y Juarbe que havia reformado na cidade de Isabela.
Freqüentemente, esses parques surgem como forma de comemoração de homens e mulheres da cultura porto-riquenha.
Existem vários deles espalhados pela Praça San German.
Meu amigo e anfitrião, o historiador e epidemiologista Dr. Jose Rigau, me disse que, ao contrário do que o nome Porto Rico diz, a ilha foi inicialmente colonizada como uma base militar estratégica espanhola e não possuía nada do esplendor barroco das cidades do México e Cuzco. Não obstante, percebi um forte desejo, por parte daqueles que controlam esses parques, para afirmar uma identidade cultural apesar ou até mesmo pelo fato de ser a criança rejeitada de dois impérios, o espanhol e o americano. Andres afirmou que, culturalmente, a ilha é cercada de espelhos, ou seja, tem a tendência de olhar para si mesma. Após ter dirigido pela metade oeste da ilha, estávamos no pôr-do-sol em Ponce e eu convidei todos para jantar, se Andres sugerisse o local. Uma conversa no celular com um amigo nos levou para o restaurante “Las Tias”. “Mas a rádio transmitirá um programa.”, Andres disse. O que isso queria dizer? Entramos então em um pórtico do século 19 com pé-direito alto e nos deparamos com uma sala similar, também com pé-direito alto, cujas persianas estavam escancaradas permitiam que uma porta piso-teto ligasse esse espaço ao pórtico no qual estávamos. Dentro havia uma mesa oval, onde os oito ocupantes seguravam microfones. O guitarrista integrante do grupo as vezes acompanhava a senhora cantora em tristes canções de amor que, segundo Andres, pertenciam ao gênero “corta venas” (corta veias). Entre as músicas, iniciavam-se animadas discussões políticas sobre o partido que havia, recentemente, perdido as eleições em Ponce. Andres disse que a dona do “Las Tias” transmitia semanalmente em uma das estações de rádio por toda a ilha e tinha uma audiência interessada. Também que eleição e política são constantes tópicos de interesse e discussão para 85% dos porto-riquenhos. Após o jantar, me aproximei da dona e disse o quão reconfortante é saber que ainda existem lugares no mundo em que as pessoas se envolvam com as questões civis, combinando-as com a música!
O que mais me surpreendeu na nossa aventura do dia foi que eu não esperava encontrar tão única e vibrante cultura indígena após mais de um século sob os olhos dos Estados Unidos. Fiquei surpreso ao ver quantas pessoas, alfabetizadas ou não, se sentiam desconfortáveis por falar inglês e como o espanhol de padrões burocráticos e culturais ainda persistia na ilha. Eu também não cheguei preparado para apreciar a força da tradição histórica do século 19 em Porto Rico, que se desenvolveu de forma tão minguante no império espanhol. Andres nos disse que seus ancestrais Corsican vieram como parte de uma onda migratória encorajada pelos espanhóis no início daquele século. Este fato resultou numa próspera cultura de café, que supriu até mesmo o Papa. Tudo entrou em colapso quando os Estados Unidos falharam em providenciar tratados protecionistas contra o barato café brasileiro, providenciado pelos espanhóis. Mas os líderes porto-riquenhos de vários setores e educados nos Estados Unidos traçam hoje o caminho de volta às elites da era pré-americana. O avô de Andres assinou a constituição de Porto Rico no final da década de 1940, foi prefeito de sua cidade e aliado de Munoz Marin.
Fui surpreendido ao perceber que a seqüência de eventos que resultaram na presença do meu pai em Porto Rico e no papel que desempenhou quando chegou aqui não eram tão claras quanto as histórias contadas na minha infância.
De acordo com a tese de Eliza Munoz Storer, em 1942 Tugweel e o presidente do senado porto-riquenho Luiz Munoz Marin cooperaram para a criação do Comitê Pós-Guerra de Projetos Públicos, com verba de 1,3 milhões de dólares para projetos e 2,1 milhões para a aquisição de terras. (para esta informação ela se baseou no texto de Rexford Tugwell “A Experiência Porto-Riquenha de 1975”, p. 266) Uma equipe de arquitetos e engenheiros foi contratada para criar projetos padrões de escolas, centros de saúde e hospitais assim como moradia para a população. O objetivo era, assim que a guerra terminasse, o governo seria capaz de prover a infraestrutura necessária, principalmente para o meio rural, com política baseada nos ideais de Munoz Marin. Eliza afirma que o arquiteto Henry Klumb foi o diretor da divisão de projetos do comitê e que, em seus arquivos, foi encontrada a seguinte justificativa para a contratação do meu pai como consultor:
“A razão dele (Neutra) ter sido chamado para esta ilha não é meramente devido à sua reputação internacional como arquiteto e urbanista, mas pelo seu interesse nos potenciais e necessidades de um país específico para o qual projetou casas, hospitais, escola, comunidades, etc. Ele não nasceu na Califórnia tampouco no Caribe, mas seu trabalho na costa oeste fez com que a região fosse notada por seus projetos habitacionais adaptados. Não cresceu no Texas, mas seu projeto para uma residência, Vila Avignon, perto de Dallas é considerado o projeto mais texano do Texas.” (Box 3, Correspondências, Sub-série Projetos, cartapacio 3.5 em Klumb Arquivos U de Porto Rico)
Quem era Henry Klumb? Wikipedia relata sua chegada em Porto Rico, vindo de Los Angeles, no final de Fevereiro de 1944. Nascido em 1905, ele era 13 anos mais novo que meu pai. Formou-se em 1926 na Staatliche Bauschule em Cologne e trabalhou com Frank Lloyd Wright entre 1929 e 1933 durante a criação da Sociedade Wright e Oeste Taliesin, a qual ajudou a desenvolver. Andres afirmou que Henry deixou Wright quando precisou sustentar sua família. Ele e Stephen Arneson, outro aprendiz, foram embora ao mesmo tempo. Klumb trabalhou por um tempo com Louis Khan projetando casas de baixo custo e participou do projeto de Tugwell para uma das novas cidades de Nova Jersey; depois, em 1941, mudou-se para o departamento de planejamento de Los Angeles. Ele deve ter se familiarizado com o trabalho de meu pai e o ouvido discutir em Taliesin e ainda deve tê-lo procurado quando chegou a Los Angeles. Seria surpreendente se não o tivesse feito, porque meu pai era presidente da Agência de Planejamento Califórnia State do final da década de 1930 ao início de 1940. Os dois devem ter compartilhado a influência de Deutsche Werkbund e de Wright, então, provavelmente, eles tinham ideais filosóficos compatíveis. Julgando pelo tempo presente da citação acima, ela deveria estar nos seus arquivos, mas escrita antes de sua chegada por outra pessoa, ou ele poderia tê-la como uma confirmação da escolha feita por outro antes de Klumb ter sido contratado.
Como Turgwell ouviu falar sobre meu pai? Lembro que meu pai conheceu Eleanor Roosevelt e inclusive, na página 281 da história de Weschler, minha mãe diz que eles apertaram as mãos numa recepção para 500 pessoas em Porto Rico. Nem Weschler nem Thomas Hines se referem a outros encontros com Eleanor, mas tenho uma vaga memória de minha mãe mencionando um encontro pessoal em Washington. O certo é que meu pai era consultor no National Youth Administration, fundada com a insistência de Eleanor Roosevelt, em 1935, para prover treinamento profissional para jovens desempregados. Ela deve ter tomado conhecimento das iniciativas dos centros de treinamento em Sacramento e San Luis Bispo, da comunidade pré-fabricada em Avion Village, mencionada acima, e outras publicações que o colocavam como um grande inovador. Andres apontava Tugwell como uma pessoa próxima a Eleanor e que, juntos, tinham visitado Porto Rico em 1932, voltando convictos que o país seria beneficiado pelo New Deal. Em 1937, o arquiteto porto-riquenho Ramirez de Arrellano foi responsável por um projeto de casas feitas com um moderno concreto reforçado aerodinâmico em San Juan, nomeado, posteriormente, de Eleanor Roosevelt. Andres nos levou para visitar.
Se meu pai chamou a atenção de Eleanor por causa de Avion Village e sua consultoria no National Youth Administration, ele deve ter chamado a atenção de Rex Tugwell também.
Elisa Munoz Storer diz que Gropius, Eliel Saarinen e Aero Saarinen também foram convidados para serem consultores, mas recusaram. Andres pensou que tanto Tugwell como Munoz Marin viam a estética moderna e o comprometimento do problema moderno como o emblema de seu programa político de modernização. O envolvimento de arquitetos de primeira classe em seus projetos atrairia publicidade favorável e suporte político. Realmente Andres e Barbara encontraram uma carta de meu pai para Munoz Marin e para o reitor da Universidade de Porto Rico, fazendo referência a uma jantar com Marin na casa do reitor e a entrevistas dadas por meu pai a inúmeras revistas populares – promovendo o programa porto-riquenho. O famoso arquiteto estava reassegurando a seu cliente que esse contato com a imprensa renderia créditos aos projetos de Munoz Marin.
De acordo com uma carta de dezembro de 1943, de minha mão à minha avó – achada nos arquivos de Cal Poly Pomona – o colega de Klumb da escola de Taliesin, Stephen Arneson, foi um dos que negociou o contrato de meu pai depois de vários meses de inexplicável hesitação. Há uma correspondência posterior, nos arquivos de Neutra na UCLA, indicando divergências de projeto entre Arnerson, Klumb e meu pai. Isto deveria estar na Cal Poly Pomona “Christmas Letters” enviadas por minha mãe e que descreviam eventos entre 1943 e 1945. Ela encaminhou cópias destas cartas para o professor arquiteto Jorge Rigau – mas não pude localizá-las na minha primeira visita. Eles conversaram também sobre os conflitos entre Klumb e os arquitetos locais. Minha mãe disse: “foi muito, muito difícil porque, depois que ele teve um novo diretor de projeto que não o queria lá, ele preferiu um consultor porto-riquenho ao invés de um norte-americano. Então, não lhe deram um carro nem uma mesa onde sentar, mas ele persistia e o governador Tugwell foi muito prestativo.” Elisa Munoz Storer cita a ata de uma reunião de 26 de junho de 1944, indicando que, devido ao prazo de conclusão do projeto da escola, continuou sem a ajuda do meu pai. De acordo com uma nota que achamos em Cal Polly, a última visita de meus pais foi no início de 1945. Mas, no final deste mesmo ano, o contrato com meu pai não foi renovado. Logo, Klumb e Arneson ficaram por sua própria conta, com projetos de mobiliário e fabricação; e depois com o escritório particular de Klumb, onde projetou os prédios da Universidade de Porto Rico do final de 1940 até 1950. Nós os visitamos e fotografamos.
Seu museu, centro de estudos e dormitório feminino mostram o trabalho de um homem com idéias bem definidas e particulares. Seria compreensível se ele tivesse achado irritante simplesmente seguir as idéias de meu pai, que foi consultor temporário e que excedeu as regras usuais dos consultores com suas intervenções enérgicas. Se minha mãe estiver certa, no intervalo entre novembro de 1943 e 24 de fevereiro de 1944 – quando Klumb chegou –, meu pai contratou 40 arquitetos, projetistas e designers para fazer os desenhos técnicos dos projetos preliminares que havia feito.
Andres e seu colega da Polytechnic University School of Architecture, professor Jorge Rigau, indicaram que não conhecem nenhum integrante do comitê que ainda esteja vivo. Muitos dos membros, como Toro e Ferrer, fizeram distinta carreira modernista em Porto Rico. Alguns anos mais tarde o comitê foi dissolvido e os arquitetos chamados para desenvolver os protótipos projetados por meu pai e Klumb.
Nem Andres nem Jorge souberam me dizer como era organizado o dia-a-dia do comitê e se, por exemplo, haviam muitos arquitetos projetistas trabalhando em equipes de projetos específicos. Meu pai possivelmente tentou focar em projetos pontuais devido à presença, no arquivo de Neutra na UCLA, de estudos preliminares, com detalhamento posterior, para uma escola feminina na zona rural de San German, chamada Rosário. Visitamos o local, mas não encontramos qualquer evidência do fato.
Como os protótipos seriam usados? As estruturas seriam feitas em concreto armado. Seria esperado que o mesmo construtor fosse em cada área rural e construísse a mesma escola e centro de saúde por toda a ilha ou construtores regionais construiriam o mesmo projeto em várias localidades de regiões particulares? Como estes construtores eram selecionados? Como eram supervisionados? Eu estava impressionado com a qualidade das estruturas de concreto utilizadas nas casas mais humildes ao longo das estradas rurais pela ilha.
Dado que este era um trabalho de um comitê de projetos governamentais, chamar arquitetos particulares como responsáveis por diferentes projetos foi inapropriado. Realmente este anonimato estava em conformidade com idéias que meu pai expressou em uma palestra em Tóquio em 1930, quando ele determinou que as pessoas não sabiam quem projetava suas casas tanto quanto seus carros (contato pessoal com Atsuko Tanaka, fevereiro de 2010). Ele havia pensado então (mas não realmente dito) que carros e prédios eram produtos industriais que poderiam ser julgados em relação a sua funcionalidade. Poderiam não ser objetos de estilo como vestidos de alta costura, cujo valor vem precisamente de quem os desenhou, independentemente de como se parecem ou sentem.
Sobre esta não-oposição meu pai escreveu seu livro de 1948 Architecture of Social Concern (Arquitetura Social), usando seus desenhos conceituais e programa de projetos de Porto Rico para partilhar o que havia aprendido e também anunciar o que era capaz de fazer para um público americano e latino-americano. Houve um breve agradecimento na introdução de Toro e P. Richard ao longo de uma grande lista de colaboradores como Gregory Ain – da era pré-Porto Rico. Nem Klumb nem Arneson são mencionados nesse livro ou no primeiro livro de Boesiger/Girsberger. No livro Arquitetura Social estão inclusos fac-símiles de cartas de Munoz Marin e Santiago Iglesias Jr., diretor interino da junta de Urbanização e Planejamento do início da primavera de 1945, expressando reconhecimento pelo que meu pai havia realizado e lamentando sua partida (pg. 119). Talvez publicar isto tenha sido um ataque pré-planejado para contra atacar qualquer rumor negativo que pudesse vir de Klumb ou dos arquitetos de Porto Rico. Por sua vez, eles provavelmente sentiram que ele havia exagerado sua contribuição e que não deram crédito apropriado a seus trabalhos. Para Munoz Marin, era provável e perfeitamente aceitável que o público americano e sul-americano pense que o famoso arquiteto tenha influenciado o projeto de inovadoras instalações públicas na ilha. Klumb, apesar do fato de nunca ter sido convidado a lecionar na Universidade de Porto Rico, parece ter sido afetuosamente lembrado por lá. Em contraste, a estada de meu pai na ilha foi foco de interesse apenas recentemente, duas gerações depois.
Que influência os projetos de meu pai tiveram em centros de saúde, escolas, hospitais e residências de Porto Rico? Existem projetos que seguiram exatamente as propostas de meu pai? Se não foram seguidos à risca, existe alguma influência sua? Que critério poderiam usar para rotular um aspecto como influenciados por Neutra ou não? Alguns podem realizar pesquisas e perguntar quais projetos parecem não ter sua influência e envolvimento, tendo sido projetados apenas por Klumb. Como eles se pareceriam se meu pai tivesse o contrato renovado? Klumb trabalhou com Wright e era conhecido de Mies e Le Corbusier. Vejo similaridades com Wright e Le Corbusier em seu trabalho. Seus projetos são mais pesados e mais esculturais do que as obras de meu pai, mas ambos são filosoficamente compatíveis. Dividem um forte comprometimento em programar projetos dirigidos, um compromisso Wrightiniano para a continuidade de espaços externos e internos, assim como um interesse em resolver problemas de engenharia mecânica. Klumb projetou e construiu uma fábrica para produzir brises metálicos que selam as janelas contra os ventos em furacões. Pudemos ver tudo isso quando fomos convidados por Maria Carmen Fullana para uma festa, cuja residência (veja acima) foi projetada em 1950 por seu pai, um empreendedor que também contratou Klumb para projetos comerciais. Essas similaridades filosóficas não surpreendem dado quem ambos admiravam e escolheram para serem aprendizes.
Quem quiser fazer uma pesquisa séria sobre o assunto, precisaria ir aos arquivos do Ministério da Saúde e da Educação para obter a relação de instalações que fizeram ao longo da ilha. Poderia determinar as datas de construção e revisar sistematicamente suas plantas, visitar e fotografar aqueles que datam da década de 1940. Quantas escolas, centros de saúde e hospitais foram realmente construídos? Destes, qual a proporção daqueles que podem ser classificados como “projetado por” ou “influenciado por” Neutra? Meu palpite é que na ilha existam desenhistas formados de 80 anos que transferiram – do Comitê de Projetos para as agências que supervisionavam – os contratos de construção dessas instalações rurais.
Revendo os registros de pensionistas ou empregados formados dessas agências, seria possível selecionar alguém ainda vivo que poderia dizer como Munoz Marin implementou os planos do comitê e como este realmente funcionava. Nossa visita preliminar foi, ao invés disto, governada pela lenda que projetos com influência de Neutra foram citados em pequenas cidades nas montanhas.
Em 16 de março, Peggy e eu dirigimos pelas estradas sombreadas de bambu até o topo da pequena cidade de Morovis, onde provavelmente haveria uma escola com influência das obras de meu pai.
Conforme fizemos a curva na auto-estrada 159, uma milha ou mais antes de encontrar a estrada 139/137, no lado leste de Morovis, meus olhos captaram um pequeno prédio escolar – a Escola Elementar Dr. Pedro N. Ortiz. Nós paramos e entramos lá.
Fui nocauteado pela janela em fita, cujo topo é rente ao telhado, pela integração das portas e janelas num estilo Mondrian e pelos detalhes, vistos em tantos projetos de Neutra, onde o peitoril da janela está alinhado com o batente da porta.
Entramos, explicamos nossa missão e recebemos permissão dos seguranças para andar pelo campus.
Foi-nos dito que a escola datava de 1940 e que o prédio da administração tinha sido um centro e saúde (achei que não tinha qualquer semelhança com os projetos de Neutra). Nem mesmo o desenho da grande recepção. Apesar disso, a idéia de reunir um centro de saúde, centro comunitário e uma escola no mesmo lugar foi fortemente defendida no livro Arquitetura Social.
Outra ala da escola que foi o campus mais antigo tem uma aparência decididamente influenciada pelas obras de Neutra.
Naquele dia e alguns dias depois, quando retornamos com Barbara e Andres, tivemos permissão para entrar na sala de aula e ver como as janelas rentes ao teto, nas laterais da sala, permitiam a entrada de luz e ventilação cruzada do ar quente. Foi um momento emocionante pra mim quando o vigia disse às crianças: “O pai deste homem projetou esta escola para Munoz Marin.” As crianças explodiram espontaneamente em aplausos. Esta primitiva, mas elegantemente projetada escola serviu a três gerações de crianças do meio rural. Meu pai também teria se emocionado.
Conforme dirigíamos pela estrada, alguns dias depois, Andres nos contou que este desenho de janela não está mais de acordo com o Código Contra Terremoto de Porto Riquenho, pois a laje diafragma de cobertura pode romper nos poucos apoios entre vigas e portas. O código agora exige empenas verticais de concreto ou vigas – apoiadas em vigas cruzadas e na cobertura – sobre os vãos das janelas.
Em 16 de março, Peggy e eu passamos por Ciales Fronton na Highway 146 e avistamos um centro “Head Star” com algumas das mesmas características. Enquanto eu caminhava por lá, um homem de meia idade perguntou se podia me ajudar. Quando lhe expliquei meus questionamentos, ele me disse que a escola esteve ali durante toda sua vida e que seu pai avia lhe contado que Munoz Marin vendeu a escola para a comunidade por $1,00.
Quando passamos por Utuado e depois Barceloneta, na costa perto de Arecibo, vimos duas escolas nas características cores laranja e amarelo, típica influência do estilo das obras de Neutra. Meu palpite é que existem muitos deles na área rural, os primeiros episódios no campo com posteriores adições.
Em 21 de março, Andres e sua família nos acompanharam à escola em Rio Piedras, que mencionei no início deste texto, aquela que ostentava portas basculantes. O corte presente no livro Arquitetura Social (ver imagem acima) mostra uma estrutura de barracão coberta, com vigas invertidas sobre o nível do telhado segurando uma capa de concreto armado. Um quadro negro e paredes de bloco de cimento nas salas de aula são mostrados ao longo da sessão escura da abertura de garagem faceada pela esquerda e uma proteção suspensa à direita. O prédio de 65 anos de idade é visto abaixo da transversal Sabana Llana do Rio das Piedras, perto de San Juan. Na esquina da Highway 3 (Avenida 65 de Infanteria) e Monte Carlo.
O edifício terminado tem vigas mais pesadas do que o desenho conceitual. O lado onde ficavam as portas basculantes foi fechado com blocos de cimento sem nem ao menos uma janela ornamentando as paredes.
Visto que a área da escola se prolonga até a rua, ela cedeu seus direitos para uma calçada, e a área coberta próxima à parede externa é um espaço morto fechado com uma cerca de tela.
Andres e Barbara discutiram a possibilidade de restaurar a histórica escola ou construir uma réplica próxima às escolas experimentais da Universidade, onde professores se comprometeriam a usar os espaços internos e externos para propósitos pedagógicos apropriados.
Na Califórnia, onde a escola de 1935 Corona Avenue foi projetada também com a possibilidade de aulas no espaço externo, Julius Shulman me disse que os professores encenaram para tirar esta foto em 1950 (eu estava lá colocando minha cabeça sobre a mesa), porque o barulho das aulas simultâneas fazia com que os professores fossem para dentro das salas e mantivessem as inovadoras portas corrediças de aço fechadas.
Mas, na escola experimental da UCLA, projetada em 1957 por Neutra e Alexander, os espaços externos e internos encontraram seu uso pedagógico por professores mais autônomos e menos burocráticos.
Mais tarde naquele dia, dirigimos pelas montanhas verdes acima de Fajardo, passando por garotos à cavalo e pessoas felizes fazendo piquenique em um rio, até a pequena cidade de Paraíso, onde um pequeno centro de saúde tem estado por muitos anos.
A idade desse projeto pareceu estar certa, mas não combina com os desenhos do livro Arquitetura Social. As obras de Neutra tem um canto com um pátio de espera coberto e, neste edifício, há um cercado posteriormente colocado onde uma placa de boas vindas é vista. Mas a cobertura não cobre o local da placa. E o pátio de Neutra fica do lado mais alto do telhado inclinado, e não do mais baixo. As vigas cônicas de concreto aparecem em uma contemporaneidade espontânea dos projetos de escolas Porto Riquenhas de Neutra na página 178 do grande livro da editora Taschen escrito por Barbara Lamprecht. Ele nunca mais usou essas vigas cônicas de concreto, ao invés, usou vigas cônicas de aço em seu projeto Drive in Church de 1962. Barbara disse que o arquiteto Santiago Galo falou ter visto a assinatura de meu pai nos desenhos deste centro de saúde. Então este pode ser de fato o remanescente de um centro de saúde do qual meu pai foi o arquiteto de fato.
Eu penso ser certo dizer que desde seus apartamentos Jardinette, de 1927, em Hollywood, meu pai não projetava um edifício inteiro de concreto armado. A ameaça de furacões e terremotos em Porto Rico significou o uso deste material em projetos como as casas de Eleonor Roosevelt, mencionados acima como norma das escolas na ilha e economicamente viáveis por causa da pedra calcária, usada na produção do cimento. Os projetos documentados no livro Arquitetura Social mostram a materialização desta tecnologia nas construções. Sua preferência pela leveza e clara articulação dos elementos estruturais separados, mesmo aqueles unidos por ferragens dentro do concreto, podem ser vistos nesta proposta como um espaço institucional de arte industrial. Este é diferente da estética cubista de Le Corbusier, que se especializou em concreto armado ou pesadas formas arredondadas do Museu Guggenheim de Wright ou o Marin Civic Center.
Quatro anos depois, em 1948 meu pai usou a tecnologia de seus projetos em Porto Rico para a residência à prova de fogo Tremaine próxima à Santa Barbara.
Eu não estou informado sobre nenhuma estrutura de concreto com estilo modernista e sem adornos antes dessa época que parecesse com isto ou que expressasse o ritmo das terminações das vigas sobre a linha do telhado. Meu pai fez uso desta tecnologia apenas algumas vezes mais em Guam e em Havana. Não estou certo sobre a influência da famosa casa Tremaine nos pilares e vigas de madeira e nas estruturas metálicas que caracterizam o estilo moderno na California dos anos 1950 e imitada pelos países também de clima temperado. Se realmente ocorreu, foi uma contribuição para o mundo de arquitetura dos problemas Porto Riquenhos e para as soluções encontradas por meu pai.
Visitamos outro lugar no Rio das Piedras que ressoou fora da ilha na carreira californiana de meu pai. Era o portão para fazenda e viveiro de plantas, que tinha sido de Holger Fog. Pode ser encontrado no canto da Carrera 47 (Jose de Diego) e Calle Galleria. Foi onde meus pais alugaram um quarto recentemente desocupado pela filha recém-casada de Fog. Depois foi comprado por Henry Klumb e se tornou sua residência. Com a sua morte, foi deixado para a Universidade de Porto Rico, e acabou sendo abandonado atrás de um portão fechado por falta de verba.
A amizade entre meus pais, Holger e sua esposa americana (à direita, na foto com meus pais no jardim) permaneceu até a sua morte aos 90 anos, na Dinamarca. Ele gostava de meus pais e reagiu favoravelmente quando meu pai sugeriu que investisse em lotes disponíveis no Boulevard Silverlake, que atualmente é conhecido como Neutra Place, em Los Angeles. Quando os clientes que queriam projetos de meu pai apareciam, ele podia vender os terrenos e enviar o dinheiro para Holger na Dinamarca (veja as páginas 279/280 em Weschler).
O grupo de casas mostrado nas fotos ao lado e abaixo jamais teria sido construído se meus pais não tivessem me deixado para trás na nevada Poughkeepsie e encantado Holger Fog e a esposa, ajudando-os a plantar as sementes de baunilha longe de Porto Rico.
notas
NE
A tradução do presente artigo faz parte da pesquisa de Fernanda Critelli sobre o arquiteto Richard Neutra, dentro do escopo geral da pesquisa “Richard Neutra no Brasil”, coordenada pelo professor Abilio Guerra.
1
NEUTRA, Dione. To tell the truth. Interviewed by Lawrence Weschler. Oral History Program. Los Angeles, The Regents of University of California, 1983, p. 279.
2
Segundo o levantamento feito pela pesquisa “Richard Neutra e o Brasil”, Neutra esteve no Brasil em 1945, 1957, 1958 e 1959. No depoimento dado a Weschler, a data correta é 1944: “o Yes, we are now already in the midforties. And in 1944 the State Department invited Mr. Neutra on a lecture tour, so we left for Peru, Bolivia, Argentina, Brazil, and Montevideo”. NEUTRA, Dione. To tell the truth (op. cit.), p. 282.
3
NEUTRA, Richard. Arquitetura social em países de clima quente. São Paulo, Gerth Todtmann, 1948. O livro de Neutra foi resenhado por Fernanda Critelli, dentro do escopo do projeto de pesquisa “Richard Neutra e o Brasil”: CRITELLI, Fernanda. A questão social da arquitetura. O livro de Neutra: Arquitetura social em países de clima quente. Resenhas Online, São Paulo, n. 09.106.03, Vitruvius, out. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.106/3786>.
4
Sobre o papel do governador Luis Munoz Marin durante a presença de Neutra em Porto Rico, ver: RODRÍGUEZ LÓPEZ, Luz Marie. Vuelo al porvenir! Henry Klumb y Toro-Ferrer: proyecto moderno y arquitectura como vitrina de la democracia [Puerto Rico, 1944-1958]. Tese de doutorado. Barcelona, ETSAB UPC, 2008.
sobre o autor
Raymond Richard Neutra, filho do arquiteto Richard Neutra, é chefe da Divisão Ambiental e Ocupacional de Controle de Doenças do Departamento de Serviços de Saúde da Califórnia.