Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Em artigo publicado originalmente em 1985 na revista Óculum, Nicolau Sevcenko faz um panorama das cidades antigas às da modernidade, e explora significados da vida cultural no Rio de Janeiro do início do século 20.


how to quote

SEVCENKO, Nicolau. As muralhas invisíveis da Babilônia moderna. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 170.00, Vitruvius, jul. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.170/5253>.

NE – Este artigo, publicado originalmente em 1985, é fruto de uma palestra em evento ocorrido na FFLCH USP em 1983. Na ocasião, Abilio Guerra, um dos editores da extinta revista Óculum e aluno de Nicolau Sevcenko no IFCH Unicamp, gravou, transcreveu e editou o texto, que passou por uma revisão final do autor. Segundo pode se verificar no Currículo Lattes de Sevcenko, trata-se de um dos seus primeiros cinco artigos publicados. Sua republicação na revista Arquitextos – iniciativa de Silvana Romano, editora, e Bruno Schiavo, editor assistente – é uma homenagem ao autor recém-falecido, um dos grandes historiadores e intelectuais do Brasil contemporâneo.

Esta apresentação (1) é inspirada em meu trabalho de pesquisa que tratou da questão da história urbana cruzada com a literatura.

Do ponto de vista de nós, historiadores, a metrópole moderna é um fenômeno facilmente datável: de final do século 18 e basicamente do século 19 e 20. Ela é filha direta da revolução industrial, e a sua característica é uma feição tumultuada engendrada pelo próprio processo de crescimento da civilização industrial. Este caráter tumultuado deu início a um gigantismo do crescimento urbano, imprevisto e imprevisível pela experiência humana, que colocou, logo de início, os homens que viveram esta experiência numa situação bastante incômoda na condição de participarem criticamente de um fenômeno sobre o qual não tinham um saber elaborado.

Este saber elaborado organiza-se sobretudo num segundo momento da mesma experiência industrial, em torno daquilo que foi chamado de Segunda Revolução Industrial, nos meados do século XIX. É quando, então, procura-se contornar, controlar o crescimento das metrópoles, a partir da elaboração de um conhecimento científico que seria posteriormente denominado planejamento, planejamento urbano ou simplesmente urbanismo. Essa introdução de uma visão científica no trato da questão da cidade é simultânea à introdução do saber científico na própria prática da produção industrial, com o desenvolvimento da química, da física moderna, da metalurgia moderna. Enfim, de todas as ciências ligadas ao estilo industrial que nasce, a partir de 1870, ligado aos grandes complexos da economia de escala.

A grande questão que me auxilia para compreender o fenômeno da metrópole moderna é estranha à própria metrópole moderna: a questão da muralha. A metrópole moderna tem essa característica. Ela difere das cidades anteriores justamente porque não tem muralhas. O que me parece, entretanto, é que as muralhas não desapareceram: elas perderam a sua visibilidade. Portanto, gostaria de falar sobre as muralhas invisíveis desta metrópole moderna.

Artigo "As muralhas invisíveis da Babilônia moderna", de Nicolau Svecenko, na revista Óculum n.1, p. 44-45
Imagem divulgação

A muralha é uma presença fundamental na cidade antiga, desde que a experiência urbanística começou em nossa civilização. Ela não só simboliza a cidade, como é anterior à própria cidade. A cidade só existe se houver a muralha dentro da qual ela se torna possível. A cidade é o fenômeno de uma civilização que se sedentariza, ela é a própria marca da sedentarização. Portanto, essa civilização já assinala, por isso mesmo, um contraste com as civilizações nômades ou pastoris. Nesse sentido, a sedentarização só pode existir ao custo do isolamento de um terreno, que não poderá mais ser alvo dos ataques dos diversos povos nômades. Ela então tem que se tornar uma cidade defensiva. Nesse caso, os muros dão a possibilidade de existência da cidade, esta só aparece por causa das muralhas. Tanto, que, normalmente, elas são o aspecto mais notável da cidade.

Lembremos o caso de Babilônia, a referência urbana por excelência para o mundo oriental, assim como Roma o é para o ocidental. Babilônia era conhecida por ser “a cidade das sete muralhas”. O que nos lembra, pelo fato do número ser sete, que se trata não só de uma questão de segurança militar, mas também de uma segurança mítica ou mística. O número sete é um número místico. E a idéia de se formar uma cidade com sete muralhas tinha o propósito de que ela fosse também uma defesa em relação aos demônios e deuses exteriores, de outras comunidades, outras civilizações.

Neste sentido, a muralha define um espaço privilegiado, um espaço de eleição, um espaço muito singular. Babilônia considerava-se o umbigo do mundo. O umbigo que ligava o céu e a terra. Portanto, o próprio princípio de toda a civilização na face da terra. É o mesmo sentido que encontramos em Jerusalém, modelada a partir da própria Babilônia, contando também com sete muralhas. Em Jerusalém, o sétimo portão é o dos venenos. O número sete, como já disse, é um número místico, mas também é um número aziago. Somente em circunstâncias muito especiais aquele portão podia ser usado. O que reforça a questão simbólica da muralha para uma civilização que entendemos como a nossa própria raiz civilizacional, judaico-cristã.

No caso da China, temos algo mais fascinante, por ser não só uma cidade nascida de uma muralha, mas um império inteiro que escolheu se ocultar por trás de uma muralha. Não a muralha que protege uma cidade, mas aquela que protege um império.

Dentre os casos mais significativos de circunstâncias históricas relacionadas às cidades e às muralhas, temos, no ocidente, a Atenas do período da guerra do Peloponeso, em que as populações acorreram à cidade durante o ataque de Esparta. A cidade mal comportava a todos e, por isso, terá lugar uma série de pestilências que matariam boa parte da população da cidade e minariam a resistência dos atenienses em relação aos espartanos.

Isso nos leva a outro fato significativo: os integrantes da cidade identificavam-se com ela, identificando sua própria existência com a cidade e suas muralhas. A civilização só existiria se as muralhas fossem capazes de defendê-la. Posta essa civilização em xeque por outros povos, ela só sobreviveria se as muralhas fossem suficientes para que todos ali dentro pudessem resistir. A resistência era feita ombro a ombro, de igual para igual. Os cidadãos nivelavam-se na necessidade de defesa. Portanto, a cidade e a muralha criavam a própria idéia da identidade comunitária.

Para que se tenha uma idéia de como as muralhas são indissociáveis da imagem da cidade, seria interessante evocarmos a fisionomia das cidades imaginárias. São cidades espirituais que se encontram num espaço encantado, livres de todo mal, de toda dor e de qualquer inimigo. Nada as ameaça, nenhuma força estranha e hostil pode sequer chegar até elas. No entanto, lá estão as muralhas, quer pensemos na Xanadú dos contos orientais ou na Jerusalém Celeste dos apocalipses cristãos; o que comprova o caráter simbólico daquelas paredes, seu sentido mítico destinado a distinguir simultaneamente uma identidade e uma alteridade.

Nas utopias modernas, esse fenômeno se mantém e se acentua, assumindo um sentido cada vez mais introvertido. Lembremo-nos dos Falanstérios, das comunidades ideais, utilitárias e felizes de Fourier, que vicejam e se reproduzem rigorosamente emparedadas. Ou das cidades de Thomas Owen, organizadas como gigantescas cooperativas industriais, cuja arquitetura é toda inspirada nos galpões, nas paredes, muros e cercas que constroem uma blindagem premeditadamente isoladora do mundo do trabalho nas fábricas. Fábricas essas que são os sucedâneos dos mosteiros, os moldes das escolas, e em que o isolamento almejado é tanto no sentido externo quanto no interno. Numa versão completamente intelectualizada, esse é o mesmo substrato da Castália de Herman Hesse que reproduz a imagem elitista e segregacionista que palpita sob a concepção da Universidade.

Ebenezer Howard deu um passo adiante no processo de dissolução material das muralhas ao conceber suas cidades-jardins. A idéia do cinturão verde sem dúvida suaviza a rigidez e a frieza das pedras com o encanto das flores. Mas o sentido original permanece intacto. O objetivo desses muros vivos é tanto o de limitar e impedir o crescimento das comunidades, impondo a primazia dos controles, quanto impedir o acesso e a assimilação dos "estranhos" ao espaço reservado. Um passo além seria dado por Frank Lloyd Wright, que percebeu mais agudamente o sentido difuso do urbanismo moderno. Sua Cidade dos Acres Amplos é toda baseada numa demarcação espacial precisa, rigorosamente quantificada. Nesse caso, as fronteiras físicas desaparecem por completo ao se traduzirem num limite matemático, numérico. Aqui, as muralhas tendem a uma abstração total, mas não somem, absolutamente: são introjetadas pela razão planejadora, medida de todas as coisas na civilização técnico-científica.

A sobrevivência conceitual e material das muralhas no planejamento moderno, portanto, mantém o mesmo sentido original, reformulado num novo código que diferencia o espaço caótico do espaço planejado. Mas da mesma forma elas se erguem para garantir privilégios, preservar regalias, direitos e liberdades a alguns, enquanto, ao mesmo tempo, excluem os preteridos, os indesejáveis, os não-eleitos, os destituídos e os oprimidos. Por essa razão mesma, esses últimos aparecem travestidos sob a máscara dos "elementos perigosos", sob o selo da "ameaça". As muralhas são construídas através do mesmo ato que constitui essa ameaça, da qual os muros são ao mesmo tempo a causa e o efeito. Essa talvez seja a melhor razão para suspeitarmos das utopias com muros, quer sejam visíveis ou invisíveis.

Artigo "As muralhas invisíveis da Babilônia moderna", de Nicolau Svecenko, na revista Óculum n.1, p. 46-47
Imagem divulgação

A metrópole moderna, filha do caos e do planejamento, já nasce assinalada por uma fissura indelével de onde brotarão as muralhas invisíveis. O planejamento, desenvolvendo-se a partir do interior do próprio caos, irá definir um centro em estado de desdobramento e alargamento espaciais crescentes. O caos definirá as fímbrias, os espaços opacos, periféricos e potencialmente descontrolados. O desdobramento da ação planejadora pode operar num espaço contínuo ou em bolsões articulados. De qualquer forma, ela é sempre seletiva, discricionária, localizada. Essa ação nunca deriva de um único utopista, mas de múltiplos cientistas — sociólogos, arquitetos, higienistas, sanitaristas, engenheiros, médicos, assistentes sociais. Ela se orienta, pois, por um saber positivo que estabelece uma relação objetal com a cidade e seus cidadãos. Como esse saber é dividido em múltiplas competências, a ação planejadora é o resultado da composição orgânica de fatos isolados, distintos, porém congruentes e passíveis de uma ordenação "coerente", unilinear. Assim, planejar consiste em converter o caos na identidade.

Existe um saber sobre a cidade que orienta a ação planejadora, mas ele não está ao alcance do cidadão comum. Tal como nos próprios corpos, por sinal, em que os médicos diagnosticam problemas localizados e os tratam segundo um saber inacessível ao paciente. A cidade está fora do controle do cidadão, tal como o corpo está fora do controle do paciente. Pior do que isso, assim como o paciente, por não conhecer a natureza e a extensão do seu mal precisa ser controlado para não prejudicar a si mesmo — tratamentos e internações —, assim também o cidadão. Não há instrução sobre a cidade, assim como só há precariamente sobre o corpo. O cidadão comum não sabe como se estendem e se organizam as redes de água, de eletricidade, de comunicações etc. As intervenções da ação planejadora são difusas, arbitrárias e nunca suficientemente esclarecidas.

Para os técnicos planejadores, a cidade e seus habitantes aparecem como um problema, assim como tudo o que tende a escapar do controle e da previsibilidade, como os jovens, os desempregados, os desajustados de todo tipo. Mas nada, nem esse descontrole potencial, pode se furtar ao olhar planejador que tudo vê. O que nos remete a Kafka, o primeiro a indicar que a muralha é apenas uma preparação para o advento decisivo da torre: a muralha cerca e a torre organiza e vigia. Como a Babilônia mítica e a Torre de Babel; ou como as múltiplas civilizações que conjugavam as muralhas e as pirâmides.

No interior desse quadro, a expressão cidade-jardim ganha um novo sentido: cidade-jardim-da-infância. A infantilização dos habitantes privados das informações decisivas e afastados dos mecanismos de tomada de decisões os coloca como seres problemáticos e incapazes de cuidarem de si mesmos. A cidade aparece assim como um campo de observação, intervenção e ordenação por parte da elite técnica tutelar. Essa concepção tende a parecer legítima pela ótica elitista que a pressupõe, pois, tal como foram constituídas, as metrópoles modernas são um grande problema e potencialmente explosivas no interior da ordem que as engendrou e que pretende mantê-las tal e qual.

Através da pesquisa que fiz sobre o Rio de Janeiro do período de 1900 a 1920, essas investigações teóricas puderam ficar mais nítidas. O período, diretamente associado ao advento do regime republicano e ao processo de consolidação das novas instituições, marcou a etapa decisiva de constituição da metrópole carioca na sua feição contemporânea. O conjunto de processos econômicos que estiveram por trás da transformação social e política do Brasil nesse período pode ser percebido nas transações altamente especulativas do Encilhamento, da política emissionista, da regulamentação das sociedades anônimas e da intensa capitalização do mercado brasileiro com recursos externos maciços. Nos primeiros vinte e cinco anos do novo regime, os empréstimos públicos junto aos bancos ingleses cresceram cerca de 200% e se assistiu à incorporação de cerca de 2.000.000 de imigrantes no país. Os conceitos mais adequados para exprimir as transformações em curso na sociedade brasileira seriam certamente os de capitalização, aburguesamento e cosmopolitização.

O polo mais fremente de todo esse processo de intensificação das relações capitalistas era justamente a cidade do Rio de Janeiro. Isso em vista, particularmente, da posição estratégica do seu porto, por onde fluía quase toda a produção cafeeira do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista, e por onde entrava a maior quantidade das importações, redistribuídas por todo o país pelas redes ferroviária e de navegação a ele articuladas. Ele se torna o terceiro porto em atividade no continente americano. Havia, porém, um limite inelutável para o otimismo que poderia derivar daí. O porto era antigo, estreito e muito raso, não permitindo a ancoragem dos grandes transatlânticos, o que impunha um lento, complicado e oneroso sistema de transbordo das mercadorias para embarcações menores. Além disso, não havia nem armazéns, nem espaço suficiente para estocagens ao longo dele.

Isso obrigou o novo regime a propor a reforma e a modernização das instalações portuárias logo de início. Mas de nada adiantaria aperfeiçoar o terminal marítimo se após o desembarque as mercadorias teriam de ser distribuídas passando pelo interior da cidade, entre ruelas estreitas, sinuosas e cheias de carroças e carrinhos de mão, numa cidade cuja estrutura básica era ainda colonial. A cidade tradicional bloqueava a intensidade do movimento do porto. Mais do que isso. Essa cidade abarrotada de gente humilde, que se concentrava no centro e nas proximidades do porto, era também muito perigosa: a qualquer momento um grito de motim fechava as ruelas de barricadas e colocava tanto o porto quanto a sede do governo em xeque. Além do mais, a acumulação dessa gente destituída e precariamente amontoada nos velhos casarões do centro da cidade, estes transformados em hospedarias baratas, era um foco permanente de reprodução das endemias que infestavam a cidade, assustando os estrangeiros, capitalistas, mercadores e trabalhadores, que preferiam então os cenários mais seguros e sadios do Canadá, da Argentina e dos Estados Unidos.

Ávida pelos recursos estrangeiros dos quais dependiam diretamente a cafeicultura e a consolidação do regime, a nova elite esforça-se por criar uma cidade-vitrine, cartão de visitas enganador mas capaz de atrair o capital e com ele o trabalhador europeu, representando ideais de civilização burguesa, de estabilidade, segurança, saúde, solidez e identidade cosmopolita. Com esse objetivo, às obras de melhoria do porto seguem-se as de reurbanização da cidade, com a demolição dos casarões velhos e a abertura de largas avenidas — particularmente a Avenida Central — cercadas por edifícios com fachadas de mármore e cristal, no melhor estilo Art-Nouveau. O Prefeito Passos, ex-discípulo do Barão Hausman recebe carta branca, as demolições iniciam-se e a multidão de moradores humildes do centro é toda expulsa, não lhes restando alternativa senão ir morar nos morros, em casebres improvisados de caixas de bacalhau e tetos de latas de querosene desdobradas. Outros irão para as áreas pantanosas ou para as periferias mais distantes.

No centro reurbanizado, "regenerado", surge uma nova cidade, cheia de parques, praças, carros e lojas sofisticadas. Os palácios serviam como um espaço de ostentação da burguesia e as avenidas como um espaço de desfile. A finalidade era a de proporcionar aos membros da burguesia emergente pontos de encontro e contato, onde pudessem entabular os seus negócios.

Essa questão é bastante interessante. A partir do legado da urbe antiga, montou-se uma cidade burguesa através do planejamento da parte central, às custas da expulsão da população humilde. Este espaço foi oferecido à burguesia pois era necessário transmitir uma imagem burguesa do país, branca, europeizada. Ocorre que quem ascendeu à condição de burguesia através das sucessivas negociatas econômicas que marcaram o advento do regime republicano - o Encilhamento, particularmente -, eram pessoas rudes e toscas, que mal sabiam o que significava ser burguês. Era preciso, portanto, além de fazer uma cidade burguesa, ensinar a população à qual ela era destinada, a ser burguesa.

Daí os desenvolvimentos da crônica social nos jornais e das revistas mundanas, das revistas elegantes, que vão educar essa gente a ser burguesa. Ensinariam aos homens e às mulheres como se vestir, como se comportar em público, não se deve mascar fumo, não se deve cuspir no chão, não se deve sujar as botas. Assim por diante. Cria-se toda uma série de novas cerimônias. Como os corsos de carros, os footings na avenida, os five-o-clock teas, o joquey club, o canil club.

Aliás, o five-o-clock teas tem outra função curiosa: onde as moças eram educadas, já que era difícil fazer isso pela crônica social porque o vestuário do período, Art Nouveau, implicava uma série de detalhes bastante íntimos que não podiam ser expostos pela imprensa. A rigor, também as moças não sabiam como usá-lo. Quem sabia disto eram as prostitutas européias, as francesas, em particular. O five-o-clock teas era o encontro social da alta burguesia carioca com as prostitutas francesas, que ensinavam as moças como usar as anquinhas, os porta-seios, enfim... todos os apetrechos singulares do período.

Da mesma forma, aos homens, era ensinado através dos figurinos das revistas o estilo smart e, às mulheres, o estilo das "melindrosas". Assim é criada a imagem de uma burguesia em que as moças devem tocar piano e falar francês. Os homens devem usar monóculo e ser doutores. Os hábitos são incrementados pelo advento da luz a gás e também da luz elétrica, que permitem uma vida noturna mais agitada e a sofisticação dessa vivência burguesa. Cria-se uma cidade nova, um cenário novo, e novos personagens são colocados dentro desse cenário, com seus novos scripts.

É esta, mais ou menos, a história do Rio de Janeiro. O que isso custou em termos sociais ficou lá em cima dos morros. Como exemplos, dois morros somente: o da Favela e o de Santo Antonio. Em 1910, aquele contava com 219 barracos, e este com 450. Somando os seus moradores, temos cerca de 5.000 pessoas. A média era de 10 pessoas por barraco.

É nesse momento em que proliferam os cortiços, as casas de cômodos, as hospedarias populares, e os Zungas, hospedarias em que só se alugavam esteiras para que as pessoas dormissem no chão, às vezes famílias inteiras. Mas aí, uma pergunta: no Rio, uma cidade de clima agradável, por que as pessoas não dormiam ao relento, não dormiam na rua? É que havia um forte esquema policial montado na cidade reservada à vivência burguesa.

Cria-se uma espécie de cinturão policial e todas as pessoas suspeitas que entram ali são imediatamente abordadas pela polícia e devem mostrar documentos que comprovem emprego e residência fixa, o que ninguém tem, pois há uma crise imobiliária, criada pelo próprio governo, que destrói as habitações. E emprego fixo, que também não têm, pois o Rio passa nesse momento por uma crise econômica drástica derivada, ao mesmo tempo, da crise bancária, industrial e comercial de 1889 a 1906. Da crise gerada pelo saneamento financeiro à restrição imposta a Campo Salles pelo refinanciamento, em direção à nossa primeira renegociação da dívida externa. Portanto, não havia casas, não havia emprego, mas havia policiais que exigiam casa e emprego. O que significava o impedimento dessa população marginalizada de circular pelo espaço interior da cidade. Cria-se com isso também uma campanha, junto à imprensa, de caça aos mendigos. Cria-se uma parte especial nos jornais, chamada "crônica de gatunagem" que acompanha as intervenções furtivas dessa gente exótica no interior do espaço aburguesado.

A delinquência infantil é cuidadosamente estudada. Detecta-se, por exemplo, que 26% dos criminosos presos no período são menores, 10% do total com menos de 15 anos. O alcoolismo cresce enormemente e também é controlado. O mais interessante são os índices da alienação mental: de 1889 a 1898, num período de 10 anos, houve um crescimento de 1113% de internações no Hospício Nacional do Rio de Janeiro. Tendo sido necessário uma ampliação desse hospício para criar uma área especial, a área Pinel, destinada aos internos que não tinham condições de pagar a sua… hospedagem.

As reações populares são muito fortes. Existe a criação de associações operárias que, entretanto, eram muito precárias. As greves são intensas, as mais fortes entre 1903 e 1917. Há os meetings populares, sobretudo no Largo São Francisco, que transbordavam pela cidade. São principalmente os grandes motins que marcam a emergência dessa população ao espaço urbano. Como a Revolta do Selo, em 1902, a Revolta da Vacina, e o "Quebra-lampiões", de 1904.

De qualquer forma, o que nós percebemos é que esse processo de transformação urbana é antes de mais nada um processo de exclusão, que abole a sociedade e os hábitos tradicionais. Que são tomados por mal gosto, como um resquício passadista que deve ser eliminado; abole-se qualquer elemento de cultura popular do interior da parte urbanizada da cidade. Dessa forma, as festas da Penha são isoladas, e as procissões não podem mais passar pelo centro da cidade. O candomblé é sumariamente proibido e criminalizado no Código Penal. Da mesma forma, as pastorinhas e o carnaval passam a ser controlados. Sendo que, antes do carnaval começar, a polícia dá uma lista das fantasias que podem e das que não podem ser usadas. Os grupos populares são expulsos do centro e controlados para que não voltem.

O cosmopolitismo torna-se agressivo a ponto de, quando as pessoas se cumprimentavam nas ruas durante a 1ª Guerra Mundial, ao invés de dizerem o tradicional "boa tarde", "boa noite", diziam uma à outra "Vive la France!". Ocorre um processo de embranquecimento que demonstra a linha política discriminatória e excludente na medida em que os funcionários-chaves da administração eram sempre selecionados dentro do grupo étnico branco.

Havia também uma prática espúria de controle e de ocultamento da dimensão negra da sociedade brasileira, sobretudo no contato com elementos estrangeiros. Essa era uma prática conduzida pelo Barão de Rio Branco no Itamarati. Entre as pessoas havia um cuidado para não sair ao sol. Na Avenida, o grande lugar do desfile, os passeios só eram feitos do lado da sombra: de manhã de um lado, à tarde no outro. Ninguém tomava banho de mar. E um hábito entre os mais jovens, entre os nubentes, era o de tomar um copo de vinagre em dejejum para provocar o embranquecimento da pele, resultando numa palidez meio esverdeada que era tida como de alto bom gosto.

Artigo "As muralhas invisíveis da Babilônia moderna", de Nicolau Svecenko, na revista Óculum n.1, p. 48-49
Imagem divulgação

Portanto, não há mais muralhas nessa cidade, elas não existem, tornaram-se invisíveis. Nenhuma cidade já foi mais murada do que a cidade do Rio de Janeiro desse período, quem sabe até hoje. As muralhas tornaram-se simbólicas e dividiram a cidade racional da cidade do caos; a cidade do trabalho da cidade da indigência; a cidade da utilidade da cidade da inutilidade. E assim por diante. Assim, realiza-se um trabalho de ocultamento nessa cidade.

O próprio trabalho torna-se invisível, as fábricas são cercadas, muradas, e os trabalhadores não ficam mais em contato com o público. Antes, as oficinas eram abertas, e havia ruas de oficinas, como a rua dos sapateiros e assim por diante, em que todos viam os trabalhadores e eles eram parte do público. A partir da instalação das fábricas, o espaço do trabalho fica completamente circunscrito, e não se vêem mais as pessoas trabalhando.

Os serviços básicos da cidade são feitos também em horários que não podem ser observados. O que é curioso é que as instalações da cidade não podem, também, ser observadas. Não se vê as redes de água, esgoto e gás. As elétricas são muito altas e as demais subterrâneas. Há um ocultamento dessa infra-estrutura produtiva. O trabalho, quando aparece, é também cercado por outro elemento discriminatório que é o uniforme. O uniforme é uma maneira de circunscrever um trabalhador: a partir daí, ele não aparece como cidadão, como membro da sociedade, mas como alguém imediatamente definido e que pode ser controlado pelos demais, devendo fazer exatamente o que seu uniforme prescreve que ele faça.

Isso é significativo nas análises dos carros. O motor do carro, que é a parte que trabalha, é cuidadosamente fechado, ninguém vê o motor, ninguém sabe rigorosamente como o motor trabalha. Por outro lado, os primeiros carros acompanhavam os antigos coches, e o motorista ficava numa posição bastante elevada e exposta como os antigos cocheiros. Os que viajavam, ficavam no interior de uma cabine fechada. Com o tempo, logo nos primeiros momentos da evolução dos automóveis, a coisa se inverte, o motorista passa a ser uniformizado e fica numa cabine fechada, abaixo da parte posterior, que é aberta e toda luxuosa, e que expõe os viajantes à observação pública. É o inverso da carruagem: o cocheiro é escondido e o viajante é apresentado e exibido.

No setor doméstico, a mesma coisa: segrega-se a criadagem doméstica através da uniformização e da ocultação. A parte do trabalho torna-se invisível. Surgem as entradas laterais, as escadas de serviço, os elevadores de serviço. Também o controle dos corpos: há os corpos saudáveis e os não saudáveis. Os corpos saudáveis são os que apresentam a marca da vacina. Devem ser controlados pela marca e também pelos atestados de vacina. Os não saudáveis, que não têm essas características, não podem entrar na cidade e nem ter os empregos que exigem a marca e o atestado.

O controle da segurança exige o atestado de residência dentro da muralha. Veja bem, a muralha não existe, mas o atestado de residência significa que o indivíduo tem residência nas partes onde se constroem residências. Porque quem tem um barraco não tem residência, não tem um atestado, não pode comprovar, não pode circular na cidade, não pode ter empregos da cidade. A rigor, não é sequer cidadão.

Portanto, as muralhas ganham uma versão diversa e continuam existindo. Há pois um jogo de exclusão, de ocultamento em torno disto, que cria uma semiologia do espaço urbano que se organiza como um espaço cênico. Em que os espectadores são também atores.

Esse mesmo ilusionismo aparecia nos templos antigos, em que as portas se abriam e se fechavam automaticamente, para quem assistia de cima. Mas para quem olhasse de baixo, lá estavam os escravos puxando as portas. É o mesmo tipo de ilusionismo que há no teatro, em que se vê a cena mas não se vê os especialistas, os técnicos que trabalham em volta, os que movem as cortinas, as luzes e o som. Que são, na verdade, a equipe sem o qual o teatro não existe, mas que jamais aparece, só se vê a cena. A mesma coisa com o video da televisão, e isto é bem lembrado num filme moderno: em Metropolis há uma civilização superior e uma civilização inferior. A de cima é a elite e a de baixo é a do trabalho. Ali, o ocultamento aparece semanticamente revelado. Na nossa sociedade ele é invisível e, entretanto, ele existe.

Para concluir, só quero dizer que a tecnologia da exclusão mudou de sentido depois de um momento decisivo no Brasil, que foi 1917: a grande contestação, a grande confrontação dos dois grupos que estavam dentro e fora da muralha da cidadania no Rio de Janeiro - e em São Paulo também. Essa tensão chegou a um limite tal, que levou a uma técnica diferente de cercamento que não é mais a de exclusão pelas muralhas, mas a da inserção controlada. Inserção desta população através dos estádios de futebol, através das escolas, das festas cívicas, religiosas, dos espaços urbanos reservados às reuniões, dos teatros e assim por diante.

Hoje em dia, nós vemos, sobretudo no Rio de Janeiro, no caso do Maracanã ou do Sambódromo, espaços para controlar os que não têm espaço e que dão a eles a ilusão de que têm. O Camelódromo é o supra-sumo desse refinamento porque organiza a desorganização por excelência, que são as pequenas profissões da sobrevivência cotidiana, dos pequenos camelôs que vivem de expedientes e que agora vivem de expedientes dentro de um espaço reservado a viver de expedientes.

Como aqui em São Paulo, que é esta ironia de colocar mecanismos de controle da poluição dentro dos bairros que ficam ao lado das fábricas de Cubatão. E colocar esgotos dentro das comunidades que ficam sobre os pântanos. Isso dá às pessoas a sensação de que elas têm um espaço, mas o que ocorre na realidade é que internalizaram a sua muralha. Ao invés de termos muralhas impostas, temos muralhas voluntárias que se constroem em torno da própria imaginação e do próprio desejo de cidadania dos pseudocidadãos.

Nicolau Sevcenko, c. 1985, foto publicada na na revista Óculum n.1
Foto divulgação

nota

1
Publicação original: SEVCENKO, Nicolau. As muralhas invisíveis da Babilônia moderna. Óculum, n. 1, Campinas, ago. 1985, p. 44-49.

sobre o autor

Filho de imigrantes russos da região da Ucrânia, Nicolau Sevcenko nasceu em São Vicente SP em 1952. Historiador e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH USP (1975 e 1981), pós-doutor pela Universidade de Londres (1990) e livre docente pela USP (1992). Seu doutorado e sua livre docência se transformaram em livros de enorme sucesso – Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (Brasiliense, 1985) e Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (Companhia das Letras, 1992). Em 1999, venceu o Prêmio Jabuti com o livro História da vida privada no Brasil. Membro do Centre for Latin American Cultural Studies, da Universidade de Londres, foi professor da USP, Unicamp e PUC São Paulo. Era professor titular da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, desde 2010. Faleceu em São Paulo, no dia 13 de agosto de 2014.

comments

170.00 homenagem
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

170

170.01 urbanismo

Town Planning Conference, Londres, 1910

Intercâmbios internacionais nos primórdios do urbanismo moderno e seus reflexos no Brasil

José Geraldo Simões Junior

170.02 latinoamerica

La arquitectura en la Argentina (1965-2000) – Parte 3

Ramón Gutiérrez

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided