Vários prédios notáveis da arquitetura oitocentista brasileira tinham no centro da fachada principal um pórtico saliente com alçado em forma de arcada, pouco mais alto que o pavimento térreo e encimado por um terraço, descoberto e contornado por um parapeito.
Nesses prédios tal pórtico teve o poder de tornar mais belos ou marcantes aqueles que já o eram sem ele, e também de tornar belos ou marcantes aqueles que sem ele não o seriam.
De procedência europeia, ele foi muito mais usado no Brasil oitocentista que em países europeus, onde foi raramente adotado nos séculos 18 e 19, o que lhe permitiu ter aqui um impacto na arquitetura que lá não teve nesses séculos (1).
Esses fatos e a ausência de estudos específicos sobre ele foram razões suficientes para que lhe dedicássemos este artigo, que se propõe a: apontar os modelos de onde ele derivou; discutir as formas que ele assumiu em prédios selecionados que o continham; avaliar seu relacionamento com a fisionomia externa desses edifícios.
Apesar de suas dimensões modestas, esse pórtico era de grande utilidade devido a estas razões: (a) ele marcava com clareza e elegância a entrada principal do prédio; (b) protegia esta do sol e da chuva, por não ser nem muito alto nem muito aberto; (c) através do seu terraço, estendia até o exterior o piso do primeiro andar; (d) agregava à frontaria do edifício um volume saliente que costumava embelezá-la e enobrecê-la. Tais vantagens fizeram dele o tipo de pórtico saliente preferido pelos projetistas da arquitetura brasileira oitocentista.
Com efeito, no que concerne à utilidade, ele era superior ao tipo de pórtico saliente mais usado no classicismo europeu e norte-americano (que teve limitado emprego no Brasil): aquele, de substancial altura e assente geralmente sobre uma plataforma elevada ou mesmo um pavimento, que reproduzia a parte frontal de um templo clássico greco-romano.
Desvantagens deste eram: ser mais custoso, devido ao seu maior tamanho; não oferecer proteção eficaz contra o sol e a chuva, por ser alto e muito aberto; não proporcionar um terraço na sua cobertura.
Foi sobretudo uma motivação simbólica que causou a larga difusão desse pórtico-templo na Europa e nos Estados Unidos: o fato de ele ter-se tornado, graças a Palladio e seus seguidores (2), um dos elementos arquitetônicos que expressavam mais plenamente a linguagem classicista.
A maioria dos projetistas dos nossos edifícios oitocentistas, que por formação tendiam a ser austeros e econômicos, viram escassa utilidade no pórtico-templo e acharam que não valia pagar tanto por um componente cuja função era acima de tudo simbólica – e por isso deram preferência ao pórtico, mais barato e útil, que é tratado neste artigo. Quando alguns quiseram evocar o templo clássico na frontaria de um prédio, quase sempre simplesmente sobrepuseram a ela os elementos que formavam a frente de tal templo: colunas e/ou pilastras, entablamento, frontão e esculturas de coroamento.
Um evento revelador dessa preferência foi a reforma do Teatro da Paz (1904), em Belém do Pará. Na frontaria desse edifício, construído em 1869-74, havia um pórtico-templo assente numa base vazada por arcos e com a altura do pavimento térreo. A reforma remodelou essa base, eliminou o telhado do pórtico e recuou suas colunas, seu entablamento e seu frontão até a parede frontal do corpo principal do edifício (3) – transformando o pórtico-templo num no modelo aqui enfocado.
Por não termos encontrado estudos - nem nacionais nem estrangeiros - relativos ao pórtico saliente com arcos e terraço, construímos este trabalho a partir, sobretudo, de análises, comparações e reflexões nossas, referentes a múltiplos edifícios, identificados através de pesquisa em numerosas publicações sobre a história da arquitetura.
Primeiros exemplares brasileiros e seus predecessores europeus
O primeiro pórtico oitocentista brasileiro no modelo em questão foi o do Teatro São João, de Salvador (1806-12), já demolido e de projetista ignorado (4).
Suas elevações - como quase todo o resto da frontaria do prédio - se afiliavam à estética do estilo chão português e podiam ser lidas como uma série de pilares, unidos por arcos encimados por tímpanos, que apoiavam uma laje plana, contornada em três lados por um parapeito em forma de gradil metálico. Esses elementos distinguiam-se claramente uns dos outros: os pilares por terem sulcos horizontais; os arcos, por seus contornos curvos; os tímpanos, por sua cor mais escura etc.
O pórtico exibia dois traços que revelavam desinteresse do projetista para com as regras compositivas classicistas: os pilares não apoiavam um entablamento e o contorno superior dos arcos começava não nas impostas, mas acima delas, nas faces laterais dos pilares.
Por estar simplesmente justaposto à alta fachada do prédio, situada num único plano, o pórtico não se relacionava bem com ela volumetricamente, parecendo um mero apêndice. Porém, no que tange ao tratamento das superfícies, havia uma certa integração entre ele e a fachada, assegurada pelos vãos com arco pleno existentes nos dois e pelas pilastras e pilares, de desenhos assemelhados, neles presentes.
O pórtico melhorou muito a elevação frontal do edifício, que sem ele seria, abaixo da cornija superior, um paredão retangular vazado, que saliências dividiam em painéis. Além de ter recortado esse grande retângulo, ele tornou tridimensional a parte inferior da elevação, o que lhe agregou interesse visual.
A ideia de incluir esse pórtico no prédio deve ter provindo, direta ou indiretamente, do Teatro alla Scala, de Milão, onde havia um no mesmo modelo.
Traçado por Piermarini e erigido entre 1776 e 1778, esse teatro era um dos mais famosos do mundo, constituindo, por isso, nas décadas seguintes, uma fonte de inspiração para edifícios do mesmo gênero.
Muito bem concebido, seu pórtico se harmonizava com a frontaria do prédio, em termos de volumetria e composição. Ele se projetava de um corpo que já era saliente em relação ao plano básico da fachada, como parte de um movimento no qual a frente do edifício se estreitava à medida que avançava. Por outro lado, ele apresentava o mesmo tratamento superficial (pedra rusticada enfatizando as juntas horizontais, sem marcação do extradorso dos arcos) e o mesmo tipo de abertura (vãos verticais com topo em arco pleno) que tinha o resto do térreo na frontaria - traços estes oriundos de edifícios italianos do século 16, como a Zecca, de Sansovino, em Veneza.
Esse pórtico foi praticamente replicado no Teatro de São Carlos, de Lisboa, traçado por Costa e Silva, terminado em 1793 e cuja fachada, segundo França (5), derivou do Scala. Por ser português, esse prédio era uma referência mais próxima para a arquitetura brasileira e por isso pode ter sido a fonte de inspiração direta do pórtico do teatro baiano.
Este, porém, não teve por modelo o pórtico de Piermarini no tocante ao desenho das elevações (as figuras anteriores mostram isso).
Nesse aspecto, uma fonte inspiradora pode ter sido o pórtico que, no meado do Setecentos, Bonavia acrescentou à elevação principal do Palácio Real de Aranjuez (6), na Espanha, que pode ter sugerido o uso de pilastras e a marcação do extradorso dos arcos, nos alçados. Aliás, em termos do partido compositivo global, vemos semelhanças entre a frontaria do teatro baiano e o corpo central, com sete tramos, da elevação principal desse palácio.
É possível que o pórtico de Bonavia tenha também dado a Piermarini a ideia de dotar de um pórtico do mesmo tipo a frontaria do teatro milanês. Afinal, esses dois arquitetos eram italianos e o Palácio de Aranjuez era um prédio notável, conhecido em toda a Europa.
Observe-se que nos três edifícios europeus aludidos, o pórtico estava encimado por uma balaustrada de linhas renascentistas.
Outro pórtico – português e mais antigo – que pode também ter inspirado o do teatro de Salvador no que respeita ao desenho das elevações é o da igreja jesuíta do Espírito Santo, em Évora – do terceiro quartel do século 16 –, em cujo alçado (a) havia pilastras com sulcos horizontais, (b) aparecia a projeção do extradorso dos arcos e (c) a cor dos arcos diferia daquela dos tímpanos acima deles – como acontecia no teatro baiano. Kubler viu nele influências da linguagem severa do Escorial (7).
Não é improvável que o pórtico dessa igreja tenha inspirado o de Bonavia, já que os dois tinham traços comuns, como o fato de ambos terem cinco arcos na frente – sem falar que Aranjuez e Évora não estão separadas por uma distância muito grande.
Essas especulações nos levam a achar que o pórtico da igreja do Espírito Santo, de Évora, seria o antecessor mais remoto do pórtico do Teatro São João, de Salvador, quase 250 anos separando os dois.
Por sua vez, o pórtico eborense era, a nosso ver, uma reinterpretação, no estilo chão português, do exonártex de basílicas romanas medievais, como a de San Lorenzo Extramuros, o qual, segundo Goitia (8), descendia da stoa grega, também usada na arquitetura clássica romana.
Feitas essas considerações de ordem genealógica, passemos ao pórtico do Teatro de São João, do Rio de Janeiro, o segundo, no modelo em questão, construído no Brasil oitocentista.
Inaugurado em 1813, esse prédio – hoje inexistente - foi projetado pelo português João Manuel da Silva. No alçado, seu pórtico só se distinguia daqueles dos referidos teatros milanês e lisboeta por seu parapeito em gradil metálico, o mesmo toque não renascentista existente no Teatro São João baiano.
Isso permite inferir que, como o último, ele teve por modelo, direto ou indireto, o pórtico do Teatro alla Scala, seu modelo direto podendo ter sido também o pórtico do Teatro de São Carlos.
Silva deu à parte dianteira do prédio uma interessante volumetria fragmentada, composta de quatro volumes justapostos: um corpo central, mais alto, com três pavimentos; dois corpos simétricos com dois pisos, flanqueando o primeiro; e o pórtico, acoplado a face frontal do primeiro.
O pórtico era, portanto, uma parte importante da volumetria, que contribuía para a fragmentação e movimentação dela – não sendo um simples apêndice, como o do teatro homônimo de Salvador.
Duas linguagens conviviam sem conflito no exterior de tal parte dianteira: a do Cinquecento italiano e o estilo chão português. O último foi empregado nos corpos laterais e se evidenciava (a) no telhado destacado que se projetava em beirais, (b) nos pilares de canto, (c) na cimalha lisa entre os pavimentos e (d) nas janelas com verga reta encimada por cornija. Já a primeira foi usada nos dois corpos centrais: o pórtico, que seguia uma fórmula usada por Sansovino na Zecca, e o corpo de três pavimentos, cuja fachada – dividida em três tramos por pilares e pilastras colossais que apoiavam um frontão triangular – derivava de edifícios de Palladio.
Apesar dessa mescla de linguagens, a frontaria do teatro era uma composição equilibrada e agradável, superando em qualidade tanto a do teatro homônimo baiano quanto a do Teatro de São Carlos, de Lisboa. Smith – que viu no classicismo sóbrio da fachada carioca a continuidade de uma tradição estilística portuguesa – enganou-se ao achar o teatro do Rio de Janeiro quase uma réplica do teatro lisboeta; na verdade, só se assemelhavam na elevação frontal dos dois prédios seus pórticos salientes (9).
O pórtico do teatro carioca melhorou bastante a frontaria do edifício, graças ao movimento que agregou à volumetria da parte dianteira dele. Diga-se, porém, que mesmo sem o pórtico, tal frontaria seria agradável, devido aos seus contornos recortados e ao equilíbrio do seu desenho.
Os dois teatros brasileiros acima comentados foram erigidos ainda em nossa era colonial, no final dela. Só depois de terminado nosso Primeiro Reinado é que apareceriam no Brasil outros edifícios destacados com um pórtico no modelo em pauta.
Exemplares marcantes da era imperial
Dos seis pórticos que analisaremos em seguida, cinco pertencem ao Segundo Reinado. O outro pode datar desse mesmo período, mas pode também ter sido obra de fins da Regência. Trata-se do pórtico do antigo solar Tavares da Silva, no Recife, edifício de projetista ignorado, no estilo classicista imperial.
Alberto Sousa, interpretando um relato de Vauthier, concluiu que essa casa já existia na primeira metade dos anos 1840 (10). Se sua dedução está correta, o solar pode ter sido erguido tanto em tal década quanto em fins da anterior. O certo é que ele já existia no início dos anos 1850, quando foi retratado em gravura por Bauch.
Seu pórtico é bem mais extenso que o habitual, em relação à frontaria. Ocupando toda esta – como acontece na igreja do Espírito Santo, de Évora –, ele não é um pequeno volume aposto a um corpo muito maior, parecendo antes um avanço frontal do pavimento térreo que deu à parte dianteira do edifício uma forma escalonada, que é agradável, por seus recortes e por ter duas faces paralelas na frente: uma embaixo e a outra no alto, mais atrás.
Animando a volumetria do prédio, o pórtico embelezou-o, evitando que ele tivesse a forma simples de bloco retangular e sua frontaria fosse um retângulo, vazado e com algumas saliências.
O parapeito do pórtico semelha o do Teatro de São João, do Rio de Janeiro. Abaixo dele a elevação frontal tem traços que havia no pórtico do teatro homônimo de Salvador (cornija na base do parapeito e arcos com extradorso evidenciado), mas os arcos foram dispostos de maneira incomum, os dos tramos laterais não estando centralizados (um capricho ou um erro do arquiteto).
Tais semelhanças nos fazem crer que foi desses teatros que veio a ideia de incluir um pórtico no solar – que tem um interesse especial por ter introduzido esse componente em nossa arquitetura doméstica.
Pouco posterior a esse pórtico é o do Teatro de Santa Isabel, prédio traçado pelo francês Vauthier e erigido no Recife entre 1841 e 1850.
Vauthier deve ter dotado a edificação de um pórtico porque este estava presente nos dois principais teatros brasileiros, o do Rio de Janeiro e o de Salvador.
O traço mais interessante do prédio era sua volumetria, formada por quatro prismas justapostos. Um deles era o pórtico, parte essencial do edifício sem a qual este ficaria incompleto.
Vauthier fez as elevações do pórtico quase inteiramente em pedra de lioz, só deixando rebocados os tímpanos sobre os arcos.
Ele coroou o pórtico com uma balaustrada de linhas renascentistas, seguindo o exemplo do Palácio de Aranjuez.
Porém, abaixo dela, ele inovou, adotando um alçado distinto dos de todos os pórticos até aqui analisados. Para traçá-lo, ele tomou por base um desenho de arcada incluído no tratado de Vignola, que ele adaptou, no qual o arco tem arquivoltas, repousa sobre impostas e situa-se entre duas colunas apoiadas em pedestal. Na composição, de ótima qualidade, que criou, ele usou meias-colunas toscanas e – inspirado na Basílica, de Palladio, em Vicenza – colocou três delas em cada canto frontal do pórtico, reforçando assim visualmente o apoio do entablamento nesses pontos (11).
Deram graça e delicadeza à composição a pouca altura das meias-colunas (derivada do uso de pedestais) e a quase ausência de ornamentação.
Para aumentar a integração do pórtico com o bloco ao qual ele está aposto, Vauthier repetiu na frontaria deste – no primeiro andar – as linhas básicas da elevação frontal do pórtico sem seu parapeito.
Quando o Teatro de Santa Isabel foi inaugurado, estava sendo edificado em Petrópolis outro notável prédio com um pórtico do tipo em questão: o Palácio Imperial, projetado por Joaquim Guillobel e erguido entre 1845 e 1856.
Seu modelo deve ter sido o Palácio de Aranjuez, no tocante ao pórtico frontal, ao tratamento cromático, à divisão da frontaria em paineís retangulares com um único vão, e à existência de um corpo central mais alto que os laterais (12). Já a posição avançada do corpo central – um dos melhores traços do projeto – pode ter sido sugerida por uma mansão inglesa, a Wanstead House (1715-20), traçada por Colen Campbell e retratada no seu livro Vitruvius Britannicus.
Guillobel soube manipular bem as influências que assimilou e a partir delas compôs uma frontaria refinada (13), onde se destacam o contraste volumétrico entre o corpo central e as longas alas laterais térreas, e a repetição, no térreo, de um mesmo tramo estreito, contendo uma janela com topo em arco pleno.
Visto como um volume, o pórtico integra-se bem ao edifício, em razão da posição avançada do corpo central ao qual ele está justaposto. Visto, porém, com todos os seus atributos estéticos, ele não se harmoniza com a frontaria da palácio, por contrastar com ela em termos de material e cor.
Com alçado inteiramente em pedra e monocromático, o pórtico assemelha-se ao do Palácio de Aranjuez no desenho e no material, mas difere dele no que tange ao número de arcos e a detalhes, como ter entablamento completo e pilastras na ordem jônica.
Ele enobreceu a frontaria do palácio e também embelezou-a, graças a sua própria beleza, advinda sobretudo da cor de sua pedra e do esmero com que esta foi talhada.
Em 1858, inaugurou-se, em Porto Alegre, outro teatro com um pórtico no modelo em pauta (14).
Denominado São Pedro e projetado pelo alemão Normann, ele tinha fachadas que podem ser afiliadas ao estilo classicista imperial, apesar de exibir dois traços que não eram usuais neste: cornija superior apoiada numa sucessão de mísulas e a ausência de cunhais, duas influências alemãs.
Ao incluir o pórtico no edifício, Normann seguia o exemplo do Teatro de Santa Isabel, inaugurado em 1850 como o mais belo do Império.
Simples e de pouco interesse, a fachada ao qual o pórtico está aposto é uma parede retangular, animada pela referida cornija sobre mísulas, um entablamento toscano completo, sobrevergas em forma de frontão triangular, e vãos com vergas retas, no andar, e semicirculares, no térreo.
O pórtico semelha o do Palácio Imperial de Petrópolis no tocante ao desenho da elevação frontal, mas diferia dele em detalhes – pilastras sem pedestal, cantos frontais sem recorte, etc. – e por seu tratamento cromático, baseado no contraste entre uma cor clara e uma escura.
Embora o pórtico esteja sobreposto a uma fachada situada num único plano, ele se integra bem a ela, porque esta contém elementos idênticos a alguns nele existentes: entablamento completo, balaustrada renascentista e arcos.
O pórtico embelezou a frontaria do prédio, evitando que ela se limitasse a ser uma simples parede retangular, animada pelos elementos indicados acima.
Nos anos 1860, outra casa recifense ganhou um pórtico no modelo em questão: a do barão Rodrigues Mendes, hoje sede da Academia Pernambucana de Letras. Ele resultou de obras de ampliação – de autoria ignorada – feitas então na casa, que a vestiram com o estilo classicista imperial e que devem ter findado em 1870, ano que aparece em sua frontaria.
O melhor atributo estético desse solar é sua bela volumetria recortada, formada por quatro corpos – três com um piso e um com dois -, um dos quais é o pórtico, que constitui uma parte inseparável dela. Este não está simplesmente aposto ao corpo central mais alto: os dois se encaixam, pois o andar superior do último é saliente em relação ao térreo, avançando um pouco sobre o pórtico, o que aumenta a coesão deste com a volumetria. Devido a isso, os dois corpos laterais parecem estar recuados em relação ao corpo central, quando de fato eles estão alinhados com o térreo deste. Note-se que o avanço do primeiro andar fez com que a frontaria da casa englobasse três planos frontais.
Se da volumetria provém grande parte da incomum beleza do solar, contribuíram muito para esta o feliz desenho das fachadas e a boa escolha dos seus revestimentos (15).
Depois da volumetria, o traço externo que mais beleza agregou ao solar foi o azulejo que cobre quase todos os panos de parede situados entre as saliências. Ele introduziu nas fachadas brilho, um colorido suave e também linhas azuis que realçam os contornos de elementos como tímpanos, cercaduras de vãos, etc. Contrasta com ele, criando um belo efeito visual, o revestimento das saliências – em massa, branco e fosco.
Os vãos da elevação frontal estão divididos em grupos de três elementos. Dá unidade à composição deles o arco pleno que encima cada um, e dá movimento a ela o fato de um desses grupos estar localizado no alto e no centro, e um outro (o do pórtico), num plano avançado.
A frente do primeiro andar está coroada por um frontão triangular e a dos corpos laterais, por uma platibanda cheia que deixa visível a maior parte do telhado deles, de forte inclinação.
No alçado, o pórtico assemelha-se ao do Palácio Imperial de Petrópolis no que concerne ao desenho, apesar da ordem toscana (e não jônica) de suas pilastras e do refinado tratamento dos cantos frontais, cujas pilastras ortogonais estão unidas por uma superfície curva recuada (no palácio é uma aresta que as une). Mas em termos de cor e material os dois são muitos diferentes, já que no pórtico do solar predomina o reboco branco, ao qual se somam algumas áreas azulejadas.
Uma valiosa contribuição estética do pórtico foi introduzir na frontaria uma série de linhas verticais, que se contrapõem às linhas horizontais do alto dos corpos laterais.
O último pórtico que estudaremos é o de um prédio de Belém do Pará que foi erigido entre 1869 e 1884 – para abrigar órgãos do governo provincial – com o nome de Palacete Provincial. Chamado hoje Palácio Antônio Lemos, ele foi traçado pelo paraense Gama e Abreu, formado em matemática em Coimbra.
Cremos que Abreu decidiu dotar de um pórtico o palacete porque esse componente estava presente em dois palácios, o de Petrópolis e o de Aranjuez, e geralmente embelezava e enobrecia o edifício que o continha.
Ele deu ao prédio uma frontaria extensa e horizontal, coroada por três frontões triangulares – um no meio e dois nas extremidades.
Para definir a forma dela, ele inspirou-se talvez no alçado frontal da Casa da Moeda, do Rio de Janeiro, prédio projetado por Teodoro de Oliveira e inaugurado em 1868. Se isso não ocorreu, sua fonte inspiradora deve ter sido a fachada, de igual silhueta, da Associação Comercial de Salvador, obra dos anos 1810 ideada pelo português Cosme Fidié. Note-se, porém, que nenhuma dessas frontarias situava-se num único plano: no centro da primeira havia um corpo saliente e no da segunda, uma loggia.
Abreu compôs a fachada do prédio no estilo classicista imperial. Ele atravessou-a com dois entablamentos dóricos completos e vazou-a com vãos encimados, todos, por verga semicircular. Mas para animar a fachada diversificou as saliências, usando meias-colunas no térreo, pilastras no andar, e sobrevergas em forma de cornija, de frontão triangular e de frontão curvo.
Volumetricamente, o pórtico do palacete era um apêndice aposto a uma fachada situada num único plano, como ocorria no teatro de Porto Alegre. Apesar disso, graças ao feliz desenho de suas elevações, fachada e pórtico se harmonizavam.
Abreu deu força e destaque ao pórtico adossando pares de meias-colunas rebocadas a seus pilares, entre os arcos. Essa solução foi talvez sugerida pela frontaria do Palácio de Inverno de São Petersburgo, Rússia – obra barroca de Rastrelli, dos anos 1750 –, onde uma solução assemelhada, com colunas rebocadas minimamente embebidas, foi usada na portada principal. Já a disposição das meias-colunas nos cantos frontais segue uma fórmula difundida por Scamozzi no seu tratado de 1615. As meias-colunas deram ao pórtico um certo ar barroco, que é reforçado pelo movimento que faz a cornija do entablamento ao projetar-se sobre elas. Uma balaustrada de linhas renascentistas ergue-se sobre tal cornija.
A integração do pórtico com a fachada onde ele se situa resultou de três fatores principais: (a) o emprego de entablamentos idênticos no pórtico e em dois níveis da fachada; (b) a forma única das vergas de todos os vãos; (c) a inserção no primeiro andar de pilastras que fazem eco às meias-colunas do pórtico.
O pórtico embelezou bastante a frontaria da edificação, devido aos novos planos, às sombras e aos ricos componentes formais que acrescentou a ela (16).
Considerações finais
Ressalte-se que todos os oito pórticos brasileiros acima analisados distinguiam-se claramente uns dos outros, apesar de certas semelhanças que alguns compartilhavam – ou seja, nenhum era cópia de outro.
Note-se também que sete deles diferiam muito daquele que foi o mais renomado predecessor deles: o pórtico do Scala de Milão, que só foi imitado, mas não inteiramente, no Teatro de São João carioca.
O pórtico europeu que mais traços pode ter emprestado aos pórticos brasileiros estudados é o do Palácio de Aranjuez. Seu parapeito e seus arcos (sobre impostas e com extradorso evidenciado) são semelhantes aos de cinco deles; suas pilastras sobre pedestal assemelham-se às de três deles, e seus cantos frontais, formados por duas pilastras ortogonais, aos de dois deles.
Já a igreja do Espírito Santo pode ter sugerido o uso de três características: (a) tratamento bicromático distinguindo os arcos dos seus tímpanos, adotado em cinco pórticos brasileiros, (b) cantos frontais em forma de pilar, utilizados em três pórticos, e (c) pilastras ou pilares sem pedestal, presentes em dois.
Por outro lado, um traço existente em cinco pórticos brasileiros, o entablamento completo, não estava presente em nenhum dos pórticos europeus aqui aludidos. Como ele foi usado pela primeira vez no Teatro de Santa Isabel, este pode ter inspirado o uso dele nos demais pórticos.
Certos traços foram adotados num único pórtico, como as meias-colunas sobre pedestal, no teatro recifense, as meias-colunas gêmeas sem pedestal, no Palacete Provincial, os alçados rusticados, no teatro carioca, e os tímpanos azulejados, no solar Rodrigues Mendes.
Dos oito pórticos brasileiros, três – todos do período 1840-60 – tinham feição ortodoxamente renascentista: o do Palácio Imperial de Petrópolis e os dos teatros do Recife e de Porto Alegre. Os três pórticos anteriores a eles eram os menos ortodoxos, devido ao parapeito em gradil metálico dos três e aos solecismos existentes em dois deles (o do teatro baiano e o do solar Tavares da Silva). Já os dois pórticos posteriores a 1860, embora mais classicistas que os três últimos, tinham algo que lhes impedia de ser plenamente renascentistas: os azulejos que abrasileiravam o pórtico do solar Rodrigues Mendes e as meias-colunas gêmeas que davam um toque barroco ao do Palacete Provincial.
Dos oito pórticos os mais bem integrados ao edifício são o do Teatro de Santa Isabel e os dos dois solares recifenses – os menos exitosos nesse aspecto sendo o do Teatro São João de Salvador e o do Palácio Imperial de Petrópolis. Já os mais belos são este último, o do Palacete Provincial, o do solar Rodrigues Mendes e o do Teatro de Santa Isabel – que se destacam, respectivamente, por sua nobreza, sua força, sua graça e sua delicadeza.
Seis dos edifícios brasileiros aqui estudados pertencem ao estrato principal da arquitetura oitocentista brasileira, e ajudou-os a neste se incluir seu pórtico saliente com arcos e terraço.
notas
1
Ele foi tão pouco usado em países europeus que não foi sequer mencionado no importante livro que analisa os diversos componentes da linguagem classicista, inclusive os pórticos: ADAM, Robert Classical Architecture. A Complete Handbook. Penguin Books, 1990.
2
Idem, ibidem, p. 212; GOITIA, Fernando Chueca. Protótipos na arquitectura greco-romana e a sua influência no mundo ocidental. Lisboa, Edições 70, 1996.
3
Um dos motivos da reforma foi o número ímpar das colunas do pórtico, contrário à gramática classicista. Mas tal desvio não se deveu ao projetista do prédio, que traçou o pórtico com seis colunas, segundo relatório do presidente da província, de 16-05-1869 (p. A-9).
4
Curiosamente, esse teatro foi ignorado por Robert Smith. Ver: SMITH, Robert (1969). Arquitetura civil no período colonial. In: Arquitetura Civil I. São Paulo, FAU USP/MEC-Iphan, 1975.
5
FRANÇA, José-Augusto. A arte em Portugal no século XIX. Volume 1, Lisboa, Bertrand, 1990, p. 50.
6
Um análise da intervenção de Bonavia nesse palácio aparece em: Palacio Real. In Aranjuez – guía de turismo y ocio <www.aranjuez.com/palacio-real.html>.
7
KUBLER, George; SILVA, Jorge Henrique Pais da; CORREIA, José Eduardo Horta. A arquitetura portuguesa chã. Lisboa, Vega, 1988, p. 61.
8
GOITIA, Fernando Chueca. Op. cit., p. 56.
9
SMITH, Robert. Op. cit., p. 189.
10
SOUSA, Alberto. O classicismo arquitetônico no Recife imperial. João Pessoa, Editora UFPB/Fundação João Fernandes da Cunha, 2000, p. 110.
11
Para Alberto Sousa esse pórtico supera “em beleza e elegância” o do Teatro Scala e suas réplicas lisboeta e carioca. SOUSA, Alberto. Op. cit., p. 61.
12
Deve ter sido por isso que, em crônica de 1883, Koseritz associou Petrópolis a Aranjuez. Ver: KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980, p. 70.
13
Em 1864, o jornalista português Vilhena Barbosa escreveu que no palácio “a nobreza da architectura soube alliar-se com a elegancia e simplicidade”. Apud SOUSA, Alberto. A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro. João Pessoa, Editora UFPB, 2007, p. 40.
14
Alguns anos depois, ergueu-se perto do teatro uma casa de câmara que quase reproduzia o exterior dele. WEIMER, Günther. A fase historicista da arquitetura do Rio Grande do Sul. In FABRIS, Annateresa. Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo, Nobel/Edusp, 1987, p. 262. Não vamos tratar o pórtico dela por ser ele quase uma réplica do pórtico do teatro.
15
Alberto Sousa viu nesse solar “o mais perfeito exemplar de residência que o classicismo do Império legou ao país”. SOUSA, Alberto. O classicismo arquitetônico no Recife imperial (op. cit.), p. 150.
16
Já em 1882 o palacete, ainda inconcluso, causou ótima impressão no advogado e político paulista Leite Moraes . Ver: MORAES, Joaquim de Almeida Leite. Apontamentos de viagem. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
sobre os autores
Alberto Sousa é professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Arquiteto e urbanista, obteve seu grau de doutor na Université de Paris I, em 1990. Escreveu vários livros, o mais recente dos quais é Sete plantas da capital paraibana, 1858-1940, publicado em 2010. Estará publicando em breve o livro A progênie brasileira de uma fachada da Renascença.
Antônio Francisco de Oliveira é professor associado da Universidade Federal da Paraíba. Arquiteto e urbanista, obteve seu grau de doutor na Universidade Federal da Bahia, em 2011. É autor do livro O exercício da arquitetura no Brasil.