Introdução
Na virada dos anos 1980 aos 1990, quando os preparativos para as comemorações dos 500 anos da chegada de Colombo à América ensejavam uma série de intercâmbios profissionais e de reflexões sobre a condição ibero-americana (1), Jorge Moscato defendia a ideia de que os Seminários de Arquitetura Latino-americana – SAL, realizados desde 1985 (2), haviam concluído uma etapa, na qual a ideia de uma identidade latino-americana se havia sedimentado (3). Para este arquiteto argentino, as contribuições de Pedro Morandé, Cristián Fernández Cox, Pedro Murtinho, Enrique Browne e de Roberto Fernández teriam sido fundamentais para que se consolidasse, junto aos primeiros SAL, uma perspectiva comum sobre o “próprio e o estrangeiro” (4). Uma vez fechado este ciclo, no entanto, seria necessário que estes fóruns de discussão enveredassem em novos caminhos, rumo à definição de orientações à prática dos arquitetos latino-americanos (5). Parecia-lhe inevitável, neste contexto, assumir o desafio da construção de uma “teoria da Cidade Latino-americana” (6) que fosse pautada pelas “grandes problemáticas [regionais] nas quais há acumulação intelectual”: a periferia urbana e o centro histórico (7).
Ao apontar estas duas questões como partes da “cidade latino-americana”, Moscato manifestava o desejo de que se instaurasse o processo de costura entre os debates que nos terceiro e quarto SAL – realizados em Manizales (Colômbia) e Tlaxcala (México), respectivamente – haviam ocorrido em seções temáticas distintas (8). O arquiteto argentino, no entanto, não estava sozinho em sua busca por uma “teoria da Cidade Latino-americana”, suas palavras ecoavam diretamente a proposta temática do V SAL, cuja realização em Santiago do Chile se aproximava no momento em que seu texto era finalizado.
A convocatória do V SAL – evento realizado em outubro de 1991 – propôs, pela primeira vez na história específica destes seminários (9), um tema que deveria ser debatido pelo conjunto dos participantes: a forma dos espaços urbanos latino-americanos. No texto de chamada do evento coordenado pelo arquiteto chileno Cristián Boza declarava-se publicamente o objetivo de promover a ampliação da atuação dos SAL; este deveria passar a contemplar, também, a reflexão sobre a deterioração do espaço urbano das cidades latino-americanas e buscar a definição de orientações comuns para reversão deste processo.
O presente artigo visa demonstrar que a convocatória do quinto SAL foi concebida como elemento-chave de um dispositivo que tinha por fim tecer parâmetros comuns para a intervenção em cidades latino-americanas. A metáfora do “tecer”, aqui empregada, é estendida a dois de seus sentidos figurados, ou seja: tanto como a costura entre unidades distintas – no caso, os debates sobre a periferia urbana e o centro histórico –; como, também, a possibilidade de “criar com a imaginação”. O “tecer”, neste segundo caso, evoca a definição rossiana do projeto como “capacidade de imaginação nascida do concreto” (10), visto que o evento de Santiago do Chile foi o primeiro SAL a postular que o debate no evento fosse pautado pela apresentação propostas para cidades latino-americanas. Estimava-se, portanto, que planos e projetos constituíssem o cerne do evento, tão ou mais importantes que as apresentações teóricas – as quais nem mesmo haviam sido previstas na proposta inicial de convocatória (11).
A análise desenvolvida ao longo deste artigo baseia-se no close reading do texto da convocatória do V SAL, cuja autoria é atribuída a Cristián Fernández Cox, Enrique Browne e Pedro Murtinho. Procura-se, por meio desta, demostrar as expectativas que se tinha para o V SAL e, em específico, o papel que o texto da convocatória buscou cumprir nesta urdidura. Primeiramente, desenvolve-se a análise dos aspectos formais de seu discurso, mostrando como este se aproxima da estrutura de manifestos. Na sequência, analisa-se em detalhe o papel que cumpre a analogia ao IV CIAM que se desvela na convocatória e, por outro lado, a relação específica que este texto estabelece com o contexto santiaguino.
A convocatória como manifesto
Comparada às sumárias divulgações dos seminários anteriores – ou, simplesmente, à estrutura corrente de chamadas de eventos –, a convocatória do V SAL parece transcender seu papel de publicação de datas e descrição das mesas temáticas e dos formatos para apresentações. De fato, ao longo de suas quatro páginas, apenas uma é destinada ao que normalmente corresponderia ao enquadramento de uma chamada de evento.
A leitura do texto revela que este foi cuidadosamente redigido: como quem pondera exatamente o peso destinado a cada parte do texto, sua estrutura, além de destacada, é enumerada. Na primeira parte, apresentam-se os SAL, seus feitos e sua importância, destacando que haviam possibilitado “conhecer o que cada qual estava pensando e fazendo em termos de arquitetura” e constituir em poucos anos um “movimento informal” (12). Na segunda, afirma-se que, concluída esta etapa inicial, deflagra-se a necessidade de avançar a uma nova etapa dos SAL; justifica-se, desta forma, a solicitação de os participantes apresentem projetos elaborados especificamente para a temática do evento. Na terceira parte, a qual ocupa a maior parte do texto – duas páginas e meia –, apresenta-se o tema do evento e expõe-se a importância de seu debate para as cidades da América Latina. As quarta, quinta e sexta partes são aquelas que apresentam os elementos operacionais na organização do evento, sendo destinadas, respectivamente: à exposição das situações urbanas a serem abordadas pelos projetos, contemplando os requerimentos mínimos para elaboração destes, bem como os procedimentos para sua seleção; à forma de divulgação prevista para o material produzido; às responsabilidades específicas do chamado “coordenador crítico” de cada país.
Ao analisar sequência argumentativa do texto, percebe-se que a convocatória para o evento de Santiago do Chile amalgama em sua estrutura elementos que a aproximam do manifesto como gênero literário. A presença desta formação literária é observável, sobretudo, na terceira parte da convocatória, ou seja, na justificativa da temática do evento. Nesta, verificam-se claramente as regras formais dos textos de manifestos descritas por Marcel Burger, ou seja: denuncia-se primeiramente um contexto de crise – há, portanto, uma referência em um “real” identificável e pontual fora do texto –, para, na sequência, fazer-se o apelo direto à ação e apresentar a solução julgada como verdadeira e eficaz pela identidade coletiva de seus signatários (13).
A crise que justifica a escolha do tema – e que sustenta a estrutura de manifesto – é apontada logo ao início da terceira parte do texto: “É ostensível o deterioramento da qualidade do espaço urbano em nossas cidades no último meio século [...]” (14). Sem fazer menção direta ao que haveria mudado neste período, o texto trata este assunto como algo já amplamente debatido pela cultura arquitetônica – “[...] a tomada de consciência deste assunto nas recentes décadas torna desnecessário justificar a seleção do tema” (15) –, deixando a cargo do leitor sua interpretação (16). Na sequência, a tradição cepalina do planejamento multidisciplinar transparece no aparente receio em apresentar uma explicação conclusiva para o deterioramento apontado:
Os temas urbanos – essencialmente multidisciplinares – requerem ser abordados a partir de pontos de vista muito diversos [...]. Logo, tentar realizar um diagnóstico que realmente dos inclua principais fatores que incidiram na decadência do espaço urbano [...] superaria muito as possibilidades de um seminário de uma semana como é o SAL (17).
Contudo, esta ressalva inicial cumpre apenas a função de evitar oposições diretas à abordagem escolhida e apresentada na sequência. Ao expor, a priori, seus limites, exime-se da necessidade de estender-se em sua justificativa e defesa; afirma-se que esta é mais modesta, porém “possivelmente mais útil” (18), visto que: “a melhor ou pior qualidade de um determinado espaço é sempre em si mesma uma questão morfológica” (19). Ainda que não se neguem as variáveis de outra natureza, afirma-se – indicando uma possível ressonância de Rob Krier (20) ou de releituras de Camilo Sitte (21) na associação entre qualidade e forma do espaço urbano – que “as questões morfológicas constituem a variável principal do problema” (22).
Deste modo, abre-se caminho para a solução para a crise defendida ao longo texto-manifesto; ou seja, a análise das “variáveis propriamente morfológicas da arquitetura do espaço urbano em nossas cidades” (23) para fins de definição de um acordo coletivo que direcione a prática dos arquitetos. Neste sentido, afirma-se que se pretende constituir, mediante reflexões “sobre casos reais e áreas temáticas [...] um repositório organizado de experiências, opiniões e propostas”, um mosaico construído a partir de “visões concretas da realidade, que permita no futuro a inferência em um panorama mais decantado e geral” (24).
A possibilidade de interferir nos rumos das cidades latino-americanas não estava presente apenas na ideia de construção de um possível acordo coletivo; havia também um componente de imediatismo subliminar a proposta do evento. Como revelou Humberto Eliash – arquiteto chileno que compôs a equipe organizadora do evento – em entrevista, a comissão de organização do evento ambicionava que o SAL servisse, também, para validar, após o debate em profundidade durante o evento, algumas das propostas apresentadas e para “articular algo com algum governo ou algum prefeito” (25), permitindo que algumas entre estas fossem colocadas em prática: “Efetivamente, nosso discurso aspirava transformar a cidade, não era somente com um objetivo de conhecimento erudito ou puramente acadêmico [...]. Aspirávamos introduzir com isto mudanças na maneira que se fazia a cidade” (26).
A identidade do grupo a partir do qual se fala varia ao longo do texto. Em determinados momentos o emprego da segunda pessoa do plural se refere aos organizadores do evento – “o tema que nós, organizadores do SAL V, escolhemos” (27) –, em outros parece se referir aos Seminários de Arquitetura Latino-americanos como um todo, como se estes eventos fossem uma entidade capaz de legitimar a construção de acordos coletivos: “Não pode deixar de nos inquietar o fato que, ainda que no plano da obra arquitetônica em si mesma alcançamos algumas atitudes e critérios comuns, estamos muito longe de que ocorra algo análogo no plano do espaço urbano” (28).
A convocatória-manifesto deixava explícito, portanto, sua expectativa de que o evento de Santiago viesse a estender o campo de atuação e o poder de influência dos SAL. Assim como por intermédio destes seminários pôde-se difundir e assimilar, ao longo dos anos 1980, noções que tiveram forte poder de penetração na crítica arquitetônica do subcontinente (29) – como a “modernidade apropriada” (30) –, almejava-se que por meio do SAL V se fosse possível construir “acordos morfológicos coletivos [...] para melhorar as normativas e [...] a qualidade do espaço urbano” (31) latino-americano.
A referência aos CIAM: paralelismo e inversão
Na busca de referências para construção destes acordos coletivos a convocatória remete à simplicidade e à potência de “propostas tão básicas como os ‘Cinco Pontos’ em arquitetura e a ‘Carta de Atenas’ em urbanismo” que, no passado, obtiveram grande pungência na América Latina (32). Aparentemente contraditória dentro do contexto do histórico dos SAL (33), as referências ao Movimento Moderno e, em específico, às regras sintetizadas por Le Corbusier não parecem inócuas dentro da sequência argumentativa da convocatória. Esta reverbera não apenas na simplicidade dos acordos coletivos buscados, mas também na forma de construí-los, notadamente, na proposição da análise comparada:
Existem muitos modos possíveis, porém, para organizar o trabalho comum de modo que as diversas situações e propostas sejam comparáveis e coerentemente discutíveis entre si, é indispensável que todos nos guiemos por uma pauta muito precisa (34).
Ora, como se sabe, a prática de solicitar às delegações nacionais a elaboração trabalhos prévios com o objetivo de desvelar regras mediante sua análise comparada não era alheia aos CIAM. Se durante os trabalhos de preparação do IV CIAM esta análise aparece como um método, o “urbanismo comparado”, defendido pelo presidente deste congresso, Van Eesteren; procedimentos semelhantes, no entanto, já haviam sido experimentados anteriormente nos eventos de Frankfurt e de Bruxelas (35). Para o congresso Frankfurt de 1929, presidido por Ernest May, os representantes de cada país organizaram uma “coletânea de planos realizados dentro de seus países, apresentados à mesma escala e seguindo regras de representação gráficas únicas” (36). Na preparação do evento de Bruxelas, de 1930, Hans Schmidt, na condição de membro do comitê de organização da exposição “Loteamento Racional”, sugeriu ampliar este trabalho prévio: além da comparação entre análises de loteamentos e de normas existentes nos diversos países, já prevista para a mostra, propôs que fosse realizada, também, uma enquete urbana na escala internacional (37) sintetizada na forma de esquemas gráficos – com base nos parâmetros que ele próprio havia desenvolvido para Genebra, Zurique e Basileia (38). Segundo Enrico Chapel, Le Corbusier não somente apoiara a proposta de Hans Schmidt durante a reunião preparatória do III CIAM, como, também, desvelou o potencial da “comparação visual como meio eficaz para definir de uma vez por todas os princípios gerais da urbanização” (39).
A comparação visual ensejada na exposição do III CIAM seria aprofundada no “urbanismo comparado” proposto pelo grupo neerlandês para o quarto congresso – cuja referência principal fora a experiência de planejamento de Amsterdã, a qual Van Eesteren passou integrar a partir de 1929 (40). Com o objetivo claro “definir as linhas de uma ciência urbana ainda balbuciante e alcançar a síntese da cidade moderna a partir da análise crítica das cidades existentes” (41), as diretrizes para o IV CIAM afirmavam:
A noção de “cidade funcional” exprime a ideia que as funções essenciais da cidade – a habitação, a produção (trabalho), o relaxamento como elemento de ligação na circulação – são determinantes para as formas de aglomeração urbana. Nós desejamos estabelecer os princípios da cidade funcional, e as condições que permitem sua realização. Para poder empreender este trabalho seriamente, é necessário reunir documentos antes (42).
Não se pode deixar de perceber semelhanças entre a proposta de organização dos trabalhos para a o congresso da “cidade funcional” e aquela presente na convocatória do V SAL. Ainda que seus autores não tenham tido acesso direto às diretrizes do IV CIAM, dificilmente eles desconheceriam a exposição “Cidade funcional”, e o trabalho que a precedeu, visto que a importância desta para a construção da “Carta de Atenas” foi amplamente enfatizada pela historiografia – veja-se, por exemplo, Giedion em “Espaço, tempo e arquitetura”, Benevolo em “História da Arquitetura Moderna” e Frampton em “História Crítica da Arquitetura Moderna”.
Contudo, as semelhanças entre o V SAL e o IV CIAM param na definição de parâmetros para organização dos trabalhos a serem visualmente comparados. Ao contrário do IV CIAM, que procurou inventar a “Cidade Moderna” por meio de sua oposição frente às cidades existentes; o V SAL propõe a reflexão sobre a cidade latino-americana a partir de intervenções que transformam ou enfatizam sua estrutura urbana. O primeiro olha para cidade existente a fim de justificar a cidade imaginada, o segundo imagina transformações urbanas para entender a cidade existente.
Para a exposição “Cidade Funcional”– que ocorreu na Escola Politécnica de Atenas e possibilitou a análise comparada entre 34 cidades situadas em 18 países do mundo – foram elaboradas três séries de mapas, cujos temas, escalas e legendas deveriam ser unificados (43): cartas na 1/10.000 que delimitavam as zonas funcionais das cidades; representações na 1/10.000 mostrando a espacialização dos tipos de circulação e, por último, mapas na 1/50.000 que ilustram a inserção regional da cidade – os usos e as circulações em sua “zona de influência” (44).
No caso do evento de Santiago do Chile, no entanto, as legendas e escalas de representação unificadas no IV CIAM foram substituídas pela tentativa de enquadrar projetos com níveis de complexidade semelhantes: as cidades abordadas deveriam ter mais de um milhão de habitantes e as áreas de intervenção – necessariamente existentes e com indicações de sua exequibilidade – deveriam ter entre 4 a 10 hectares. A opção pelas grandes cidades não foi casual, segundo Eliash:
Queríamos justamente distinguir [as intervenções a serem apresentadas] daquelas operações em cidades pequenas que poderiam ter um caráter não digo menos importante, mas menos relevante para o desenvolvimento dos países. Em nosso continente o desenvolvimento se deu com altas taxas de urbanização, cerca de 80% de urbanização em pouquíssimo tempo, em menos de um século. Portanto, nos parecia que os problemas estavam aí: nas grandes cidades (45).
O paralelismo e a inversão entre a organização dos trabalhos do IV CIAM e do V SAL não se resumem, no entanto, à unificação da representação buscada em Atenas e à semelhança da problemática de projeto desejada para Santiago do Chile. Por um lado, se o corte de análise na exposição do IV CIAM foram os aspectos funcionais – zonas de uso comum e circulação –; por outro, para compreensão dos aspectos morfológicos da cidade latino-americana o escrutínio se fez “por partes”, tecidos urbanos nomeados no texto como “situações urbanas prototípicas”:
Situação A: área de cidade antiga com trama urbana existente e fachada contínua; Situação B: área de cidade existente com trama urbana do tipo cidade-jardim; Situação C: área de cidade existente, com edificação isolada de média altura; Situação D: área de cidade existente, com características de periferia marginal (46).
As partes da cidade latino-americana (ou de Santiago do Chile)
Certamente, as “situações urbanas prototípicas” definidas implicam uma leitura já construía sobre as cidades latino-americanas. Primeiramente, não se pode deixar de perceber ressonâncias da noção de “cidade por partes” – tal qual definida por Rossi e Aymonino (47) e como manifesta no urbanismo catalão dos anos 1980 (48). No capítulo de “A Arquitetura da Cidade” que dedica à “estrutura da cidade por partes”, Rossi defendia a delimitação de áreas de estudo e intervenção – em detrimento de uma abordagem global e genérica – da seguinte forma:
Do ponto de vista da intervenção, eu creio que hoje é necessário operar sobre uma porção bem delimitada da cidade sem querer excluir a princípio, sob o nome de uma planificação abstrata do desenvolvimento de uma cidade, a possibilidade de outras experiências, mesmo que totalmente diferentes. Um pedaço da cidade apresenta critérios bem mais concretos do ponto de vista de análise e do ponto de vista da programação (intervenção). [...] A cidade, por sua natureza, não é uma criação que nós possamos identificar a uma única ideia fundamental (49).
Para além das ressonâncias italianas e catalãs, as situações urbanas prototípicas demostram, sobretudo, leituras sobre a “cidade latino-americana” e sobre Santiago do Chile, em específico, que foram se consolidando ao longo dos anos 1980. Se, por um lado, a cidade antiga e a periferia marginal haviam sido objeto de debate junto aos SAL – ainda que tivessem ocorrido em seções temáticas distintas no III e no IV SAL –, por outro, as situações urbanas relativas à “trama urbana tipo cidade jardim” e “com média altura e edificação isolada” representam uma inovação no âmbito destes eventos e remetem a debates que tiveram lugar em Santiago ao longo dos anos 1980.
Estas duas últimas situações estão, de certa forma, calcadas na análise e no debate sobre a forma urbana da expansão da região metropolitana de Santiago e, em específico, da comuna de Providencia: os loteamentos jardim que marcaram sua ocupação entre os anos 1930 e 1960 – os quais foram objeto de estudo tipo-morfológico de Montserrat Palmer Trias (50) – a sua transformação e verticalização que se deu a partir da implementação do Plano Regulador de 1975 e do projeto de Nueva Providencia (1975) (51), elaborado Germán Bannen e concluído em 1980 (52). Numa espécie de ato falho, Murtinho, ao justificar os temas definidos para o debate, ratifica esta interpretação, afirmando que se queria, naquele momento, recuperar a experiência local: “escolhemos as nossas amostras: a Providencia, o centro, a periferia” (53). Todavia, ainda que muitos dos debates nos anos 1980 tenham sido motivados por Providencia e suas transformações urbanas, ambas as situações urbanas caracterizavam, de forma geral, a expansão urbana de Santiago no século XX.
À guisa de conclusão: a teoria como conjunto de regras para a prática
Ao longo das análises ensejadas neste artigo, percebe-se que a convocatória do V SAL ultrapassava em muito os parâmetros usuais deste tipo de texto. Concebida como elemento-chave de um dispositivo que viria a permitir o estabelecimento de parâmetros comuns para as intervenções em cidades latino-americanas; ao mesmo tempo em que a chamada do evento estabelecia um minucioso enquadramento para os projetos e palestras a serem debatidos, apelava, também, a referências legitimadoras por meio de analogias e da própria estrutura formal que remetia ao texto de manifesto.
Através do close reading deste texto observa-se que o dispositivo proposto tinha um duplo objetivo: assim como, ao buscar a referência do IV CIAM, pretendia-se definir parâmetros que permitiriam fundamentar a prática no subcontinente; ao definir as partes de Santiago como base para a discussão sobre a cidade latino-americana, manifesta-se, também, a intensão de poder intervir diretamente na metrópole que sediava o evento. Transparece, de modo geral, uma tentativa de redirecionar o enfoque dos debates nos SAL, buscando uma abordagem pragmática, na qual a teoria, que almejava Moscato, é compreendida como um conjunto de regras passíveis de aplicação na prática. Neste contexto, a elaboração da convocatória condensava as expectativas dos organizadores do evento, como admite Eliash:
Achávamos que poderíamos conseguir mais ao nos aproximarmos da realidade. E que poderíamos influir melhor se fizéssemos algo mais específico do que algo genérico. Portanto, aproveitamo-nos – não sei se ingenuamente ou não – do fato que tínhamos o poder de definir a convocatória (54).
notas
NA — Este artigo é parte da tese de doutoramento desenvolvida pela autora: SOUZA, G. B. Tessituras híbridas ou o duplo regresso: encontros latino- americanos e traduções culturais do debate sobre o retorno à cidade. Tese de doutorado, FAUUSP, São Paulo, 2013.
1
Cf. JAJAMOVICH, Guilhermo, Arquitectos proyectistas y transición democrática. El concurso de las 20 ideas. In: Anales del IAA. Buenos Aires: FADU/UBA, n.41, 2011, p.203-212.
2
Cf. RAMÍREZ NIETO, Jorge. Las Huellas que revela el tempo (1985-2011). Seminarios de Arquitectura Latinoamericana – SAL. Bogotá: Editorial UN, 2013.
3
MOSCATO, Jorge. El Movimiento de arquitectura Latinoamericana para los años 90. In: CA, Santiago do Chile: Colegio de Arquitectos, n. 65, jul./ago./set 1991, p.26.
4
O texto em questão foi escrito para compor o referencial teórico da VIII Bienal de Arquitetura do Chile, realizada em 1991 e intitulada Arquitectura Latinoamericana. Un camino para lo propio. Este foi publicado, junto aos solicitados a outros arquitetos engajados nos SAL, na seção Documentos do catálogo da Bienal. Cf. MÁRQUEZ, J. El Camino de lo Propio. In: CA, Santiago do Chile: Colegio de Arquitectos, n. 65, jul./ago./set 1991, p.16.
5
MOSCATO, J. loc. cit, 1991, p.26.
6
MOSCATO, J. loc. cit, 1991, p.26.
7
MOSCATO, J. loc. cit, 1991, p.26.
8
Ver a respeito desta questão: SOUZA, G. B. Um debate esquecido: A Cidade Latino-Americana no terceiro e no quarto SAL. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 138.01, Vitruvius, nov. 2011<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.138/4127>.
9
Cf. RAMIREZ NIETO, op. cit., 2013; bem como SOUZA, G. B. op. cit., 2013.
10
ROSSI, Aldo. The Analogus City: panel. In: Lotus International. Milão: Indutrie Grafiche Editorial S.p.A., n. 13, 1976, p.6
11
“Posteriormente se agregou à convocatória original a possibilidade de que participem 6 apresentações por país” – cf. BROWNE, Enrique; FERNANDEZ COX, Cristián; MURTINHO, Pedro. Convocatoria del V SAL. In: V Seminario de Arquitectura Latinoamericana. Nuestro Espacio Urbano: Propuestas Morfológicas. Santiago de Chile. 1991, p.4.
12
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.1.
13
BURGER, Marcel. Les manifestes: paroles de combat. De Marx à Breton. Lonay: Delachaux et Nieslé, 2002.
14
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.1.
15
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.1.
16
Este parágrafo do texto reverbera em sua redação e em seu destaque temporal da destruição do espaço urbano a estrutura argumentativa da “Carta de Reconstrução da Cidade” Léon Krier – publicada pela primeira vez em 1980 e reescrita por diversas vezes ao longo da década de 1980 (cf. SOUZA, G. B. Re-dire et dé-dire: le nouvel urbanisme en Europe. Dissertação. Université de Paris VIII, Paris, 2004). Deve-se salientar que Cristián Boza e Léon Krier mantiveram correspondência durante este período – BOZA, Cristián. Depoimento. [10 de agosto de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (23min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
17
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.1.
18
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.2.
19
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.2.
20
Cf. KRIER, Rob. Urban Space. New York : Rizzoli,1979. Rob Krier era uma das principais referências teóricas de Cristián Boza no início dos anos 1980 – cf. BOZA, C. Depoimento [10 de outubro de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (1hora e 12min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
21
Cf. SITTE, C. A Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos. São Paulo: Ática, 1992.
22
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.2.
23
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.2.
24
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.2.
25
ELIASH, Humberto. Depoimento. [02 de agosto de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (56min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
26
ELIASH, Humberto. Depoimento. [02 de agosto de 2011]. Loc. cit.
27
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.1.
28
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.3.
29
Cf. RAMÍREZ NIETO, op. cit., 2013; assim como SEGAWA, H. Arquitectura Latinoamericana Contemporánea. Colin Ross, 2005.
30
Noção definida por Cox como uma modernidade adequada à realidade latino-americana, tornada própria e passível de apropriação — cf. FERNANDEZ COX, Modernidad Apropriada, Modernidad Revisada y Modernidad Reecantada. In: Arango, Modernidad y Postmodernidad en América latina. Bogotá: Escala, 1991.
31
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.3.
32
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.3.
33
Deve-se, no entanto, ter em mente que os debates em si são sempre mais complexos que suas generalizações reducionistas. Humberto Eliash e Manuel Moreno – ambos organizadores do V SAL –, por exemplo, foram responsáveis pela primeira revisão histórica do Movimento Moderno no Chile – cf. MORENO G., Manuel; ELIASH, Humberto. Arquitectura y Modernidad en Chile/1925-1965. Una Realidad Múltiple. Santiago: Ed. Universidad Católica de Chile. 1989.
34
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.3, grifo nosso.
35
Cf. KOPP, Anatole. Quand le Moderne n’était pas un style, mais une cause. Paris : ENSBA, 1988 e CHAPEL, Enrico. L’œil raisonné. L’invention de l’urbanisme para la carte. Genebra : Matis Presses, 2010.
36
KOPP, Anatole. op cit, 1988, p. 181.
37
CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010, 90-91, passim. A enquete proposta por Hans Schmidt incorporava dados urbanos diversos: de densidade populacional a valor do solo e tempo de deslocamento.
38
CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010.
39
CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010, p.91.
40
CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010.
41
CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010, 95-96.
42
VAN EESTEREN, 1932, apud CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010, p.96, grifo nosso. Ver também: KOPP, Anatole. op cit, 1988, p. 177.
43
Segundo Chapel, as diretrizes nem sempre foram respeitadas. Cf. CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010.
44
Cf. CHAPEL, Enrico. op. cit., 2010.
45
ELIASH, Humberto. Depoimento. [02 de agosto de 2011], loc. cit.
46
BROWNE, E.; FERNANDEZ COX, C.; MURTINHO, P. loc. cit. 1991, p.3-4.
47
Cf. AYMONINO, Carlo. O significado das cidades. Lisboa: Editorial presença, 1984 e ROSSI, Aldo. L’Architecture de la Ville. Paris: InFolio, 2001.
48
SAINZ GUTIÉRREZ, Victoriano. El proyecto urbano en España. Génesis y desarrollo de un urbanismo de los arquitectos. Sevilha: Universidad de Sevilla y Consejería de Obras Públicas y Transportes, 2006.
49
ROSSI, Aldo. op. cit, 2001.p.74.
50
PALMER TRIAS, Montserrat. La ciudad jardín como modelo de crecimiento urbano: Santiago 1935-1960. El caso de la comuna de Providencia. Santiago: Pontificia Universidad Católica de Chile, 1985.
51
Cf. PALMER TRIAS, Montserrat. op. cit, 1985 e BANNEN, Germán. Chile, Santiago: Providencia, Ciudad entre. In: CA, n. 58, Santiago do Chile: Colegio de Arquitectos, out-dez 1989, p. 54-59.
52
Cf. RODRIGUEZ, León. Preambulo Histórico. In: CA, n. 58, Santiago do Chile: Colegio de Arquitectos, out-dez 1989, p. 52-53.
53
MURTINHO, Pedro. Depoimento. [20 de outubro de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (1hora e 51min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
54
ELIASH, Humberto. Depoimento. [02 de agosto de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (56min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
sobre a autora
Gisela Barcellos de Souza é arquiteta e urbanista (Universidade Federal de Santa Catarina, 2002), mestre em Projet Architetural et Urbain (Université de Paris VIII, 2004) e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (FAU-USP, com período sanduíche em Pontificia Universidad Católica de Chile, 2013). Atualmente é professora adjunta da Universidade Estadual de Maringá.