Sobre projeto
“Los talentos más débiles idealizan las cosas; la figuras de imaginación capaz se apropian de lo que encuentran”
Harold Bloom, Angustia de las influencias (1)
Muitos arquitetos, como os artistas, “são sensíveis a expressões, a palavras de ordem, tonalidades do pensamento que lhes servem de impulsão de fazer, mais do que sistemas teóricos bem construídos”. (2) Os arquitetos da prática e suas palavras, impregnadas pela prática, aparecem, para o teorista, como intuição, inspiração, teoria não conceitual, não intelectual; ignorância e, muitas vezes, vaidade expressa em ausência voluntária de teoria. E, se os teóricos estão objetivamente interessados em linhas de raciocínio pertencentes a movimentos, há que se considerar que a teorização está sempre presente nas opiniões, humores, gostos pessoais; no que aparece sem bases fundadas, mas que o hábito tornou naturais, implícitas.
A relação estreita entre a reflexão e a experiência envolve um “tipo de ‘conhecimento’ [...] ligado a uma configuração específica que alia tempo, lugar e papel social, e que compreende, a esse título, um dispositivo de transmissão da memória, do saber adquirido e dos métodos de aprendizagem” (3) e que, portanto, é útil ao entendimento do ofício.
Para os arquitetos do ofício, que se educam através da experiência a prática deve ser nominada práxis. Argan explica que “el término praxis no equivale simplemente a ‘práctica’, sino que su alcance es mayor: no se refiere solamente al ‘ejecutar’, sino al ‘obrar’ del hombre” (4), na construção de artificios. A mesma diferenciação – entre “trabalhar sobre, relativa ao homo faber, criador do artifício humano que transcende “el puro funcionalismo de las cosas producidas para el consumo y la pura utilidad de los objetivos producidos para el uso” (5) e “trabalhar e combinar com, relativa ao animal laborans, que nutre a vida, mas segue sendo servo da natureza e da Terra” – discutida por Hannah Arendt (6).
A práxis não se opõe à teoria para colocar-se como parte de um empirismo irreflexivo e sem fundamento. Por práxis não se deve entender um valor que se degrada em relação a um valor abstrato que está na teoria, enquanto ideia, senão um resultado de valor ideal concreto (7), que se busca e que é impulsionado por um Projeto.
O Projeto, enquanto uma irrealidade inventiva, se apropria da realidade e dá significado à experiência e ao imaginário sociocultural como “consciência estruturante” (8), se situa entre teoria e prática (9) e pode reconciliar o discurso e a práxis. É nesta perspectiva que o enfoque deste texto tem como escopo considerar as palavras do arquiteto da práxis Paulo Mendes da Rocha, com o intuito de ampliar os entendimentos sobre o papel da arquitetura no universo de construção da cidade. O estudo se propõe a apreciar os textos deste arquiteto, atribuir valor crítico não secundário ao discurso no entendimento dos compromissos da arquitetura, de forma a valorizar teoria e práxis como esferas sinérgicas do “fazer” e abrir, para outros estudos, a oportunidade de uma releitura das obras arquitetônicas e das linhagens de seu raciocínio, estas entendidas como integrantes de um “corpo de conhecimentos” que orienta o projeto.
Genealogia da imaginação
O arquiteto Mendes da Rocha conserva dentro de si a marca de uma relação primária que participa da construção de sua vida. Sua cidade natal, sua formação, sua árvore genealógica são algo mais que meras reminiscências da memória. As transformações da natureza que viu, a partir de uma prática construtiva do mundo, são singularidades intransferíveis que permanecem como experiência vivida e abertura poética:
“Me eduquei, me acostumei, eu imagino, compreendendo que os homens providenciam e constroem coisas: tiram madeira no mato, exportam pelo porto. Vivi sempre ligado a essa questão da engenharia: meu pai sempre me levava para ver obras de construção, obras em alto-mar, tubulões pneumáticos. Os irmãos da minha mãe eram engenheiros: tinham pedreiras, serraria, exportavam madeiras. Vivi sempre no meio de construtores. O tempo todo da minha infância e da minha adolescência constituiu uma educação quanto à questão dos empreendimentos, dos artefatos, dos engenhos que transformam as coisas. Uma formação constituída de observação e gozo dos resultados desses empreendimentos humanos.
Também pode ter sido uma felicidade que pudesse ter visto tudo isso por diversos ângulos, inclusive o da biologia. Meu tio, irmão da minha mãe era médico e me fez acompanhá-lo em barcos para atender gente pelas ilhas. Este tio e outros eram também caçadores: caçavam garças depois as empalhavam, na varanda da casa da minha avó, para o carnaval.
As minhas tias costuravam as fantasias. Portanto, eu via cortar panos, cortar vidrilhos, empalhar garças, construir cais, dinamitar pedreiras, soldar calandras, embarcar [...] Eu acho que isso fez pra mim uma base de formação [...] que mostra que [...] nós somos providências e fruto de uma possibilidade de habitar, viver. Mesmo as coisas prosaicas como cantar, dançar, amar, a partir de uma engenhosidade que constrói, constitui — nós constituímos — nosso próprio habitat.
[...] E assim, quando eu entrei numa faculdade de arquitetura — que eu decidi lá pelas tantas —, o que eu vi foram confirmações, de uma forma erudita e organizada, do que eu já sabia, ao invés de estar diante de uma novidade total. Eu tenho a impressão que a minha formação é, basicamente esta” (10).
A vida do arquiteto contém o germe de sua obra. Os fatores hereditários e as influências ambientais são o texto que a natureza e a história lhe legaram, para que ele o decifre. Para o arquiteto, o que a vida lhe propõe é estar no mundo através de uma ação que se estrutura de forma construtiva, necessária e em contínua transformação, tal que a percepção de um núcleo originário de sentido, baseado na experiência, se expande como princípio estrutural de uma ética, enquanto “livre interpretação da existência” (11), e consolida a realização de um emblema de vida de “arquiteto”.
O primeiro plano estrutural, apoio da arquitetura de Mendes da Rocha, reside na imaginação, moldada pela memória da observação das transformações da natureza, que se expande como condição de coexistência e compromisso histórico com uma condição inaugural. O segundo plano revela a intenção construtiva de sua arquitetura em um procedimento técnico. O que articula estes dois planos, integrados e superpostos na atividade criativa, é o raciocínio de Projeto.
A procura de uma identidade entre ideia e desenho
O Projeto é uma visibilidade interior, que inspeciona tanto o mundo real como o imaginário, para tornar visível a poética que define uma intencionalidade propriamente tectônica (12), dando-lhe sentido e corpo, pois, se o projeto criativo é livre (13), a arquitetura busca revelar “sempre um comprometimento nítido com o ideário da liberdade, da independência e a procura de uma identidade entre ideia e desenho” (14).
A liberdade, mais que um destino, é uma possibilidade (15). O Projeto, portanto, é uma aproximação “sempre com a idéia de modelo de ensaio experimental”. As aproximações na arquitetura são hipóteses que constroem “instalações humanas, empreendimentos produtivos, aventuras comerciais, industriais, transformações instigantes diante do que sabemos hoje sobre o passado e o que desejamos no futuro” (16). Este Projeto construtivo, este “construtivismo” que tenta estas aproximações, sobrepõe as noções de ideia e desenho para que se revele a nitidez de uma intenção. Porque “Desenho significa destinação compreendida e desejada, quer dizer manifestação de um desejo que se revela na forma. Essa configuração formal tem poder de comunicação, revela o que uma sociedade pensa de si mesma” (17).
O Projeto é um compromisso com a investigação histórica e com a autodeterminação. De fato, o arquiteto, facultado para interpretar e realizar uma aspiração comum, sem converter-se em mero instrumento de um ideal coletivo, estima que o Projeto, porque “muda o significado das coisas” (18), é inseparável da condição de existência: é “a expansão do âmbito da subjetividade e um propósito do fazer” (19), de interação com o corpo social.
O Projeto é a busca que encontra a concreção do desejo nas proposições arquitetônicas que realiza. Comunicar e manifestar um desejo, revelar a realidade que se imagina, compreende que “Para tentar estas aproximações entre a imaginação e as formas só podemos nos apoiar na memória, nas similaridades e no patrimônio, por excelência, da Técnica” (20).
Para Mendes da Rocha, esta afirmação se estrutura a partir da solidariedade entre o observador e o observado, já que para o arquiteto,
“Quando um desenho, uma modificação, modernização, reurbanização ou qualquer interferência na cidade, na arquitetura dos recintos urbanos não considera a história já escrita no comportamento popular, erra. E erra para o futuro, o que é a qualidade maligna desse erro, porque atrasa, contraria, engana e subverte o que é um tempo histórico” (21).
A exigência intrínseca de relacionar o Projeto, como testemunho da própria individualidade em formas compartilháveis, também se ampara no território do conhecimento, na experiência da espacialidade e à luz de uma utopia. O que determina que a arquitetura se materialize como um dado do tempo presente, de forma indagadora de hábitos e costumes. Para Mendes da Rocha,
“Arquitetura é uma indagação, sempre. Indagação tanto quanto à identificação do valor de conteúdo futuro — ver o futuro tomando forma, a gênese do futuro andando nas ruas, nos espaços da cidade, com características também locais e que vêm se configurando no tempo, tecendo a história, um projeto em permanente estado de revelação —; como também quanto afeiçoá-lo — realizar na imaginação um conjunto de formas, construções, voltadas para um cenário ideal, capaz de realçar, iluminar aquela existência já real, que fala de um conhecimento humano sobre a própria existência enquanto manifestação social da cultura. Trabalho monumental” (22).
O arquiteto adquire consciência sobre o que, em se tratando de arquitetura, estabelece um diálogo com o outro, durante o desenvolvimento do projeto do Pavilhão de Osaka, em 1969 (23), quando
“se consolidou [...] uma série de questões interessantes sobre o que seja, ou o que deva ser, ou o que eu quero que seja, quando faço arquitetura. O que eu quero que ela seja: uma arquitetura de vontades e desejos; uma arquitetura que é um relato sobre aquilo que imaginamos seja a realidade. Ou seja, o que é a realidade? Um instrumento de transformação. Nada que se cristalize para ficar. [...] A arquitetura como discurso” (24).
Discurso e práxis
A intenção de uma arquitetura que revele um discurso e o configure em forma/espaço é um trabalho em condições muito restritas e decisões sumamente delicadas. Construir o discurso é engendrar uma obra que guarde a indivisibilidade entre a forma e o sentido, é tornar evidente o desejo de um intercâmbio harmônico entre a expressão e a impressão. No Projeto que intermedia teoria e prática, “a ordem do discurso e a ordem da ação” (25).
O arquiteto atua desde um discurso voluntário e consciente. A transformação deste discurso em raciocínio arquitetônico é intencional, discriminante, pretende criar expectativas em cujo fundo possa desenvolver-se a liberdade do indivíduo, das relações sociais, da consciência, da criatividade. A convicção nesse raciocínio faz que Mendes da Rocha considere a Arquitetura como uma manifestação social que se confunde com a amplitude das instalações humanas:
“Quando eu vi discursos sobre arquitetura, se sucederem os discursos [...] Eu percebi que os navios, mesmo as movimentações dos navios dentro de um porto, que não havia antes aquele porto [...] tudo isso é arquitetura! A existência humana, nas suas instalações indispensáveis, é feita com uma grande Arquitetura” (26).
Um discurso pode ser lógico, pode estar carregado de sentido, mas sem qualidade imaginativa. Pode ser agradável e insignificante; pode ser claro e vão; ou apenas útil. Pode ainda especular sobre a equação forma/espaço
“Quanto à natureza, a ocupação do espaço, transformando-o, construindo recintos habitáveis, para além da estrita necessidade; [...] a partir sempre de uma experiência em curso, em curso sempre inventivo e confrontando permanentes contradições entre os interesses populares inerentes à própria vida e os desastrados resultados formais com que a cidade vai realizando os enganos e a brutalidade da visão destituída de qualquer censo ético do capitalismo colonial. Essa cidade construída sob o projeto do saque e da especulação extrema: sem desenho” (27).
Na arquitetura de Mendes da Rocha, a forma sensível e a fenomenização do espaço que se impõem e declaram (28) como algo que não se resolve somente com leis de ordem prática, estão além de um discurso “lógico”. A indagação que o arquiteto tece sobre as possibilidades de construir uma espacialidade dinâmica não é a busca da forma ou do espaço em si mesmo. É um Projeto maior, no qual a arquitetura, enquanto estrutura imprescindível do viver, abre e articula um diálogo, permanentemente aberto, com os inevitáveis discursos sobre a necessidade de humanizar o espaço habitável.
E realizar esta exigência é, ao mesmo tempo, estabelecer uma relação inalienável entre a arquitetura e sua finalidade: o habitar e a emoção estética. Daí se deduz e se reconhece que, nesta arquitetura, a intencionalidade tectônica quer despertar um “estado poético” tal, que toda obra possa induzir a uma atitude mais ou menos exigente, mais ou menos pronunciada, a uma interrogação, um tema para pensar.
Esta arquitetura projeta os espaços como manifestação poética e constrói no sentido grego de poiesis,
“porque traz uma visão animada sobre a vida, uma visão erótica sobre a vida: a questão do desejo. Uma nítida manifestação de caráter suntuoso, sensual, que reporta uma ideia de uma visão erótica sobre a vida: a vida desejável, em vez do esforço de manutenção de padrões eventualmente anacrônicos. Nessa arquitetura não há o novo pelo novo. Há um novo que ainda não fizemos” (29).
O projeto
O Projeto da arquitetura de Mendes da Rocha delimita sua própria intervenção e se organiza como um princípio de economia, para que dessa modernidade se desprenda o excesso de carga imaginativa / interpretativa do radicalismo próprio do discurso. Precisamente porque reduziu a forma a seus componentes mais elementares pode organizar-se, de modo social, o processo da comunicação plástica e fenomenológica da obra. As formas diretas, simples, geométricas, elementares, às quais o inconsciente está condicionado e, portanto, reage a seus princípios construtivos, são uma aposta pela intensidade da percepção.
Ao determinar a equação forma/espaço através da ênfase estrutural, o arquiteto confirma, em suas obras, que a introversão do discurso científico transcende sua frieza quando o discurso artístico deixa aparecer seu esgotamento e superação. Sucede o mesmo com a relação que se estabelece com o tema. A evidência com que se configura a função não prescinde da ideia de funcionalidade, mas a ultrapassa, pois o que importa não é somente a função, senão sua expressão.
O tono estrutural que a obra configura no limite de sua possibilidade é uma configuração que fala de tensão máxima entre estabilidade e ruptura, e reflete a fronteira entre a ordem estrita e o caos, apelando ao Projeto de cada um, à consciência da rígida fronteira entre vigor e delicadeza. Como explica o arquiteto: “Sempre me impressionou [...] obras mais cristalinas, mais translúcidas, mais transparentes. Mais parecidas com qualquer coisa feita como uma palafita: poucos apoios e muita coisa realizada; grandes espaços, entretanto, aparentemente frágeis” (30).
As formas estruturantes que surgem como manifestações materiais irredutíveis, explícitas em entidades elementares, desenhadas no limite de sua capacidade física, acusam o domínio da técnica. Mas a técnica, ao traduzir ideias de inteligente concisão, favorece o aspecto artístico da obra, pois possibilita sua reconciliação com a pureza formal e com a precisão expressiva. Assim pois, ainda que a objetividade da retórica técnica esteja presente na obra, sua visualidade e o valor semântico que se atribui à função, se compreendem como submetidas à uma intenção estética e à poética que a realiza.
Ao configurar seu limite, a técnica, na arquitetura de Mendes da Rocha, não se exerce como processo abstrato e alienante e adquire sua condição de instrumento construtivo e impulsor do discurso da arte. A condição do limite matemático da estabilidade da estrutura é uma expressividade expandida. O intento deliberado para manter um estado de equilíbrio tenso entre a contenção e a expansão, a articulação e a estruturação da espacialidade é uma intensidade construtiva que define e faz coincidir a harmonia entre a abstração e a aspiração artística.
E, ainda que a arquitetura seja parte da produção do novo mundo de objetos da cidade industrial, também se dirige para um espaço ritual onde a existência coletiva está conciliada com um sujeito comum. Esta comunidade se mostra, por exemplo, no que para Mendes da Rocha é uma virtude da arquitetura no Brasil:
“O que você vê da arquitetura brasileira — esse aspecto de poucos apoios e grandes espaços —, digamos que seja uma característica. Eu chamaria como característica, não tanto o aspecto formal daquilo, mas o que aquilo revela que é uma distração, um descaso, por qualquer ideia de proteção. [...] é um reflexo belíssimo de uma condição distraída e legítima. [...] É uma ideia de um espaço que se organiza só para dizer, aqui é o lugar; quando quiser entrar, entra aqui. [...] Você vê a casa do caboclo no sertão, por exemplo, nada antecede aquela casa que, de repente, te espanta, e que você chega: lá está uma casa. Não há uma cerca, um fosso, um ... nada. A tapera fica assim, no meio da mata, você pode ver uma pequena roça de mandioca em volta, e tal. [...] Quando isso terminar, ou se transformar, nós teremos, com certeza, perdido muita coisa” (31).
Discurso e projeto
O discurso do arquiteto assevera que o Projeto de um novo construir não se ampara em uma questão de forma ou espaço. Seus cimentos são a criação de uma nova espacialidade, interna e externa, que, ao estar aberta à experiência, expressa ideias de emancipação — sua ideologia libertária — em uma indiscutível perfeição técnica, considera os princípios artísticos do novo construir como os mais importantes para a realização da obra, a renovação de valores e símbolos sociais. E, na época em que Mendes da Rocha se afirma como arquiteto, com a esperança de um tempo de um novo imaginário (32), sua arquitetura
“aparece não negando a necessidade de símbolos. É que há nesse momento — quando começa a minha arquitetura —, uma nova monumentalidade a ser cantada, há uma necessidade de símbolos, há uma necessidade de novos símbolos para a nova mentalidade, o novo psiquismo” (33).
Em outras palavras, a visibilidade de sua arquitetura mostra a solidez e a virtude de um projeto social revelados nos aspectos funcionais e expressivos que definem a configuração espacial. Também atesta que este “socialismo” se revela na estrutura inventiva de uma poética, que privilegia a relação entre a emoção estética e o estímulo à compreensão de seu cotidiano histórico. Em consequência, ser arquiteto é também desenhar adornos para o prazer de viver, porque
“Arquitetura é fazer e produzir as coisas com que o homem dota seu inadiável existir, com o atributo de adorno. Linguagem que, como objetivo, pensa elogiar o próprio trabalho feito, ao projetar a forma de fazê-lo como um gozo da riqueza conquistada, atribuindo-lhe valor especialmente humano, com uma forma. Não como monumento a alguma circunstância, mas com a monumentalidade indispensável ao exercício da própria vida, na sociedade” (34).
A modo de conclusão
Estudar o discurso e sua ação na práxis como parte do Projeto implica em reconhecer que a liberdade das palavras deste gênero de discurso fora da erudição e do conhecimento preciso não significa incoerência, mas sim que o nexo do mesmo está na “construção pacientemente elaborada nos ateliês do imaginário, saída de um terreno comum, dos pensamentos que forma se formando no contato com as práticas e pouco a pouco adquiriram, ao se sobrepor por estratos, o porte de um palimpsesto” (35).
Nas palavras do arquiteto é possível perceber que a “experiência vivida” (36) constrói uma visão de mundo, molda o olhar como referência das relações significativas do mundo que habita e se enlaça com a objetividade e a contemporaneidade. Em Mendes da Rocha, o conhecimento se faz pelo olhar e a ação no mundo e, portanto, se mostra desde um horizonte de existência (37). É a partir da consciência concreta do mundo — sua transformação através da apropriação do pensamento construtivo —, que o arquiteto concebe o mundo das ideias.
Para Mendes da Rocha, a objetividade não está “na ideia de mundo”, senão “no mundo” (38). Um raciocínio, portanto, que explicita e teoriza o valor do trabalho, aponta seus fundamentos e papel social em empreender, engendrar, transformar. Assim pois, considera que o Projeto se insinua de forma significativa em uma consciência construtiva intencional que se constitui em técnica e tem um caráter poético. A consciência integrada na existência configura que, para o arquiteto, “o cogito é espessura temporal de um contato intersubjetivo com o mundo” (39).
notas
NA – Este texto é parte integrante de tese doutoral “La construcción de la mirada: Naturaleza, Ciudad y Discurso eN la Arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha, orientada por Josep Quetglas e defendida em 2002 na ETSAB/UPC.
1
BLOOM, Harold (1973). Angustia de las influencias. 2ª edição. Caracas, Monte Avila Latinoamericana, 1991, p. 13.
2
CAUQUELIN Anne (1998). Teorias da Arte. São Paulo, Martins, 2005, p. 127.
3
Idem, ibidem, p. 160.
4
ARGAN, Giulio Carlo. El concepto del espacio arquitectónico, desde el barroco a nuestros días. Curso dictado en el Instituto Universitario de Historia de la Arquitectura, Tucumán, 1961. Buenos Aires, Nueva Visión, 1973, nota 49, p. 188.
5
ARENDT, Hannah (1958). La condición humana. Barcelona/Buenos Aires, Paidós Ibérica, 1993, p. 191.
6
Idem, ibidem, p. 191; 157; 160.
7
ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 102-103.
8
ARGAN, Giulio Carlo (1964). Projeto e destino. 2ª impressão. São Paulo, Ática, 2001, p. 51.
9
MARINA, José Antonio (1993). Teoría de la inteligencia creadora. Barcelona, Anagrama, 1995, p. 255.
10
ROCHA, Paulo Mendes da. A construção do olhar de Paulo Mendes da Rocha. Depoimento a Maria Isabel Villac – São Paulo, março de 1995 e maio de 2007. In: ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel (org.). América, cidade, natureza. São Paulo, Estação Liberdade, 2012, p. 27-28.
11
Da mesma forma, “Los datos de Cézanne [...] no son, situados en la existencia que los abraza, más que el monograma y el emblema de una vida que se interpreta a sí misma libremente”. MERLEAU-PONTY, Maurice (1948). La duda de Cézanne. In: Sentido y sinsentido. Barcelona, Ediciones Península, 1977, p. 48.
12
“Desde sua emergência consciente em meados do século XIX como os escritos de Karl Bottischer e Gottfried Semper, o termo tectônica não apenas indica a integridade material e estrutural de uma obra mas também conotações poéticas subjacentes ao modo específico de sua construção”. FRAMPTON, Kenneth. Rappel a l'Ordre: em defesa da tectônica. Gávea, Rio de Janeiro, vol 12, n. 12, Pontifícia Universidade Católica, dez. 1994, p. 309.
13
MARINA, José Antonio (1993). Teoría de la inteligencia creadora. Barcelona, Anagrama, 1995, p. 151.
14
ROCHA, Paulo Mendes da. Ideia e desenho (1981). In: ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel (org.). América, cidade, natureza. São Paulo, Estação Liberdade, 2012, p. 207.
15
MARINA, José Antonio (1993). Teoría de la inteligencia creadora. Barcelona, Anagrama, 1995, p. 24-25.
16
ROCHA, Paulo Mendes da. Tietê... Futuro desenhado. In: Anais II Bienal Internacional de Arquitetura. São Paulo: ago/set. de 1993.
17
ROCHA, Paulo Mendes da. Desenho urbano, uma forma de compreender e transformar. Entrevista a Vanda F. Pinto. Projeto, São Paulo, n. 113, São Paulo, ago. 1988.
18
“El proyecto cambia el significado de las cosas, que se convierten en significativas, interesantes, prometedoras, bienesperanzadas”. MARINA, José Antonio. Op. cit., p. 157.
19
Idem, ibidem, p. 193 e 180.
20
ROCHA, Paulo Mendes da. Um olhar sobre a cidade real. Caramelo, São Paulo, n. 3, GFAU, out. 1991, p. 33.
21
Idem, ibidem, p. 32.
22
Idem, ibidem, p. 32.
23
O projeto do Pavilhão do Brasil em Osaka foi objeto de concurso nacional e desenvolvido conjuntamente com Flávio Motta, Julio Katinsky, Ruy Ohtake, Jorge Caron, Marcelo Nitsche, Carmela Gross.
24
ROCHA, Paulo Mendes da. Ideia e desenho (op. cit.), p. 34.
25
BOUTINET, Jean-Pierre (1999). Antropologia do projeto. Porto Alegre, Artmed, 2002, p. 254.
26
ROCHA, Paulo Mendes da. Ideia e desenho (op. cit.), p. 39.
27
ROCHA, Paulo Mendes da. Um olhar sobre a cidade real (op. cit.), p. 33.
28
De forma análoga, “En el pintor o sujeto hablante, el cuadro o la palabra no son la ilustración de un pensamiento ya hecho, sino la apropiación de este pensamiento”. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenología de la percepción (1945). Barcelona, Planeta De Agostini, 1993, p. 398.
29
ROCHA, Paulo Mendes da. Uma tese: a notícia sobre o Brasil. São Paulo, conversa com o autor, julho de1992. Não publicado.
30
ROCHA, Paulo Mendes da. Ideia e desenho (op. cit.), p. 57.
31
Idem, ibidem, p. 69.
32
“o nacionalismo desenvolvimentista armou um imaginário social novo, que pela primeira vez se refere à nação inteira, e que aspira, também pela primeira vez, a certa consistência interna: um imaginário no qual, sem prejuízo das falácias nacionalistas e populistas, parecia razoável testar a cultura pela prática social e pelo destino dos oprimidos e excluídos”. SCHWARZ, Roberto. Fim de século. Folha de São Paulo, São Paulo, 04 dez. 1994.
33
ROCHA, Paulo Mendes da. “Uma tese: a notícia sobre o Brasil”, São Paulo: conversa com o autor, julho de1992. Não publicada.
34
ROCHA, Paulo Mendes da. Ideia e desenho (op. cit.), p. 206-207.
35
CAUQUELIN Anne. Op. cit., p. 171.
36
“Es del fondo de su subjetividad que cada uno proyecta este mundo único”. MERLEAU-PONTY, Maurice. El otro y el mundo humano. In: Fenomenología de la percepción (op. cit.), p. 368.
37
“a coisa se mostra, sempre, para um certo olhar. [...] Para a fenomenologia, [...] todo mostrar-se é sempre um mostrar-se do próprio entrelaçamento em que se amalgamam a coisa e o olhar”. CRITELLI, Dulce Mára. Analítica do sentido – Uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo, EDUC/Brasiliense, 1996, p. 62-63.
38
“Lo que llamamos idea está necesariamente vinculado a un acto de expresión y le debe su apariencia de autonomía”. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenología de la percepción (op. cit.), p. 399.
39
“Todo pensamiento de algo es al mismo tiempo conciencia de sí, de otro modo no podría tener objeto. A la raíz de todas nuestras experiencias y reflexiones encontramos, pues, un ser que se reconoce a sí mismo inmediatamente, porque es su saber de sí y de todas las cosas, y conoce su propia existencia, no por constatación y como un hecho dado, o por interferencia a partir de una idea de sí mismo, sino por contacto directo con ella”. MERLEAU-PONTY Maurice. Apud CARRASCOSO, José Luis Arce. De la razón pura a la razón interesada. Barcelona, Universitat de Barcelona, 1996, p. 124.
sobre a autora
Maria Isabel Villac é arquiteta e urbanista pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorado pela Universitat Politècnica de Catalunya. Pós-Doutorado no IUAV – Istituto Universitario di Architettura de Venezia. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Como pesquisadora atua principalmente nos seguintes temas: arquitetura e cidade; arquitetura, arte e cultura; arquitetura e cidadania; ensino de arquitetura.